Editorial
Foto: secretário especial de Cultura, Mário frias (Crédito: divulgação)
Então candidato à presidência da República, Jair Bolsonaro já demonstrava aversão aos artistas brasileiros em 2018. Na época, usou o Twitter para criticar a lei Rouanet, que já era alvo de fake news: “Queremos manter os incentivos à cultura, mas para bons artistas que agregam valor, que estão iniciando suas carreiras e não possuem estrutura. O que deve acabar é dinheiro público financiando absurdos como oficinas de masturbação ou ‘peças’ com pessoas cutucando seus orifícios!”
Bolsonaro não explicou quem seriam os “bons artistas que agregam valor”, mas claramente já ameaçava partir para uma censura econômica da arte que o governo hoje considera “degenerada”, ou seja, aquela que aborda sexualidade, questões de gênero e direitos humanos. Quanto à antiga lei Rouanet (renomeada para Lei de Incentivo à Cultura), embora seja um mecanismo que transfere poder de decisão de financiamento para as empresas, é inegavelmente um instrumento que garante a realização de centenas de espetáculos, exposições, pesquisas e lançamentos, além de contribuir para o sustento de milhares de trabalhadores do setor cultural.
Agora sob a tutela do obediente Mário Frias, as políticas culturais do governo Bolsonaro se tornam cada vez mais estruturadas, alicerçadas em dois eixos repressivos: a censura e o estrangulamento econômico.
Ainda que a censura direta tenha dado uma trégua neste ano de pandemia, atos censórios do próprio governo federal ou ainda impulsionados por discursos de ódio defendidos por Bolsonaro vinham numa crescente desde 2017, como mostra o Observatório de Censura à Arte, iniciativa do Nonada – Jornalismo Travessia. Contudo, o governo parece ter encontrado outro meio de prejudicar o setor, que produz menos alarde mas é igualmente devastador.
O governo atual foi o que menos repassou recursos federais ao setor desde 1995. Levantamento do painel de Dados do Itaú Cultural mostra que o total monetário repassado a projetos pelo governo Bolsonaro foi de cerca de R$ 870 milhões em 2019 e R$ 480 milhões em 2020, somando-se recursos via Lei Rouanet; Fundo Nacional de Cultura (FNC); Lei do Audiovisual e Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Chama a atenção, ainda segundo o painel de Dados, o fato de que o total de recursos repassados em 2020 é integralmente do mecenato: os demais fundos foram paralisados pelo governo.
Atualmente, 200 projetos culturais estão impedidos de captar recursos via Lei de Incentivo por causa da vontade de uma só pessoa: André Porciúncula, secretário nacional de Fomento e Incentivo à Cultura. São R$ 500 milhões esperando para ser injetados no setor, e milhares de trabalhadores prejudicados. Ao ignorar o papel da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura como órgão decisor que analisa quais projetos podem ser autorizados a captar recursos junto às empresas, Porciúncula não apenas distorce o papel do Estado no fomento como também infringe a própria lei de Incentivo à Cultura. Pelo twitter, o secretário admitiu que é ele quem manda, mesmo que a Comissão já tenha aprovado os projetos: “A mídia militante tentará a todo custo me transformar num mero carimbador, não vão conseguir. Só aprovaremos a exata quantidade de projetos que for possível auditar. Respeito com o povo!”
Por trás do discurso, existe uma ideologia que pode ser entendida a partir da mensagem que o secretário escolheu para ser fixada em sua página no Twitter: “A perda do senso estético foi o que viabilizou a destruição da percepção moral. O belo e o bom constituem uma unidade indissolúvel.” Cabe a interpretação, portanto, de que a auditoria a que se refere Porciúncula não é fiscal ou financeira – coisa que os produtores culturais sabem muito bem -, mas sim uma auditoria moral do mérito dos projetos. Mais do que uma cortina de fumaça, o governo tem o objetivo de dirigir a cultura do país por um caminho de ufanismo patriótico, moralista, homogêneo e que louva nosso passado imperial.
Neste momento em que o setor tenta se reconstruir em um terreno ainda instável, na medida em que a pandemia não tem data para acabar, a ausência dos recursos pode ser catastrófica. O montante não aprovado por Porciúncula equivale a 17% do total distribuído via Lei Aldir Blanc, diga-se de passagem, uma iniciativa do Congresso Nacional que ajudou a aliviar um pouco do sofrimento principalmente dos artistas. É preciso lembrar, no entanto, que 1140 municípios brasileiros não quiseram aderir à distribuição, deixando os trabalhadores que levam cultura às suas cidades ao léu.
Todos esses elementos apontam para uma antipolítica cultural em plena construção no governo Bolsonaro, que, mesmo sem a arquitetura de Roberto Alvim ou a estética de Regina Duarte, vai sendo erigida tijolo por tijolo, sem que os artistas possam fazer algo mais concreto. Assim, assistimos atônitos aos absurdos racistas na Fundação Cultural Palmares, ao desmonte do Iphan e à asfixia da Ancine.
Com pouco menos de dois anos de mandato para Bolsonaro cumprir, resta aos artistas buscar ajuda nos editais da iniciativa privada e nas ações dos estados e municípios. Felizmente, uma ampla maioria de prefeituras e governos parece estar consciente do papel que a cultura exerce para a cidadania e para a economia local, inclusive promovendo também a diversidade cultural, com mais espaços para culturas negras, indígenas e populares. Que saibamos voltar nossas energias para a união e o diálogo com aqueles que querem construir uma política pública verdadeiramente voltada ao desenvolvimento.