É embaixo de um cajueiro, com o auxílio de um projetor, que as crianças da comunidade de Raposa, município da ilha de São Luís (MA), assistiram ao filme Coisa-Malu, um dos muitos títulos exibidos pelo cineclube Carimã, projeto do Instituto Maranhão Sustentável. O curta, que traz uma criança tímida que atravessa um portal e chega a terras mágicas, despertou uma avaliação necessária de uma criança que estava na plateia: “A gente tá brincando pouco. A Malu sabe ser criança, ela sabe usar a imaginação”.
O município de Raposa tem 75% de sua área destinada para preservação ambiental, abrangendo importantes espaços de mangue e berçário. O cineclube acaba sendo mais um dos projetos desenvolvidos na região direcionados para quem ali vive, a fim de mobilizar lideranças comunitárias. Em uma das produções audiovisuais realizadas pelo projeto, Floras da raposa tem o protagonismo de mulheres de quintais produtivos da região, abordando o aspecto ambiental. “Quando a gente fala de território, a gente também está falando de sustentabilidade”, avalia Claudia Marreiros, idealizadora da iniciativa. Para além das exibições de filmes, o cineclube oferece oficinas de produção cinematográfica, das quais já resultaram um videoclipe e dois documentários com os recursos da Lei Paulo Gustavo.
O trabalho de cineclubistas como Claudia tem levado filmes e debates para territórios com acesso escasso ao audiovisual em diversas regiões do país. Muitas vezes de forma voluntária por falta de recursos, eles montam sessões de cinema gratuitas, ao ar livre ou em espaços fechados. Nos últimos anos, programas de descentralização de recursos com a Lei Paulo Gustavo têm possibilitado novos caminhos para a profissionalização desse trabalho e sua consequente expansão.
Seja em comunidades rurais ou urbanas desassistidas, aldeias indígenas ou quilombos, a escolha dos filmes e atividades realizadas estão sempre preocupadas com o território onde serão exibidos, a fim de construir um diálogo que faça sentido para cada população. Em alguns casos, os cineclubes não se limitam à exibição de filmes e engajam ou mesmo participam na produção audiovisual independente realizada pela comunidade onde atuam.
Além do Cine Carimã, Claudia também coordena o Cine Café Cuxá, na região do Desterro, bairro central de São Luís. “Lá também tinha essa carência da população com acesso à linguagem cinematográfica. Apesar do centro histórico ser um pouco turístico, sempre tem essa condição de ser um território que as pessoas não olham como tendo pessoas que moram e precisam de acesso à cultura.”
“O Maranhão é um quilombo. Ele é, não que as pessoas se reconheçam. Aí que é o desafio”, responde Claudia sobre as diferenças entre exibir filmes fora e dentro de quilombos, para onde a cineclubista e diretora, que tem origens quilombolas, já levou suas próprias produções audiovisuais, independente dos cineclubes.
Profissionalização e protagonismo indígena
O Canella Cineclube, realizado na cidade turística do Rio Grande do Sul, já tem um público fiel que comparece às sessões ao ar livre. Em um circuito de cinema ambiental, realizado com apoio da Lei Paulo Gustavo, em torno de 40 pessoas chegaram a frequentar uma das sessões. Com exibições em uma telona inflável em uma cidade conhecida por sua natureza, a mostra trouxe reflexões sobre questões socioambientais e contou com a participação do cacique Maurício Vēn Tánh Salvador no debate ao fim do último filme exibido, momento tão caro aos cineclubes.
A temática ambiental não era uma obrigatoriedade do edital, foi escolhida justamente pela relação da cidade com o tema, como sugere o próprio slogan do município, “Paixão Natural”. Um dos responsáveis pela curadoria do Canella Cineclube, Izaias Reginatto credita à Lei Paulo Gustavo, cuja maioria dos recursos foi voltada ao audiovisual, a possibilidade de gerar renda e conseguir recursos para o projeto, após anos de trabalho voluntário.
Fernando Gomes, integrante do projeto, explica que existe uma parceria entre o cineclube e a aldeia Kaingang Kógūnh Mag, que em determinado momento conseguiu verba da Lei Paulo Gustavo para desenvolver um documentário: Fuá – o sonho (2025). A produção contou com a colaboração do coletivo de mulheres da comunidade Kaingang e foi dirigida por Viviane Farias, também da etnia Kaingang. Antes de dirigir o filme, Viviane já havia participado do curta-metragem A araucária e gralha azul (2023), outra produção que conta uma importante história de seu povo.
“Me interessei no audiovisual [a partir do cineclube], agora fizemos os projetos juntos, como o livro culinário e agora o curta-metragem. A Lei Paulo Gustavo possibilitou que eu fizesse mesmo sem um curso no audiovisual”, conta.
Antes de levar o cinema para as aldeias, a iniciativa também levou cerca de 100 Kaingangs para uma sessão de cinema no Palácio dos Festivais, palco do Festival de Cinema de Gramado, logo após a pandemia. O objetivo agora é realizar sessões de cinema índigena em quatro aldeias, com auxílio de um edital do estado. A experiência não é nova, visto que o cineclube já trabalhou com pelo menos duas exibições em uma aldeia Kaingang do município.
Com o valor adquirido nos editais de financiamento, o Canella Cineclube conseguiu adquirir pela primeira vez equipamento próprio. “Vai ter exibições abertas ao público, mas a gente vai levar a lugares que normalmente não tem esse tipo de acesso. Para realmente levar cinema para pessoas que geralmente não tem”, explica Izaias.
Acesso gratuito ao audiovisual
Em Baixo Guandu (ES), município de 31 mil habitantes, o Cineclube CinemAqui é uma das poucas produções culturais que consegue alcançar a população. “O cineclube nos oportuniza essa linguagem mais direta com as comunidades”, conta Vênus Olyvier, coordenadora. Ela conta que o município de Baixo Guandu tinha um cine teatro onde eram apresentadas peças teatrais e produções audiovisuais, mas que nos últimos anos o abandono do espaço impossibilitou atividades no local.
“Eu comecei a minha atividade cineclubista sem saber que era uma atividade cineclubista, quando eu reunia os meus amigos pra poder assistir a um filme em casa. E depois de um tempo virou assim, uma rotina de semana”, relembra. A ideia cresceu quando ela foi convidada para fazer parte de um festival de cinema. “Fui me aperfeiçoando em conhecimento técnico sobre o que era o cineclube, a importância do cineclube, e aí a gente foi passando o nosso conhecimento para outras pessoas que não sabiam como funcionava”.
Vênus destaca que mesmo com o desconto oferecido por algumas salas de cinema em cidades da região, o acesso segue restrito à comunidades distantes desses espaços: “Tem comunidades que a gente visitou que não tem acesso nem à TV”. Com núcleos em outros municípios, o CinemAqui influencia a construção de outros cineclubes. O Cine Vagalume, em Muqui (ES), é um exemplo disso.
Ainda que baixos, os valores da Paulo Gustavo tem ajudado o CinemAqui na aquisição de equipamentos, comida para as sessões e deslocamento. Mas ainda não é suficiente. Por exemplo, quando chove, o cineclube precisa cancelar as sessões, por falta de verba para alugar um espaço.
Vênus não trabalha exclusivamente com o Cineclube, mas seu marido, assistente de produção do Cineclube, teve que deixar o emprego para se dedicar exclusivamente à função. É ele quem carrega o equipamento pesado e realiza as viagens. Em função disso, os dois pensam em uma futura institucionalização do projeto, com a possibilidade de existir também em um espaço fixo e cobrar uma taxa de manutenção para pelo menos remunerar esse trabalho.
A coordenadora também descreve o cineclubismo como a porta de entrada para produções cinematográficas independentes, valorizando aquilo que o produtor independente faz e às vezes tem dificuldades de colocar no comércio: “O cineclubismo oportuniza os produtores independentes a terem um público para assistirem seus filmes.”