Por um cinema menos machista

*Por Aline Duvoisin

À primeira vista, a palavra patriarcado pode parecer anacrônica quando utilizada hoje em dia. Porém, se nos propusermos a analisar de forma um pouco mais profunda o funcionamento da nossa sociedade e a divisão de espaços entre homens e mulheres, percebemos que faz bastante sentido mantê-la presente em nosso vocabulário.

Ainda que a participação feminina venha se intensificando em diferentes setores, a desigualdade, a exclusão, a privação de direitos e a violência, entre outros fatores, ainda permanecem vigentes, principalmente entre as classes mais humildes e carentes. Por outro lado, mesmo aquelas que se creem autônomas, se observadas em seu dia a dia, podem ser percebidas cometendo atos mantenedores de uma sociedade ainda evidentemente patriarcal.

Coordenadoras do Festival Internacional de Cine por la Equidad de Género – Mujeres en Foco. Da esquerda para a direita: Analía Fiorio (produção), Valeria Pertovt (comunicação), Malena Sivak (mostras itinerantes), Valeria Duran (programação e atividades culturais), Julieta González (eventos educativos) e Cynthia Judkowski (diretora-geral) (Crédito: Gush Lattanzi - Divulgação)

A televisão vulgariza o sexo feminino vendendo-nos imagens de mulheres completamente artificiais e de acordo ao gosto masculino acerca da beleza feminina e que muitas vezes são “compradas”, aceitas e levadas adiante pelas próprias mulheres. Os filmes pornôs são obviamente feitos quase que exclusivamente para homens e segundo sua visão do que é atraente, do que é belo e de como deve ser o sexo. Esses são apenas alguns exemplos de situações em que prevalece a visão masculina da sociedade. E, no cinema de modo geral, como são abordados os papéis sociais do homem e da mulher?

Começa o Mulheres em Foco

O Festival Internacional de Cine por la Equidad de Género – Mujeres en Foco (Festival Internacional de Cinema pela Igualdade de Gênero – Mulheres em Foco), cuja segunda edição começou na quinta-feira passada, dia 5 de maio, em Buenos Aires, se propõe justamente a discutir essas questões – que, aparentemente resolvidas, ainda deixam muitos problemas intrínsecos à nossa realidade relegados ao esquecimento. A baixa participação masculina no festival, tanto em termos de espectadores como de realizadores, bem como a perda de apoio financeiro em relação à primeira edição do evento, são apenas alguns dos elementos que demonstram a baixa preocupação social em relação a esse problema.

Cynthia Judkowiski, diretora-geral do festival, afirma que há interesse e preocupação em incluir o olhar masculino nesses temas porque as mulheres, sozinhas, não conseguirão resolvê-los. Segundo ela, há um incremento de homens preocupados com essa temática e existem muitos filmes realizados por representantes do sexo masculino que possuem uma abordagem mais feminista. Porém, ainda é bastante baixa a presença masculina no evento. Sobre a queda de patrocínio, Cynthia explica que se deve à decisão e à prioridade de fundos nacionais e internacionais. Ou seja, as questões referentes aos direitos humanos vinculadas à questão de gênero parecem estar em segundo plano, pelo menos do ponto de vista cinematográfico.

Pouca participação masculina e perda de apoio financeiro são elementos que
demonstram a baixa preocupação em relação à igualdade de gêneros

No ano passado, 225 filmes de 38 países diferentes foram apresentados na convocatória do Mulheres em Foco. Desses, 64 foram selecionados para serem exibidos e 11, para serem avaliados pelos jurados. Nesta edição, houve uma queda significativa: cerca de 150 películas de 30 países foram apresentadas na convocatória, dos quais menos de 40 foram selecionadas para a mostra oficial e 11, para participar da competição. Além disso, também participaram do festival neste ano seis filmes convidados e 13 que integraram mostras especiais. Destes últimos fizeram parte obras da consagrada diretora argentina Lucía Puenzo, além da francesa Agnès Varda, da norueguesa Ellen-Astri Lundby e da dinamarquesa Charlotte Sieling.

Outra diferença em relação à primeira edição, quando houve predominância de documentários e filmes de ficção, foi a maior presença de filmes de animação e experimentais. Além disso, se decidiu ir além dos espaços convencionais de exibição. Houve sessões especiais seguidas de debate num presídio feminino localizado nas redondezas da capital argentina. Segundo Cynthia, a ideia é levar um pouquinho do festival a um lugar onde as mulheres não têm condições para acessar esse tipo de atividade.

A diretora do festival conta que a produção cinematográfica direcionada ao tema do festival não é muito ampla. Por isso, se trata de um evento relativamente pequeno e com índices de participação bastante reduzidos. Segundo ela, a proposta é justamente criar um espaço para promover a produção de material cinematográfico desse tipo e onde se possa divulgar e mostrar o que já se realiza. “Muitas vezes não se produz porque não existe espaço para exibição”, destaca.

Outro empecilho para que se possa ampliar o número de filmes exibidos é a necessidade de que sejam apresentados na convocatória com legendas em espanhol. Cynthia explica que por enquanto não existe verba suficiente para que o próprio festival possa traduzi-las. Dessa forma, se o realizador tampouco tem condições de fazê-lo, não pode participar por questões idiomáticas. Por esse motivo há mais participação de filmes latino-americanos do que de outras regiões. O Brasil, apesar de pertencer à América Latina, acaba sendo prejudicado devido a sua língua oficial. Nessa edição o único representante da nossa nacionalidade foi “Poeira e Batom”, da Tania Fontenele.

Realizadoras debatem a igualdade de gêneros

Além de apresentar seu filme, a diretora brasileira participou da mesa de debate Mujeres enfocando: Realizadoras con Mirada de Género ao lado da norueguesa Ellen-Astri Lundby, da dinamarquesa Charlotte Sieling e das argentinas Muriel Rébora e Magdalena Ripa Alsina. Na oportunidade, ela contou que apesar da participação das mulheres no mercado do trabalho ter crescido nos últimos 50 anos no Brasil isso ainda não se reflete nos setores mais altos da sociedade.

Segundo Tania, existem muitas realizadoras brasileiras, mas elas ainda têm papéis secundários em relação aos homens no campo audiovisual. Além disso, lamentou o fato de haver pouca integração do nosso país com a América Latina: “Somos vizinhos, mas ao mesmo tempo sabemos muito pouco uns dos outros”.

Na Argentina, não parece ser muito diferente. Muriel contou que, cada vez que conhece um grupo novo com o qual vai trabalhar, os homens primeiro se detém a olhá-la, avaliando se devem ou não escutá-la. Porém, admitiu que muitas vezes o fato de ser mulher facilita, como, por exemplo, “se tens que pedir ajuda na rua, se tens que entrar a um lugar, se tens que convencer os seguranças de que não és perigosa”.

Nos países nórdicos parece existir um avanço muito maior em relação à participação social das mulheres. Charlotte conta que, na Dinamarca, há muitas mulheres que se dedicam à indústria cinematográfica. Segundo ela, não existe dificuldade para trabalhar neste setor pelo fato de ser mulher, e o sexo feminino tem uma posição cada vez mais forte em todas as áreas de desempenho.

A diretora dinamarquesa também conta que na região onde vive não há nenhuma dúvida de que é preciso seguir lutando pela igualdade de direitos entre homens e mulheres. “Ainda existem alguns poucos casos de mulheres que recebem menos para fazer o mesmo trabalho que os homens, mas isso está mudando rapidamente. As mulheres estão se educando mais e melhor que os homens e está surgindo uma geração de mulheres muito fortes que querem homens também fortes. A pergunta é se eles vão conseguir nos acompanhar”, desafia.

 Na Noruega a situação é semelhante. Ellen conta que, apesar de ser um país pequeno, é muito rico em função do petróleo. Com isso, existe muito dinheiro para a produção cinematográfica. Ademais, o governo norueguês defende que deve haver mais igualdade de gênero na indústria cinematográfica e estabeleceu cotas para promover o ingresso de mulheres a esse setor. Segundo Ellen, os homens noruegueses responderam a isso dizendo que as mulheres não podem fazer filmes de tão boa qualidade quanto eles. “Eu acredito que se deve dar mais oportunidade às mulheres para que mostrem qualidade… tem a ver com dar a elas a oportunidade”, destaca ela.

Em países como Dinamarca e Noruega, parece existir um avanço muito maior em relação

à participação social das mulheres no mercado cinematográfico

A questão de igualdade de gênero não está vinculada somente com a inserção das mulheres no mercado cinematográfico, mas também a sua representação nos filmes. Ellen ressalta que o cinema comercial de ficção aborda temas pouco interessantes e que a maior parte dos papéis principais são dados a homens. Ela supõe que isso acontece porque somente cerca de 20% da direção dos filmes está a cargo de mulheres.

“Não é que os homens não fazem filmes que me interessam, porém não existem muito diretores noruegueses que façam filmes que eu goste porque os temas que eles escolhem não refletem meu mundo e minha realidade”, explica Ellen. Apesar disso, a inserção no mercado não muda automaticamente a representação delas no cinema, pois muitas vezes as próprias mulheres reproduzem uma imagem preconceituosa e depreciativa do sexo feminino que a mídia apresenta.

A doutoranda da Unicamp Maria Célia Orlato Selim, que estuda o feminismo no cinema e veio veio à capital argentina especialmente para conhecer o Mujeres em Foco, aponta que a questão não é só ocupar lugares, mas repensá-los e transformar a sociedade. Apesar de muitas diretoras seguirem reproduzindo a visão masculina que reifica o sexo feminino, ela acredita que a partir da retomada do cinema brasileiro, com o crescente número de mulheres na direção, existe espaço para outras reflexões e para a criação de um olhar diferente acerca do feminino.

Tania Fontenele também acredita que a visão patriarcal ainda permeia nossa sociedade. Para ela, por mais que se diga que a discussão dos direitos humanos é uma questão antiga e que hoje tenhamos uma sociedade muito mais igualitária, a mulher ainda precisa estar constantemente reafirmando sua capacidade. “Estamos avançando, mas ainda há muito por fazer e, como diretoras, temos a possibilidade de tentar mostrar isso no nosso dia a dia, nos nossos filmes. Havendo maior participação de mulheres, pode-se ampliar isso. Não se trata de ficar defendendo uma guerra de sexos. Precisamos crescer juntos, tanto homens quanto mulheres, mas como estamos em estágios diferentes é preciso de incentivos para mudar isso”, conclui.

Termina o Mulheres em Foco

A segunda edição do Mujeres em Foco terminou com uma festa de encerramento nesta segunda-feira, dia 9 de maio, na qual foram distinguidos seis filmes apresentados na mostra competitiva do evento. O jurado de curtas-metragens – composto por Adriana Causa (socióloga, feminista e docente da Universidade de Buenos Aires), Santiago Loza (realizador e roteirista argentino de cinema e teatro) e Clarissa Duque (documentarista venezuelana voltada para a cultura popular e a identidade latino-americana) – concedeu menções ao filme colombiano “Violeta” (Viviana Bohorquez Monsalve) e ao argentino “Marcela” (Gastón Siriczman). Já o curta cubano “La Tarea” (Milagro Farfán) levou o primeiro prêmio. Na categoria longa-metragem, Lucia Puenzo (escritora, roteirista e diretora), Juan Carlos Volnovich (investigador da relação entre a psicanálise e as teorias feministas) e Alejandra Almiron (montadora e documentarista argentina) decidiram outorgar menções ao argentino “Sofia” (Hernan Belón) e ao equatoriano “Justicia Nuestra” (Iris Disse). O primeiro prêmio foi conferido ao espanhol Herederas (Ariadna Relea).

*Aline Duvoisin é jornalista e faz mestrado em Teatro e Cinema Latino-Americano na Universidade de Buenos Aires. (alineduvoisin@hotmail.com)

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