Cidades pintadas

“Desde Lascaux nos comunicamos pintando paredes”, comenta o designer gráfico Vitor Mesquita, referindo-se a uma das mais famosas cavernas com pinturas rupestres já descobertas. “E a cidade é nossa caverna em mega proporções”, complementa, na tentativa de traçar um sentido para a complexa ideia de arte urbana. A street art, como também é conhecida a arte urbana, vai além do “pintar paredes” e da utilização da cidade como suporte para a expressão artística. Ela provoca o olhar de maneira inusitada, instiga. Por acontecer no espaço público, e algumas vezes de forma não-autorizada, também gera polêmicas.

Não pedimos para nos depararmos com a arte no nosso habitat urbano – não como quando vamos às galerias e museus. Porém, ela vem ao nosso encontro pelas ruas. Segundo Vitor, é aí que reside o caráter instigante e inusitado da street art. Quando decodificamos a arte no contexto da visualidade do espaço público, somos levados à reflexão. “Essa decodificação tira o cidadão de sua zona de conforto e o provoca”, afirma Vitor, que é também formado em Artes Visuais (História, teoria e crítica de arte). Mas, independentemente de provocar, e eventualmente levar a refletir, a arte urbana acontece em uma zona conflituosa.

Por um mundo de melhor aspecto – Uma frase de Banksy, icônico artista de rua de identidade desconhecida, aponta alguns caminhos para a compreensão deste tipo de manifestação: “Algumas pessoas tornam-se polícias porque querem tornar o mundo um lugar melhor, e algumas pessoas tornam-se vândalos porque querem tornar o mundo um lugar com melhor aspecto”. Levando em conta que, para certos artistas, só é arte urbana aquela que transgride, e que portanto tem alguma carga de “vandalismo”, a imposição de certo aspecto visual deixa de ter uma carga negativa. A ligação desta visualidade com a denúncia do poder fica evidente através da própria ideia de transgressão. Obviamente, nem todos ficam contentes com esta atividade, a começar pelas autoridades públicas.

Quando a arte de rua começou a se fortalecer em Nova Iorque no início da década de 1980, por exemplo, enquanto algumas instituições artísticas abriam-se para o potencial da nova forma de arte, as autoridades da cidade se dedicaram a uma verdadeira batalha contra o “vandalismo”. O que mais se fazia era o graffiti em forma de grandes marcas caligráficas. Até hoje, na multiplicidade de técnicas e reconhecimento artísticos, alguns artistas de rua são chamados de vândalos, o que talvez alimente a própria existência da atividade –  Banksy é um dos que consideram-se orgulhosamente como “vândalos profissionais”.

Porém, o reconhecimento da arte urbana dentro do sistema artístico, que já vem acontecendo há décadas, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, não deixa de ser valorizado. Tridente, artista de rua que tem seu trabalho autoral em Porto Alegre desde 1999, tem o que falar sobre a parte polêmica do que faz. “Todo mundo acha do caralho, moderno e tal, mas quando você argumenta sobre a polêmica da coisa, a galera demonstra repúdio”, conta sobre sua pintura de rua. Ele começou a utilizar o stencil, técnica que adota spray sobre papel perfurado para marcar as paredes, aos 8 anos de idade.

A vida boêmia que levou desde cedo, com caminhadas à noite observando os manifestos punks pelos muros do bairro Bom Fim, impeliu Tridente a tomar a sua prática rotineira de intervenção como profissão. “Nunca saí especificamente para interferir na rua, sempre foi consequência de circular por locais rotineiros com as ferramentas à mão”, completa. O conflito entre intenção do artista e o olhar desprevenido do público acaba tornando-se comum.

Quando se fala em reconhecimento no contexto do sistema artístico, então, a situação é ainda mais espinhosa. Tridente acredita que existe atualmente um deslumbramento de diversos públicos em relação à arte urbana, principalmente no exterior, mas não um respeito efetivo por parte dos curadores. Aquilo que seria, na definição do artista sobre street art, um “grito de artistas que em sua maioria são autodidatas, e que talvez não tivessem chance de manifestarem-se e de profissionalizarem-se não fossem suas interferências na cidade”, corre o risco de ficar calado no sistema formal das artes quando fica de fora das galerias.

A rua, a galeria e a publicidade – A linha de raciocínio de Tridente não deixa de gerar um questionamento: teria sentido a arte urbana dentro de galerias, uma vez que a transgressão está nas origens da atividade? A resposta é positiva e negativa ao mesmo tempo, e incita para a dúvida se toda a subversão pode ser domesticada pelas instituições oficiais. “A galeria é parte do processo, não vejo como uma domesticação da rua, mas um reconhecimento e valorização do trabalho”, afirma o artista. Este reconhecimento se daria através do registro – considerando a efemeridade da arte de rua – ou até mesmo de ações como as presenciadas na Bienal de São Paulo em 2010, em que pichadores foram convidados a mostrarem oficialmente o seu trabalho, um ano após invadirem o evento e picharem deliberadamente o espaço de exposições.

A pichação não é considerada como arte por consenso. Ainda assim, Tridente reconhece a sua importância no contexto da cidade. “Vejo a pichação como a única manifestação realmente underground nos dias atuais. Talvez seja a mais rica das formas de manifestação popular, agressiva quase que em sua totalidade mas algo inevitável de não vislumbrar”, afirma o artista.

Vitor Mesquita também fala sobre o caráter transgressor da arte de rua. Ele lembra que a street art, aquela reconhecida como tal por alguns artistas apenas enquanto transgressão, quando não é absorvida pelas bienais e outros eventos, é tomada pela publicidade. Segundo ele, o Brasil é um país mais tolerante do que preconceituoso, e por isso não haveria um preconceito específico no que diz respeito às intervenções de artistas urbanos. O “espaço” para a arte urbana vai se consolidando através de painéis e tapumes patrocinados. “Proporcionar um painel para os artistas é uma maneira de controle, mas não de preconceito”, completa Vitor.  “O sistema das artes se encarrega de tornar tudo mercadoria”, completa.

Tridente não mostra aversão à absorção da arte urbana pela publicidade. Pelo contrário, afirma que a publicidade sempre bebeu da subcultura. Ele aceitaria trabalhar em projetos de publicidade, dependendo de quem viesse o convite. Sem contar que ele se considera cada vez mais “marketeiro” no sentido de buscar dar visibilidade ao próprio trabalho. “De publicitário tem de cobrar bem, afinal eles fazem os convites com suas gordas contas”, comenta.

Banksy leva a arte de rua para as telas do cinema – Não é apenas o filme já aclamado e ao mesmo tempo criticado em terras brasileiras “Lixo Extraordinário” que fala sobre arte dentre os concorrentes ao Oscar deste ano na categoria documentário. Fazendo frente à produção  sobre o trabalho do artista plástico Vik Muniz com os catadores de lixo, está “Exit Through the Gift Shop”, filme realizado por ninguém menos do que o misterioso Banksy.

O documentário foi exibido no Brasil em outubro do ano passado, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O mote é a história (supostamente real) de Thierry Guetta, um cineasta francês que é convidado para registrar imagens dos expoentes da street art. Porém, após envolver-se com o assunto, ele mesmo torna-se um intervencionista urbano, passando a ser objeto de registro do próprio filme. Mesmo sem ter um trabalho de “valor”, chegando a fazer obras consideradas risíveis, ele é alardeado pela mídia por ter sua exposição relacionada ao nome de Banksy, é claro, de forma descontextualizada.

Críticos apontaram algumas controvérsias sobre o caráter documental da produção, uma vez que a história pode não passar de uma farsa criada por Banksy. Um exemplo desta discussão pode ser lido em matéria do site “The Envelope” do Los Angeles Times. Também fica no ar a dúvida sobre o comparecimento do realizador na premiação, já que foi negado o seu pedido de comparecer mascarado. Assista ao trailer do filme na página do artista.

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Um comentário em “Cidades pintadas

  1. Bah, muito boa a matéria, extraordinária. As criticas foram o que chamaram minha atenção. Assim como o Tridente eu não sou contra a entrada do graffiti/pichação entrar para as galerias, mas prefiro sim ele nas ruas, e principalmente se for local proibido !!!
    Muito obrigado pelas fotos, é um prazer ajudar o projeto.

    G_Eros…

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