Foto: Igor Sperotto
(Esta reportagem faz parte do Derivas, publicação online que reúne os textos dos alunos do Curso de Jornalismo Alternativo no Nonada. Leia as outras reportagens neste link)
por Carolina Braz e Dina Scharb
Marcada pela colonização açoriana, ocorrida em meados do século XVIII, Porto Alegre figura no imaginário popular como uma capital branca e europeia, imagem que se reforçou com a imigração alemã e italiana ocorrida na região da serra, no século seguinte. No entanto, a presença da população negra, historicamente invisibilizada, é grande na capital gaúcha e tão antiga quanto a própria colonização desse espaço.
Embora reúna diversos prédios históricos, especialmente, na região do bairro Centro, não se pode dizer que Porto Alegre seja marcada pela preservação da memória coletiva. Um exemplo disso foi a criação tardia do Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, que ocorreu somente em 1979. A partir de uma exposição de longa duração que resgata a memória da cidade, o museu, situado no histórico bairro Cidade Baixa, exerce um importante papel na preservação e difusão da memória da capital, sendo um dos poucos locais onde se pode conferir as diversas mudanças que marcaram a formação e expansão da cidade, principalmente em relação ao período de modernização de Porto Alegre, onde ocorreram diversos processos de “limpeza urbana”, que alijaram as populações de menor renda e, sobretudo, negra para as periferias da cidade.
Apesar disso, algumas iniciativas também nos ajudam a contar a nossa história e construir nosso futuro de forma mais consciente, como, por exemplo, o aplicativo Territórios Negros de Porto Alegre, disponibilizado pela Fábrica de Aplicativos, que permite ao usuário identificar pontos turísticos e históricos ligados à população negra em Porto Alegre através do seu celular.
Outro importante projeto é o Projeto Territórios Negros, executado pela Carris, e hoje em vias de extinção.
O percurso pelos Territórios Negros de Porto Alegre
O Projeto Territórios Negros foi criado para contar a história dos negros em Porto Alegre, servindo de suporte à lei 10.639/03, que institui o Dia Nacional da Consciência Negra e propõe o ensino escolar da história e cultura afro-brasileira, levando os estudantes da rede pública aos locais que preservam essa memória nos dias atuais, atendendo à demanda das escolas públicas por mais recursos para programas de educação. No início da sua criação, estudantes de escolas públicas eram alvo do projeto, no entanto, devido à visibilidade alcançada, na comunidade escolar, acadêmica, e negra em geral, ele se expandiu para um público mais amplo.
Além disso, o projeto Territórios Negros em parceria com o Laboratório de Ensino de História e Educação (LHISTE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, também promove cursos de formação docente, que em 2017 chegou na sua 3ª edição. O curso, voltado principalmente para educadores de Porto Alegre e da região metropolitana, viabiliza acercar-se da história dos patrimônios afro-brasileiros da capital. A realização do projeto Territórios Negros está a cargo da Secretaria Municipal de Educação, Carris, Secretaria Adjunta do Povo Negro e Procempa.
Na prática, o projeto designa funcionários para guiar o percurso e um ônibus da Companhia Carris Porto Alegrense, adaptado para o projeto educacional e cultural de levar estudantes e o público em geral, a percorrer um trajeto voltado para a visibilidade da população negra, através da memória dos seus antepassados. A linha contribui para (re)contar a história de diversos espaços de Porto Alegre que sozinhos contam muito pouco, como o culto ao bará do Mercado Público, historicamente um espaço onde as religiões afro-brasileiras revivem a sua memória e exercem suas tradições.
Levando em conta que o projeto é destinado, principalmente, à comunidade escolar, a iniciativa é fundamental não apenas para preservar a memória do negro em Porto Alegre, mas para o confrontamento com o passado. Contar a história desses espaços promove a construção de novos questionamentos e perspectivas, contribuindo para manter a memória viva e sensibilizar o público para esse outro lado da história que não é contada nos livros didáticos.
O trajeto também permite ao público vivenciar a história da população negra a partir de outros tantos espaços, como a Praça Brigadeiro Sampaio (nome oficial) que, apesar de ser mais conhecida pelos jogos de futebol e churrascos de final de semana, guarda no nome “Largo da Forca” a sua origem. Esse nome marcante e que, atrelado a outros espaços, como o Largo Zumbi dos Palmares, a Igreja das Dores, onde nos deparamos com a lenda do escravo Josino, e com o antigo Pelourinho logo em frente, fazem compreender com muito mais vigor do que os livros de história, como viviam os negros escravos, a sua resistência e a luta da população negra por se integrar de forma igualitária na sociedade atual.
Apesar da importância do projeto para a formação escolar docente, estudantil e para a população negra de Porto Alegre, ele está em vias de extinção. Conforme já havia sido noticiado por outros canais de informação, em março de 2017, o projeto estaria passando por uma reavaliação e passaria por readequações, mas não necessariamente seria extinto. No entanto, as férias que paralisavam as atividades, e os recessos de carnaval acabaram, já estamos em setembro e ainda não há previsão para que as viagens culturais sejam retomadas. Para o historiador e servidor municipal Manoel José Ávila da Silva, que participou da elaboração do projeto, a descontinuidade do programa está ligada ao não reconhecimento da diversidade e das diferenças, além da aplicação de medidas de desmanche dos órgãos públicos, motivadas pela lógica do “Estado Mínimo”. Apesar disso, Manoel vê aqui um momento de luta, um desafio de continuar construindo políticas públicas de superação a discriminação racial e de injustiças sociais, que está sendo colocado para aqueles comprometidos com a diversidade e a democracia.
Em contato com a Carris, para agendamento do trajeto, a reportagem recebeu a informação de que estão sendo buscadas parcerias, mas ainda não se tem previsão para a retomada das viagens, prioritariamente destinadas aos estudantes, mas também abertas ao público em geral.
Conhecimento para todos
Embora a rede de ensino se destaque enquanto público-alvo do projeto, se engana quem pensa que seu alcance se limita às crianças e adolescentes. Muitos adultos têm se beneficiado do projeto, e não apenas os professores e profissionais da educação básica, mas também alunos, professores do ensino superior, a comunidade em geral e estrangeiros que residem em Porto Alegre. Esse é o caso de Thamis Larissa Silveira, 22 anos, estudante universitária e professora do curso de Português para Estrangeiros, que realizou o percurso pelos Territórios Negros, no ano de 2016, junto com estudantes do curso. Segundo a professora, os conhecimentos que os alunos tinham sobre Porto Alegre, era de uma região sul que se parecia com a Europa, sem a presença de uma marca negra. Uma vez que todos os alunos eram estrangeiros, ela percebeu no passeio uma excelente oportunidade de ampliar os conhecimentos sobre língua, cultura e história brasileira.
Thamis que vê no projeto a oportunidade de “refletir sobre os espaços da cidade, sobre a imagem do brasileiro, sobre a identidade do portoalegrense”, considera “extremamente importante que alunos e professores façam esse percurso”, porque ele permite conhecer a história de lugares, como o Mercado Público, que são frequentados pela população, mas cuja memória é ignorada no dia-a-dia. E essa história que não deve ser “silenciada nem ignorada, mas sim dita, repetida, ensinada”, observa.
Caminhos cruzados
Enghali Joseph Kapweya, de 22 anos, também se beneficiou do projeto. Atualmente estudando engenharia na UFRGS, Joseph, proveniente da Namíbia, teve a oportunidade de fazer o percurso pelos Territórios junto a outros estudantes do curso de Português para Estrangeiros da UFRGS. Eles puderam conhecer um pouco mais da história de Porto Alegre e da contribuição do negro para a sociedade, através do percurso realizado no segundo semestre de 2016. Segundo Enghali, que afirma ter se emocionado ao conhecer o Quilombo, seria um absurdo extinguir a linha Territórios Negros, porque as pessoas merecem conhecer como a cidade foi construída e a participação do povo negro nessa construção. Para o estudante, essa experiência significou uma honra e é motivo de orgulho poder cruzar a própria história com a história da população negra de Porto Alegre. Colega de Enghali nas aulas de português para estrangeiros, Emmanuel Langaso Atakete, de 26 anos, que veio do Congo Kinshasa para estudar em Porto Alegre, também pôde se beneficiar do projeto. Emmanuel não sabia que existiam esses pontos de referência sobre a cultura negra antes de fazer o percurso. Assim, pôde saber mais sobre a cultura africana no Brasil.
Entusiasta do projeto, Francieli Ruppenthal realizou sua dissertação de mestrado em Antropologia sobre ele. O trabalho de campo, como não poderia deixar de ser, foram diversas viagens no coletivo histórico. Para Francieli, o cancelamento do projeto é uma “perda considerável” porque “tinha uma grande contribuição no auxílio da lei 10.639/03 e agora as escolas perderam esse recurso”. Ainda segundo Francieli, o ponto positivo do projeto é o fato de ele ser gratuito e diferente, que “proporciona uma outra leitura da cidade, um conhecimento que muitas vezes não está visível”.
Situação Atual
Atualmente, o projeto ainda figura nas informações oficiais da Carris e da Prefeitura de Porto Alegre, no entanto, sem previsão de retomada das viagens, devido “à busca por parcerias”. Ao que tudo indica, o projeto está sendo descontinuado, de forma sutil, quase invisível aos olhos da população, da mesma forma que a contribuição do negro para a formação do município ficará, caso não haja retomada e expansão de projetos como os Territórios Negros.
Para acessar o aplicativo: http://galeria.fabricadeaplicativos.com.br/territorios_negros_em_porto_alegre
Para informações sobre o projeto:
Carris – 3289-2168
Para acessar informações da prefeitura:
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/gpn/default.php?p_secao=18
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