Uma bienal da arte e do território

FOTOS Mariana Gil

Mercosul. O que esta palavra suscita na mente? Noção de união aduaneira, ideia de livre comércio entre certos países da América Latina, possivelmente aulas de geografia para a geração pós década de 90. Quando essa palavra une-se à outra, Bienal, surge a denominação de um dos eventos mais importantes de arte da América Latina: a Bienal do Mercosul.

Mas o que, afinal, Mercosul tem a ver com arte? É justamente esta questão que será problematizada na oitava edição da bienal, através do tema territorialidade. Entre setembro e novembro do ano que vem, Porto Alegre será palco desse encontro de ideias distintas, mas que possuem pontos de contato para além da integração entre as nações do Mercado Comum do Sul.

A proposta temática partiu do colombiano José Roca, nomeado curador-geral devido ao seu projeto. O Nonada o entrevistou no dia do seu primeiro encontro com a equipe de co-curadores para as definições iniciais. Durante a conversa, ele falou sobre as funções sociais da bienal, sobre as particularidades da próxima edição e sobre a territorialidade como temática proposta.

José Roca escolheu o tema "territorialidade" para nortear a 8ª Bienal do Mercosul

Nonada – Qual é a função de uma bienal?

Roca – Uma bienal é sempre pensada, antes de qualquer coisa, para o público. Levando em conta este aspecto, não há como definir uma única função, porque cada bienal é feita em um lugar particular e de acordo com ele. A função que pode cumprir uma bienal em São Paulo, que visitei nesta semana, é diferente da função em Porto Alegre, por exemplo. O motivo é que grande maioria desses eventos está vinculada a estratégias de promoção de uma cidade ou de um país através do turismo cultural. Ou seja, é uma operação cultural de dar prestígio ao lugar em que se realizam.

Nonada – E do ponto de vista das artes?

Roca – Sim, falando em termos mais gerais, uma bienal tem uma função dupla: por um lado, mostrar a produção local para o mundo e, por outro lado, mostrar ao artista local o que está se passando em outros lugares. Nesse diálogo entre o que se faz em âmbito local e o que está sendo feito em outras partes se dá um desenvolvimento do trabalho dos artistas locais. Especificamente a Bienal do Mercosul surge para estabelecer um vínculo mais forte entre os países da região através da arte, e também para desmembrar o eixo tradicional, ou formar um triângulo – refiro-me ao fato de que antes do século XXI, o foco das artes no Brasil era só Rio de Janeiro/São Paulo. Forma-se um ponto de tensão, que é a atração do interesse em direção ao sul.

José Roca acredita que a função de uma bienal é promover trocas entre artistas de diferentes lugares

Nonada – Podes citar exemplos de outras bienais que promoveram esse diálogo?

Roca – Não por acaso, aqueles países que recebem bienais que já têm trajetória são os que têm uma cena de arte contemporânea mais sólida. Nós vemos isso no Brasil e em Cuba, por exemplo, em escalas particulares. As bienais deram a estes lugares a possibilidade de ver o que estava acontecendo no mundo, e ao mundo de ver o que estava acontecendo nesses lugares. Em outros países, como o meu [Colômbia], existe uma cena muito interessante que ninguém conhece, que ninguém vê. Isso ocorre por razões óbvias, como a situação de conflito que existe lá há muitos anos, mas também porque não há um motivo especial pelo qual as pessoas iriam até o país, ou um incentivo para que se perguntem “o que está se passando na Colômbia?”. Esta provocação também é uma função que as bienais devem cumprir, complementando a pergunta anterior.

Nonada – Como surgiu a ideia de abordar a territorialidade como tema da 8ª Bienal do Mercosul?

Roca – Sempre me chamou a atenção que uma bienal de arte levasse o nome de um tratado de livre comércio. Considerado esse ponto como um mal entendido, ou pelo menos como uma particularidade, tive a ideia de pensar sobre território e sobre como ele é abordado hoje em dia. Surgiram tantas discussões nos anos 90 sobre identidade, sobre nomadismo, sobre viagens… É preciso agora pensar sobre como se colocam essas questões atualmente. Pensei que a noção de território, e particularmente de geopolítica, poderia ser revisada contemporaneamente. Por isso estamos falando de poéticas de território, ou de geopoéticas.

Nonada – Vocês pretendem fazer o conceito de territorialidade ultrapassar as fronteiras do Mercosul?

Roca – Sim, sem dúvida. Ultrapassar as fronteiras do Mercosul, e da América Latina também, muito provavelmente. A forma como estamos desenvolvendo o projeto é panlatinoamericana, mas sem negarmos a possibilidade de trabalharmos com artistas que, mesmo não sendo da região, ajudem a clarear os temas de que estamos tratando. Nesse sentido, trabalharemos com artistas do Japão, do Canadá, da Espanha… Sejam dos países que forem. Mas este tipo de participação será exceção, não norma.

Nonada – Como a Bienal do Mercosul é vista no exterior?

Roca – Ela tem o prestígio de ser vista como uma bienal que olha principalmente para a arte da América Latina. Ao contrário da Bienal de Arte de São Paulo, que se propõe como uma bienal internacional, o partido que a bienal do Mercosul tomou foi de, por um lado, olhar para a arte da América Latina e para a arte do Conesul e, por outro lado, reforçar sua condição de bienal pedagógica. Este é um caráter muito reconhecido e marcante para quem olha desde fora, a partir de outros países.

Curador afirma a importância do projeto pedagógico

Nonada – Como está sendo pensado o projeto pedagógico desta edição da bienal?

Roca – O projeto pedagógico pretende ir mais além do trio de conceitos interpretação, mediação e serviço, pois quer entrar transversalmente no projeto curatorial de tal maneira que se faça diferente do que se faz na maioria dos museus. Neles, em geral, o processo começa com a curadoria decidindo um projeto. Logo, o departamento de educação trata de interpretá-lo para o público. Ou seja, o projeto pedagógico chega depois, e não tem nenhuma interferência na criação do projeto curatorial. O que estamos fazendo aqui é o contrário, ou pelo menos diferente. Há uma ideia geral que eu concebi, e o primeiro curador que convidei foi Pablo Helguera [curador pedagógico], uma pessoa com a qual trabalhei muitas vezes. Só depois do feedback de Pablo eu reformulei um pouco o projeto e enviei aos co-curadores e aos curadores adjuntos. Agora, juntos, estamos reavaliando, considerando a parte pedagógica de forma que ela seja paralela e que uma se nutra da outra em relação à parte curatorial. A proposta pedagógica não é somente que os mediadores, os guias e os professores tratem do que pensou a curadoria, mas sim que a própria curadoria tenha componentes que encarnam o projeto pedagógico.

Nonada – De que forma a Bienal do Mercosul vai apropriar-se dos espaços urbanos de Porto Alegre?

Roca – Ainda não temos isso definido, mas levando em conta que vamos tratar de poéticas dos territórios, podemos dizer que a bienal não será construída somente por artistas que trabalham a noção de território em sua obra, mas também e principalmente pelos que entendem Porto Alegre e o Rio Grande do Sul como territórios a serem descobertos através da arte. É o que vamos fazer, explorando essa cidade que tem lugares maravilhosos – alguns que precisam ser reativados através de propostas artísticas. Seremos mais específicos da próxima vez que conversarmos sobre quais serão as estratégias para que não mostremos apenas obras de arte em lugares, mas sim proporcionemos uma outra forma de enxergar os lugares. Queremos que tanto os visitantes de fora de Porto Alegre quanto os próprios habitantes da cidade tenham experiências diferentes e particulares da cidade e dos lugares que visitarem.

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