De leitor a produtor: a trajetória de Daniel HDR

Fotos Reprodução Flickr Daniel HDR

Daniel HDR em seu estúdio, com suas coleções ao fundo

Daniel HDR (@danielhdr) é desenhista, ilustrador, roteirista, publicitário, professor e principalmente um adorador dos quadrinhos. Na área desde os 14 anos, trabalhou para editoras como D’Arte, no Brasil, e Marvel, DC, Image e Dark Horse, nos Estados Unidos (as quatro maiores editoras de comics de lá). Atualmente, além do trabalho de seu estúdio, o Studio Dínamo, ele é professor de Ilustração, HQs e Arte Conceitual na Unisinos e desenhista contratado da americana Avatar Press.

Falamos com ele pelo Skype; Daniel é um entusiasta da internet. Ele nos contou sobre o seu início, suas influências, a relação que ele estabeleceu com os quadrinhos ao longo de sua carreira e suas idéias na área.

Mais sobre ele: http://danielhdr.com.br/ — http://danielhdr.deviantart.com/

Nonada – Quando você era criança, que quadrinhos você lia?

Daniel HDR – Como leitor de quadrinhos, eu fui muito influenciado pelo gosto do meu pai, que já colecionava quadrinhos bem antes de eu nascer. Fui pegando as suas preferências por certos personagens de histórias de super-heróis, de aventura e de mistério desde pequeno. Apesar de eu ter os meus gostos por personagens das editoras Marvel e DC, graças a ele eu sempre gostei também dos mais old-school: o Fantasma, o Tarzan, Jim das Selvas, Mandrake. Dessa leva, o que eu mais gostava era o Fantasma. Mas meus favoritos mesmo sempre foram os da Marvel e da DC. Naquela época, na TV a gente era bombardeado por desenhos dessas editoras, além de assistir muitos seriados japoneses. Então é normal que eu curtisse mais esses personagens do que os antigos.

Nonada – Você lia outros quadrinhos que não de editoras estadunidenses?

Daniel HDR – Não quando era menor. Turma da Mônica, por exemplo, eu tinha contato através de primos e primas, quando ia passar as férias na casa de parentes. Aí eu acabava lendo. Mas nunca comprava. Da Disney eu nunca fui fã, nunca me agradou quando criança porque eu achava chato. Já mangás, eu fui ter contato só na minha adolescência. No caso, eu queria ler quadrinhos de estilos diferentes, então comecei a ler mangá. Nessa época também entrei em contato com os quadrinhos europeus. Foi uma conseqüência natural dessa busca por gêneros diferentes.

Nonada – O interesse pelo desenho você já tinha?

Daniel HDR – Sim. Gostar de desenhar veio muito antes de começar a trabalhar com isso. Partiu, na verdade, da minha infância, pelo hábito de ver meu pai, que era desenhista. Ele era desenhista técnico, não cartunista, quadrinista, ilustrador. Mas ele tinha o hábito de desenhar nas horas vagas, e de tanto ver ele fazer isso comecei a querer desenhar as minhas coisas. Engraçado que só depois da morte dele que eu pensei em trabalhar com isso. Acabou sendo um resgate dele, pela falta que ele fazia no dia-a-dia da minha família.

Daniel HDR desenhando no estande do Dínamo em um evento

Nonada – E quando foi que você fez essa opção por se profissionalizar?

Daniel HDR – O estalo mesmo eu tive quando eu lancei o meu “fanzine” [termo genérico para toda publicação independente] e botei numa banca na praça da Alfândega aqui em Porto Alegre. Ficava entre o Museu de Arte do Rio Grande do Sul e o prédio dos Correios no centro da cidade e era tipo um point, eles vendiam quadrinhos usados. Eu botei meu fanzine lá, feito de xerox, bem fundo de quintal, pra vender. Tinha desde matérias a respeito de quadrinhos quanto histórias minhas mesmo.Tinha dez ou quinze exemplares. Na semana seguinte eu passei e tinha vendido três. Daí eu parei e pensei: “Pera lá, tem alguma coisa acontecendo aí. Acho que eu devia investir nisso.”.

“É uma arte midiática, quadrinhos estão entre as mídias mais completas que se tem. Usa recurso de cinema, usa recurso de fotografia, usa recurso literário.”

Nonada – Você chegou a fazer cursos de quadrinhos?

Daniel HDR – Como todo autodidata, no início tu achas que não precisa se estudar nada. A tua família diz que está legal, teus amigos dizem que está legal, então está legal, né? Daí tu investe e quando pintam as primeiras críticas tem quem fique magoado, o que é bobagem. Se tu queres trabalhar com isso tu tens que aprender a evoluir. Eu procurei conhecer outras pessoas que também desenhavam, pra ter uma opinião técnica. E no início dos 90, eu tinha 14 anos, e já pensava em me profissionalizar. Nesse momento, eu percebi que não havia um estudo especializado de quadrinhos, eles são na verdade a junção de diversas artes: cinema, arquitetura, desenho. Então eu comecei a me aprofundar nessas artes, eu estudei figura humana, desenho de perspectiva, fiz cursos, oficinas. Quando eu percebi que, academicamente falando, eu não teria amparo, eu montei um plano B. Trabalhar numa área que me desse amparo técnico e financeiro, pra poder esperar as coisas acontecerem.

Nonada – E como foi que as coisas aconteceram?

Daniel HDR – Bom, antes de eu tomar consciência de que eu teria que construir um portfolio, eu tinha minhas histórias e saía batendo de porta em porta de editoras. Na ingenuidade de um guri de 13 anos, eu pensava que eles deviam ter uma editoria de arte, quadrinhos, que estivesse precisando de um desenhista. Foi quando eu percebi que eu teria que construir um portfolio e, em paralelo, uma vida profissional que me desse amparo financeiro. Na época que eu comecei a trabalhar nas editoras, de fato, eu trabalhava como publicitário, não era com quadrinhos. Eu estudava publicidade e comecei a trabalhar no meio, com arte final de anúncio, criação, etc. E ia fazendo quadrinhos separadamente, de freelancer. Até que o volume de trabalho referente a quadrinhos começou a crescer e eu comecei a ter menos tempo pra pegar freelancer de outras agências, menos tempo pra publicidade, menos tempo até mesmo pro meu fanzine. E quando começaram a pintar trabalhos realmente grandes eu comecei a fazer escolhas. Então me desliguei um pouco da publicidade. Mas foi uma área que me ensinou muito, principalmente a questão de trabalhar com prazos, improvisos, versatilidade. Eu friso bastante pra quem me pergunta isso, eu acho que a pessoa precisa ter algum tipo de formação numa outra área, porque o conhecimento agrega, ajuda muito. Então eu tava nesse ponto, comecei não sendo profissional até chegar o ponto de eu ter um volume de trabalho suficiente pra poder fazer só aquilo que eu queria fazer mesmo.

Nonada – Tem algum trabalho que tenha te marcado mais?

Daniel HDR –  Tem vários momentos de vários trabalhos que foram um desafio pra mim, pela correria ou pelo prazer de estar desenhando uma coisa legal. Mas sinceramente, eu tenho o seguinte pensamento: o meu melhor trabalho vai sempre ser o próximo. Se eu não pensar assim, eu vou ficar vivendo de passado e vou me acomodar, e eu não gosto de me estagnar. Eu posso ter tido momentos bem legais em trabalhos passados, mas eu sei que vão vir momentos ainda melhores nos próximos. Se o desenho é o alimento da alma, e tu não quer expandir, tua alma não vai crescer. Eu penso muito assim, em relação à criação, a desenhar, a trabalhar com a imagem.

Texas Chainsaw Massacre The Grind 01 pg. 20, trabalho de Daniel com Brian Pulido

Nonada – Como foi o pulo pras editoras estadunidenses?

Daniel HDR – Eu comecei a fazer trabalhos pra editoras americanas em 1996, pra ser mais preciso no meio de 1995. Eu estava com 19 anos e comecei a mandar testes pras editoras lá de fora. Eu já tinha amigos meus, profissionais da área, que estavam trabalhando por lá, a primeira geração de desenhistas brasileiros que trabalharam no exterior, o [Mike] Deodato, o Marcelo Campos, entre outros. Dos testes até pintarem os primeiros trabalhos, já era início de 1996. Eu comecei a desenhar pra Marvel e com a Image Comics. Aconteceu, como a maioria dos desenhistas que iniciaram no mercado, através de agenciamento, que tinha representação nos Estados Unidos. Era um período em que não tinha a internet pra fazer contato direto com os editores, eu não tinha computador em casa pra poder dar a prévia para os editores, tinha que mandar tudo por fax. Era uma infra-estrutura complexa e que necessitava de um agente. E eu ainda novo naquilo, óbvio que me empolgava, eu virava noites e noites a fio trabalhando com prazos extremamente arriscados, às vezes tendo que mudar teu estilo de uma edição pra outra, pra ficar na crista da onda do mercado de lá. Hoje em dia a realidade é bem melhor.

Nonada – Por causa da internet?

Daniel HDR – Sim. A internet se tornou uma ferramenta para se ter e manter uma boa rede de contato, mas também mostrar o seu portfólio. Hoje em dia, se tu souber direcionar o teu foco de trabalho, tu consegues fazer teu trabalho ser visualizado por um número imensamente maior de pessoas do que tendo um portfolio de cartão de visita e ficar batendo de porta em porta.

“O sujeito que cria o seu produto e não fica esperando pela editora, aquele que corre atrás, esse é o cara que vai fazer o futuro da indústria.”

 Nonada – Mas o que você pensa, por exemplo, de “filesharing”, distribuição de conteúdo online, e downloads ilegais?

Daniel HDR – O “filesharing” é uma coisa que não tem como voltar atrás. O mercado de quadrinhos está se reestruturando tal qual a indústria fonográfica por causa da internet. Com as lojas digitais, que hoje em dia vendem a revista pela internet, por exemplo. O editor que ainda acha que vai deixar de vender porque existe uma versão para baixar pela internet está contando muito com o acaso. Se tu parar pra pensar, se o cara é fã e a revista é boa, ele vai comprar, independente de ter já baixado ou não. Porque, em última instância, é isso que vai formar leitor novo. Não tem como tu achar que um gurizinho que joga PSP o tempo inteiro vai se dar o trabalho de ir pra uma banca e comprar a última edição de uma revista. Ele vai é baixar na PSN (rede online do console Playstation) ou pegar um arquivo scanneado de um amigo dele. É um modelo novo de mercado e as editoras estão explorando isso aí. Evolui de tal maneira que o próprio trabalho do scanner, de se dar o trabalho de digitalizar a revista toda, muitas vezes acaba se atrasando em relação à iniciativa da editora, de disponibilizar metade da revista online antes, pra vender o download depois por 1,99.

Nonada – E quanto a webcomics, esses feitos para a internet, que são independentes do sistema das grandes editoras?

Daniel HDR – Bom, eu leio vários webcomics. Inclusive eu digo que, se eu tivesse tido essa regalia com meus treze anos pro meu fanzine de xerox, as coisas teriam acontecido bem mais rápido pra mim. O sujeito que cria o seu produto e não fica esperando pela editora, aquele que corre atrás, esse é o cara que vai fazer o futuro da indústria. Talvez a nova geração de editores, justamente os que usufruem dessas tecnologias todas, seja a geração que vai, de fato, revolucionar o mercado.

“O mercado de quadrinhos está se reestruturando tal qual a indústria fonográfica por causa da internet.”

X-Men Forever 22 pg. 15-16, desenho de Daniel para história de Chris Claremont

Nonada – Por que tu achas que alguns quadrinhos grandes no exterior não são lançados aqui no Brasil?

Daniel HDR – O problema é realidade aqui do Brasil. Aqui, o quadrinho é visto como gênero, e não como mídia. Se tu vai falar pra uma pessoa que tu lê quadrinho, ela acha que é coisa menor, um subgênero, ou coisa de criança.

Nonada –  Aqui não se vê quadrinho como arte.

Daniel HDR – E não é arte, se tu for parar pra pensar. É mídia. Claro, mídia também tem arte, mas vamos usar o termo certo. É uma arte midiática, quadrinhos estão entre as mídias mais completas que se tem. Usa recurso de cinema, usa recurso de fotografia, usa recurso literário. Então, subjugar a capacidade artística ou comunicativa da arte seqüencial é um retrocesso, e é isso que acontece aqui no Brasil. Esses diversos títulos não chegam aqui porque o mercado daqui não é diversificado como o de lá. Isso não existe aqui por questões logísticas e principalmente por questões de cultura. Se mudar a infra-estrutura do mercado, talvez consiga mudar a postura do leitor casual, aquele leitor que, por exemplo, viu o filme do Watchmen e se interessa por ler o quadrinho. São fatores que vão além do que tem na prateleira da banca. A gente pode até ficar discutindo qual seria a melhor maneira de distribuir, ou de popularizar, mas na verdade tudo depende do simples fato de existirem pessoas que queiram ler quadrinhos.

Nonada – Você citou Watchmen. O que você acha da adaptação de quadrinhos para outras mídias, como cinema ou games?

Daniel HDR – É a mesma coisa que tu ter um celular e poder acessar o facebook e o twitter. É a convergência. Hoje em dia o mercado, pela simultaneidade que tu tem de informação e estilo, tu acabas tendo uma convergência, dos games pros quadrinhos, dos quadrinhos pro cinema, do cinema pros games. Até dos quadrinhos pra literatura, da literatura pros jogos. Achar que um produto ou personagem só vai aparecer em uma única mídia, é irreal, mercadologicamente. Claro, pode-se pensar nisso depois da criação, mas é diferente. É legal o cara na hora da criação já pensar no potencial midiático disso, nas outras formas de mídia. É ramificar, dar uma experiência de universo expandido.

NonadaQuando foi que você começou a dar aula?

Daniel HDR – Na época que estava desenhando pra editoras dos Estados Unidos. Eu ainda estava terminando o curso de publicidade e propaganda e já tava pensando em eventualmente fazer um mestrado. Eu queria construir um pouco de didática. Comecei com oficinas, mais tarde cursos mais longos, sempre em parcerias com instituições, nunca tomei a iniciativa de eu montar um espaço, uma escola. Esse caminho de professor acabou acontecendo casualmente e me colocou na vida acadêmica de um modo muito interessante, porque eu era autor de quadrinhos e comecei a pensar mais essa questão da linguagem, pra passar adiante. Comecei a ver o quadrinho como linguagem, conceitos de narrativa ligados ao cinema, à literatura. A minha carreira como professor está presente na minha vida, mas não é uma coisa constante, pois não parei de ser autor para ser professor. Eu acredito que se a gente ensina alguma coisa, tem que ter a credibilidade de trabalhar naquilo. Se tu só ensina, é parar no tempo. Se um aluno meu chega e pergunta pra mim “O que o mercado tem exigido, o que está acontecendo?”, eu não vou dar uma visão retrógrada, vai ser uma visão atual, porque eu estou no mercado, eu me atualizo. É meio puxado, contrabalançar a vida profissional de autor com a vida de educador. Talvez, em algum momento, eu pare de dar aulas. Mas, por enquanto, o volume de trabalho não tem sido tão sufocante a ponto de eu ter que abrir mão.

Nonada – Como surgiu a ideia do Studio Dínamo?

Daniel HDR – O Dínamo surgiu no final da década de 90, quando eu tava me desvinculando do mercado publicitário, como autor. Começou como uma cooperativa de artistas, alguns oriundos das minhas turmas, outros colegas que conhecia há muito tempo. A idéia inicial era justamente dar conta, porque vinha um volume de trabalho muito grande, e eu acabava indicando colegas, porque eu não tinha tempo e eram pessoas em que eu confiava. Daí pensei, “Por que não montar uma marca em comum pra desenvolver esse trabalho?”.  De 2004 para cá o formato do estúdio mudou bastante, se centralizando em jogos e quadrinhos. Muito do trabalho vem direcionado a histórias em quadrinhos, serviços pra editoras, e até uma parte de arte conceitual para jogos. Comparando com o início, quando vinha muito mais coisa de publicidade e propaganda, mudou bastante. Mas o estúdio é só uma marca de fantasia, cada autor continua tendo liberdade, todos os talentos tem sua autonomia. Cada um constrói a sua carreira, mas quando precisamos fazer trabalhos em equipe, contamos com o esforço um dos outros.

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