TEXTO Idiana Tomazelli
FOTOS Mariana Gil
Barracas a postos e “livros… livros à mão cheia!” – como versou o poeta Castro Alves. Na sexta-feira, 29 de outubro, começou no Centro Histórico de Porto Alegre uma maratona de 18 dias em que o público tem encontro marcado com a literatura. Em sua 56ª edição, a Feira do Livro aposta em uma programação variada para atingir as metas de crescimento de público e de vendas anunciadas na semana passada pelo presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, João Carneiro. A abertura oficial foi no Teatro Sancho Pança, localizado no Cais do Porto, e contou com a presença de autoridades e do patrono deste ano, o folclorista Paixão Côrtes.
Além dos mais de 1,5 mil eventos paralelos – entre eles, cerca de 180 palestras e debates e 700 sessões de autógrafos –, outro ponto promete chamar a atenção do público da Feira: a reforma da Praça da Alfândega. A obra, integrante do Projeto Monumenta, pretende resgatar os ares que o local apresentava na longínqua década de 30. A placa adverte aos passantes: “A Praça da Alfândega e arredores ainda estão em reforma! Redobre sua atenção ao circular”.
“Inicialmente vai atrapalhar um pouco, mas depois até pode ajudar. A parte dos jardins não está tão convidativa, mas o pessoal está curioso, principalmente com a passarela”, aposta Simone Pereira, 46 anos, da Livraria e Editora Isasul. Na tarde de quinta-feira, enquanto dispunha as obras separadas por assunto nas várias prateleiras da barraca reformada, mostrava-se mais preocupada com o tempo, que no ano passado foi um dos principais fatores prejudiciais às vendas, segundo os próprios livreiros. “Dizem que o cheiro do livro atrai chuva”, brinca.
A passarela a que ela se refere é uma construção provisória, complementar aos acessos laterais que vão ligar a Rua dos Andradas ao restante da Feira. Apesar das três vias possíveis, alguns livreiros alocados nesta área temem um possível isolamento, em função dos tapumes que permanecem no local. “Ficou muito fechado, muito desarrumado”, reclama José Luiz Hahn, 45 anos, representante da Livraria e Editora Padre Réus. Numa barraca próxima, Marcelo Chaves, 27, funcionário da Livraria Paulus, lamenta o fato de não se ter o atrativo da Praça este ano e acredita que o público vai ficar mais concentrado em uma determinada zona da Feira. Alex Ramos, 30, da Editora Saraiva, demonstra a mesma preocupação. “Não sei se a passarela vai funcionar, ou se vamos ficar isolados”.
A reforma da Praça também leva os livreiros a pôr em cheque a expectativa de aumento de público, que este ano é de 20%, segundo a Câmara. “As pessoas de repente estão ressabiadas. Ter um dia de movimento já era difícil [sem a reforma]”, questiona Fabiano Marques, 33 anos, funcionário da Livraria Cervo. Em relação às vendas, ele aposta no crescimento, mas duvida que o índice chegue aos 15% previstos inicialmente pela Câmara. Outros compartilham a mesma opinião. “Se chegar a 10% é muito”, arrisca Marcelo Chaves, da Paulus. “A expectativa é que cresçam, mas a gente não sabe até que ponto a reforma vai atrapalhar”, completa. Para José Luiz Hahn, da Padre Réus, as vendas se manterão nos mesmos patamares de 2009.
O pessimismo de alguns é contrariado pelo otimismo de outros. Simone, da Isasul, opina que, apesar das reformas, os dois feriados (02/11 e 15/11) e as eleições ajudarão a trazer o público para a Feira, tornando atingível a meta estabelecida pela Câmara. Alex Ramos, da Editora Saraiva, também cita as datas de Finados e da Proclamação da República como propícias para o aumento das vendas. Ainda assim, permanece o consenso de que a Feira só voltará à sua atividade normal quando as reformas acabarem, ou seja, numa próxima edição.
As obras também são alvo de questionamentos do público. “Tá demorado. Ficou fechado e agora olha o que está acontecendo: nada”, protesta a estudante Monique Moraes, 17 anos. A demora também é um dos pontos levantados pelo aposentado Flávio Pereira, de 71. Morador das redondezas, circula todos os dias pela Praça da Alfândega e observa que “ficaram aqueles buracos, aqueles barrancos, mas não se vê um funcionário”. Ele ainda alerta que faltam bancos para que as pessoas possam se sentar e ler os livros que comprarem durante a Feira.
O romantismo e o valor histórico permanecem Quando a sineta tocou e as barracas se abriram na tarde desta sexta-feira, provavelmente a estudante Mayara Vieira, a quem a leitura “não chama muito a atenção, mas tem que ler”, partiu em busca de livros, principalmente novos lançamentos, como havia comentado. Monique, por sua vez, pretendia encontrar nos saldos as obras requisitadas para o vestibular. Ao contrário da amiga, gosta muito de ler, especialmente livros espíritas. “Aqueles de modinha, de vampiros, não”, desdenha com humor.
O baiano Euclides Rosa da Silva, de 49 anos, veio para o Rio Grande do Sul há dois anos. Já morou na Capital, mas não conhecia a Feira do Livro de Porto Alegre. Como trabalha de pedreiro nas proximidades, ficou curioso com as montagens. “Amanhã eu tô aqui de novo. É às 12h30 que abrem as barracas? Ôxi! Às 11h eu tô aqui”, anima-se o baiano de sotaque carregado, que admite gostar mais de ler jornal.
“É difícil não chegar em alguma banca”, reconhece Flávio Pereira. Segundo o aposentado, a Feira atrai o público pelas ofertas e pelos descontos, mas também pela beleza e pela história. De fato, não é à toa que, em 18 de abril deste ano – data em que se comemora o Dia do Livro –, a Feira recebeu o título de Patrimônio Imaterial da Cidade, concedido pelo Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc) da Secretaria Municipal da Cultura (SMC).
“Não dá para imaginar a história de Porto Alegre sem a Feira do Livro”, diz Rita Chang, engenheira civil, presidente do Compahc e especialista em gestão de patrimônio histórico. Na sua visão, o título serve para valorizar algo a que as pessoas já atribuíam grande valor emocional. Para o presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro, João Carneiro, a honraria acrescenta prestígio ao evento. “Nós acabamos tendo um reconhecimento do que já era um sentimento geral. É importante porque estabelece cada vez mais essa relação da Feira do Livro com o lugar em que ela acontece”.
O título não pressupõe uma estagnação, pelo contrário. A presidente do Compahc considera que a Feira deverá passar por algumas mudanças e adaptações em função de conviver agora com uma nova realidade. “O Patrimônio Histórico tem que ser contemplado e valorizado à luz do presente. Não adianta querer voltar. A vida é diferente, as necessidades são diferentes”, avalia. Enquanto grandes livrarias oferecem espaços climatizados, com poltronas confortáveis e mesas à disposição dos clientes, ela opina que a Praça da Alfândega, por ser um lugar aberto, deve ser reconhecida pelo ambiente de grande socialização e por proporcionar encontros com escritores e outras personalidades importantes do cenário cultural – principalmente na época da Feira, que “possui um valor histórico incontestável” para a cidade. Porém, Rita lembra que os descontos, uma das estratégias da Feira do Livro para atrair o público, já vêm sendo incorporados pelas lojas nas semanas do evento – inclusive com outras vantagens, como cartões para acumulação de pontos. “É uma concorrência que não se pode deixar de levar em conta”, ressalta.
Algumas alterações podem vir já com as reformas da Praça. A retirada de árvores que cresceram desordenadamente e encobriram a área central de forma exagerada, por exemplo, é apontada por Rita como favorável à conservação do local. “A Feira do Livro é um patrimônio histórico e vai seguir sendo reconhecido nesse sentido, mas ela vai sofrer adaptações. E essas mudanças fazem parte do processo”, conclui.
Os trabalhadores do lado de fora de Feira Às 16h da tarde de quarta-feira, Soila Mar Silveira assistia aos últimos preparativos para a Feira do Livro na companhia de um cigarro. O movimento, apesar da proximidade do evento, ainda estava fraco. Entre 29 de outubro e 15 de novembro, contudo, ela espera faturar mais durante sua jornada de cerca de quatro horas, durante a qual circula pela Praça da Alfândega em busca de clientes – geralmente os mesmos.
Prostituta há 27 anos, “nem sob tortura” revela a idade. Só diz que tem mais de 40. Ela faz parte de um grupo de mulheres que usa a Praça como ponto e se diz prejudicada pelas obras. “Fica pouco espaço para trabalhar”, reclama. “Nosso lugar era mais no centro”.
Soila é apenas uma dos profissionais que têm a rotina alterada durante a Feira. E para o bem. O caricaturista Geraldo Santos também diz faturar mais na primeira quinzena de novembro, embora não saiba avaliar exatamente quanto. “Como foi ano passado, não sei. Só sei que saí feliz”, diverte-se. O público aumenta consideravelmente, segundo Santos, e é comum ter uma grande plateia assistindo à feitura do trabalho. Na Praça desde 2006, ele convive lado a lado com a maior feira de livros a céu aberto das Américas, mas não consegue acompanhar do jeito que gostaria. Quando olha a programação, se interessa por vários eventos. Se vai a todos eles, logo pensa: “Vou perder duas, três caricaturas”. “Essa é a minha dor”, lamenta.
A Feira também é uma época próspera para os camelôs da Rua dos Andradas. Apesar de serem deslocados para outro trecho da rua em função dos estandes dos livreiros, eles registram aumento nas vendas de artesanatos. Felipe da Silva, 63 anos, membro da comissão indígena à qual pertence a maioria dos camelôs daquela região, destaca que a Feira é um evento que “todo mundo espera”, devido ao grande faturamento e ao crescimento do público.
Já para Danilo Castro Fonseca, 62 anos, os melhores momentos são os da montagem e desmontagem. Vendedor de bebidas e lanches, chega a vender 100 salgados e 100 bebidas, entre sucos e café, em dias movimentados. Seu Danilo, como é conhecido, trabalha há 20 anos na Praça – é considerado por alguns o mais antigo do lugar. Durante a Feira, fica proibido de comercializar nas dependências do evento, para não competir com a praça de alimentação. A saída, então, é ficar nos arredores.
Quem não vê muita vantagem na Feira do Livro é o engraxate Marco Antônio de Oliveira, 53 anos. “Vem muita gente de sandália, chinelo e tênis. Enfraquece nosso serviço”, conta. Por isso, nessa época não chega a registrar dias movimentados, nos quais chega a atender 13 clientes. Às vezes, conta, “não passa de sete graxas”. Detentor do posto da banca 19, trabalha de segunda a sexta e aproveita a folga no batente para dar uma olhadinha nos livros, apesar de reconhecer sua preferência pelos jornais.
Aos 15 anos, Evelin Carolina Braz dos Santos admira as bancas ainda em fase de montagem com um olhar curioso. Nunca esteve na Feira do Livro, apesar de morar não muito longe, no bairro Partenon. Estudante na 5ª série, não vê nos livros seu principal objetivo. Traz na mochila os panos de prato que compra para revender. Acompanhada da prima Alexandra, de 24 anos, vai tentar aproveitar o movimento da Feira para aumentar o rendimento. “Acho que tiro um dinheiro bom”, diz esperançosa.