Hélio Nascimento me recebeu em sua residência localizada na Avenida Independência em Porto Alegre numa tarde agradável de junho. Se, como ele mesmo explica nessa entrevista, o cenário em um filme pode ajudar a entender um personagem, a mesma coisa acontece na vida real. Do cenário do Hélio apenas pude observar a sua sala com grandes estantes e vários livros, o carpete adornando o ambiente e uma mesa grande, onde esparramei o gravador e o bloco de nota, e ele, as mãos. Pode-se perceber que é um apartamento sólido, resistente, organizado – assim como são os textos e as ideias do Hélio, o crítico, que há cinco décadas escreve sobre filmes. Discreto e simpático conversamos por uma hora acerca do jornalismo cultural, o qual Hélio vem acompanhando as mudanças e o papel da crítica, além, é claro, de falar sobre cinema.
Nonada – Há um debate muito forte atualmente sobre a questão da falta de crítica. Quer dizer que o espaço para a reflexão dentro das editorias de cultura está cada vez menor, e ao mesmo tempo serviço e agenda ganham cada vez mais destaque. Como o senhor observa essa questão?
Hélio Nascimento – Olha, eu acho que o fundamental é o seguinte: quem reclama que falta espaço tem razão, mas eu acho que o alvo da coisa não está bem colocado. Tem muito espaço para cinema sim, há páginas inteiras sobre lançamentos, sobretudo lançamentos de blockbusters americanos. Ganham páginas inteiras, os jornais chegam a mandar jornalistas para Los Angeles, Cidade do México, Nova York, para entrevistar os atores e as atrizes que participam dos filmes e tal. Então o cinema tem espaço, e isso não se pode negar. E é bom isso, como divulgação é plenamente válido.
Agora, eu concordo com as pessoas que estão reclamando que não existe mais, ou pelo menos diminui muito o espaço, da crítica que procura ver o filme e fazer a sua análise, independentemente da vida pessoal do ator. Quem reclama da situação atual está pensando nisso – que não existe mais um espaço para a reflexão e que existe mais um espaço para a divulgação. Deveria existir espaço para as duas coisas, acho que uma coisa não é incompatível com a outra.
É compreensível que quem aplique milhares de dólares em um filme como o “Piratas do Caribe” do Johny Depp, precise de espaço na imprensa porque, se não houver divulgação, a indústria não funciona. Mas o que a gente nota é que não há uma crítica reflexiva sobre o Jack Sparrow, não se fala das origens, o que representa, qual é o sentido da coisa, isso aí não tem. Eu acho que a crítica nesse sentido é válida. Espaço em termos quantitativos tem, em termos qualitativos já é outra coisa. Entretanto, a gente ainda encontra no jornal, de vez em quando, algumas críticas que valem a pena de serem lidas.
Nonada – O senhor vem escrevendo crítica há muito tempo…
Hélio Nascimento –Sim, há 50 anos.
Nonada – Como o senhor escolhe um filme para analisar? Ele precisa despertar algum conflito?
Hélio Nascimento –Observo os filmes que estão passando, quais são os diretores que são bons, quais os que não são, quais os que merecem ser acompanhados. Os próprios temas, as repercussões que o filme já pode ter alcançado antes. Se bem que hoje em dia os lançamentos são tão instantâneos em todo mundo, praticamente no mesmo dia. Então não tem mais essa de repercussão…
Nonada – Mudou então ao longo do tempo o modo de selecionar o filme para criticá-lo?
Hélio Nascimento –Sim. Para a tua geração ter uma ideia, um filme como A Ponte do Rio Kwai, do David Lean, feito em 1956, que ganhou Oscar e tudo mais,foi lançado no Brasil em 1960. Então as pessoas viajavam, voltavam e diziam “Olha, eu vi em nova York, vi em Londres, vi A Ponte do Rio Kwai”. Agora não, A Ponte do Rio Kwai de hoje é lançada no mesmo dia em vários lugares. Às vezes é lançada até antes no exterior do que no País de origem. Um desses filmes recentes e de grande sucesso de bilheteria, o RIO, foi lançado primeiro aqui, depois na Europa e nos Estados unidos.
Então, o que a gente precisa avaliar, quando vai escolher o filme para criticar, é a importância do tema e do diretor, que, geralmente, tem um passado. Não dá para se balizar por convites de cabine de imprensa. O problema dela é que não tem muito critério também, eles tão na deles, eles passam o que vem por aí. Não há uma preocupação de passar para a crítica só os filmes bons, eles passam todos até porque há um interesse quando o filme estreia, não é? Algo natural.
Nonada – Recentemente participei de um Congresso de Jornalismo Cultural e tive a oportunidade de assistir a uma palestra sobre produção teatral contemporânea. Nela, havia um crítico com uma longa carreira que disse que já poderia estar aposentado, mas continuava exercendo a crítica. Dito isso, eu lhe pergunto o que leva o senhor a continuar produzindo crítica após 50 anos?
Hélio Nascimento –Primeiro lugar, porque eu gosto. Segundo lugar, porque eu me sinto bem fazendo isso. Enquanto a gente não começar a dizer bobagem, ou fazer besteira, e se interessarem pelo que a gente escreve… Eu sempre fui uma pessoa que não gosta só de cinema, eu não sou o cinéfilo tradicional que sabe a ficha técnica de todos os filmes, ou quem foi o quinto eletricista do Rashomon, ou o segundo editor da Ponte Kwai. Eu não sei isso. Não acho que seja necessário gastar todo o tempo nesse tipo de coisa. Eu me interesso muito pelo mundo, pelas coisas que estão acontecendo e isso se reflete muito nos filmes também. Tem um colega de geração tua que escolheu as críticas que eu faço para ser o seu tema de TCC. E eu perguntei para ele o que lhe chamou a atenção nelas, e ele respondeu que era porque eu não falava sobre cinema. E a ideia é realmente essa. O cinema em si interessa para quem faz, daí então é necessário ir para a Universidade, aprender a fotografar, editar, filmar, etc. Mas para quem compra um ingresso e vai lá para olhar aquela janela que se abre para o mundo está interessado em outras coisas, e são essas outras coisas que mais me interessam. O crítico tem que falar sobre aquilo que os filmes falam. Não é falar sobre o filme em si, aí a gente vai ficar na fórmula, pura e simples, no formalismo, na técnica.
Nonada – Atualmente é difícil um jornalista se auto-intitular crítico. Perde-se a figura do especialista ou do intelectual em troca da opinião ou do “achismo”, muitas vezes.
Hélio Nascimento –Olha, isso que se chama de jornalismo cultural, isso é um produto. Não existia escola de jornalismo quando começou. Então realmente o que os jornais faziam era recrutarem pessoas que gostam de certa área para então cobri-la. Se precisava de uma coluna de literatura, então se chamava uma pessoa, que podia estar até no jornal, que gostasse de ler e que acompanhasse a literatura. E todas as artes são assim, né? Não faz muito tempo, 20 ou 15 anos atrás, esteve lá em Brasília um editor de um jornal inglês, o Times de Londres. E ele disse uma coisa interessante que lá na Grã Bretanha, que tem um dos jornalismos mais avançados do mundo, eles não têm escola de jornalismo. E então alguém perguntou como é que existia todo esse grande jornal e a BBC, etc… Pois é, acontecia essa mesma coisa: lá no início era assim, as empresas jornalísticas pegavam as pessoas que se interessavam por determinada área. “Aquele camarada lá tá por dentro de política internacional, então vai cobrir essa área”, e assim por diante. Hoje em dia não. Hoje em dia tu se forma jornalista e faz um pouco de tudo.
Nesses tempos uma coisa interessante é que quando chegava o foca na redação do jornal, isto é quando a nova geração aparecia, mandava fazer direto a parte policial. O cara ia pro necrotério, ia pro tráfico, fazia aquela coisa horrível que era chegar em famílias e pedir fotografia da vítima. Hoje em dia o camarada aparece na redação e vai fazer editoria de “frescura”, a parte de cultura. Então caiu muito isso aí, viu. Eu sou da época em que o Jornal do Brasil tinha um suplemente literário que saía todos os sábados e que era uma coisa fantástica, o Estado de São Paulo tinha o suplemente literário de sábado também, uma coisa extraordinária. Foi aí que eu comecei a ler o Paulo Emílio Soares Gomes e tal. E nenhum desses era jornalista, então…
Nonada – Para o senhor, o que forma um bom crítico de cinema? Há algum caminho a seguir?
Hélio Nascimento –Ah, isso vem de berço. O que eu posso falar para ti é uma coisa muito pessoal: desde guri, quando eu via os primeiros filmes, eu gostava de ir para casa rabiscar em cadernos sobre os filmes que via. Não tem um caminho certo, não há uma escola de crítica, onde você sai crítico de cinema, ou de música, ou de teatro, ou de pintura. Não existe isso aí. É um interesse que a pessoa tem por determinada arte, ou por determinado assunto, como política internacional, economia. Tem tantos jornalistas por aí que são tão dedicados a economia e fazem isso tão bem. Não precisa ser da mesma área. O que não é de se estranhar, porque o Palloci é médico e conhece números como poucos, não é? São interesses que as pessoas têm e vão atrás – o que, às vezes, não tem nada a ver com a profissão que ela escolhe. Moacyr Scliar era médico, Guimarães Rosa era médico, médico de aldeia, de andar pelo interior em cima de lomba de cavalo, atendendo pessoas. Depois ele se interessou pelo Itamaraty. Euclides da Cunha, um dos grandes escritores brasileiros, era engenheiro militar, não era literato nem artista, contudo ele tinha essa veia que não foi reprimida e culminou no Os Sertões.
Nonada – O senhor participa da ACCIRS (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul)?
Hélio Nascimento –Me convidaram, dou-me bem com todos eles e tal, mas eu não quis mais, não participo. Acho que a entidade deveria ser mais atuante, sobretudo no que se relaciona à qualidade de exibição. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma associação similar já protestou e já publicou manifestos sobre a projeção digital que não tem a mesma qualidade da projeção com película. Acho que a ACCIRS deveria ser mais atuante nesse sentido. É uma crítica construtiva, porque existir só para eleger no Festival de Gramado, né…
Nonada – O senhor, com certeza, tem filmes que lhe marcaram durante a carreira de crítico. Quais são e por quê?
Hélio Nascimento –Eu só queria deixar claro o seguinte: alguns filmes que me chamaram para o cinema, com o passar do tempo, continuaram filmes bons, felizmente. Mas, é claro, que com o passar dos anos eles foram dando lugar a outros filmes que eu passei a gostar mais. Sempre quando me perguntam isso eu lembro do Cinzas que queimam do Nicholas Ray, O Grande Segredo do Fritz Lang. Esses filmes foram alguns dos meus primeiros, eu nem sabia quem eram esses diretores, mas essas produções me chamaram muito a atenção.
Os filmes de aventura também, os famosos seriados, dos anos 30 e 40 que a gurizada da época via muito no cinema, domingo à tarde. O seriado era feito para ser exibido um capitulo por semana acompanhando determinados filmes. Isso parece que não deu certo então eles inventaram o seriado completo e passavam tudo junto de uma vez só, em um domingo. E eram sempre filmes de ação e de aventura, o Capitão América, tudo que está sendo refilmado agora, tudo teve origem nesses seriados. O Indiana Jones, por exemplo, é muito inspirado nos seriados daquela época. Tu vê que o Spielberg, inteligente como é, nos quatro filmes do aventureiro utiliza a mesma técnica do seriado: de 15 em 15 minutos o Indiana Jones enfrenta uma situação esperada. O Indiana é nada mais que um seriado completo, muito bem feito.
Nonada – Quais críticos de cinema você leu em sua formação e como isso lhe foi importante?
Hélio Nascimento –Quem primeiro eu li aqui em Porto Alegre foi o P.F Gastal que hoje é nome de cinema na cidade. Ele escrevia no antigo Correio do Povo, na Folha da Tarde que já desapareceu. Também o Paulo Emílio Sales Gomes, que eu já comentei, no suplemento Literário do Estado de São Paulo. E no Rio de Janeiro, o Antônio Moniziana, no Correio da Manhã. Esses três foram pontos de inspiração aqui no Brasil. O Gastal foi o primeiro, quando eu era guri eu pegava o Correio do Povo e o lia rapidamente, foi aí que começou a me chamar a atenção todo o contexto por trás de um filme, o que era um diretor e tal; porque o guri que ia ao cinema não sabia o que era isso. Eu pensava que o sujeito que estava no filme, o ator principal, fazia tudo que queria por vontade própria. Depois tu vai descobrir que qualquer gesto que ele fizer foi ensaiado, como uma coreografia. Eu descobri isso depois a partir da leitura de outros críticos.
Nonada – Você mantém contato com outros críticos atualmente, há algum diálogo?
Hélio Nascimento –Eu me dou normalmente com um ou outro que escreve… Mantenho contato sim. E alguns até acho que são bons, mas agora, como eu dizia, o espaço para a reflexão nos grandes jornais está cada vez menor. Felizmente, na minha seção do Jornal do Comercio, não há nenhum tipo de interferência, o espaço não é muito grande, mas, por enquanto, me é suficiente. Eu sempre me preocupei muito com isso, em sintetizar muita coisa, descobrir uma cena que resuma, que pegue o essencial, porque não dá para falar tudo também no espaço que eu tenho. Mas tu podes selecionar uma cena e a partir daquela cena mostrar para que o filme veio, porque ele existe e o que ele pretende.
Nonada – Como é o seu processo na escrita da crítica?
Hélio Nascimento –Eu vejo o filme, depois eu procuro analisá-lo. Não saberia te dizer que tipo de método é esse, quer dizer, eu parto da ideia de que o filme é obra de um determinado autor que quer dizer alguma coisa com aquilo. Porque a linguagem de cinema é diferente. As pessoas foram acostumadas com séculos e séculos de teatro, de literatura, e então veio o cinema com outro método, com outra ideia. Entende-se a partir de uma situação. Um objeto, por exemplo, em um romance literário, vai ter que ser descrito minuciosamente. No cinema, por outro lado, as coisas mais importantes estão escondidas, ou quase passam despercebidas.
Tem um filme do Visconti, Violência e Paixão, que o personagem é assassinado e o filme não deixa claro quem o matou. Quer dizer, os outros personagens não sabem quem é o assassino, mas o espectador, se prestou bem atenção, sabe. Tem um sujeito que anda todo o filme com uma manta. E, quando é encontrado o sujeito assassinado, ele está segurando a manta – só que ninguém no filme cita isso. É um pouco diferente da literatura, tem que se prestar muita atenção e é a partir do visual que o cinema mostra isso.
Há também aquele diretor de cinema musical americano o Vicent Minelli que em uma entrevista revelou que não gostava de filmar em primeiro plano, porque isolaria o personagem do cenário. Ou seja, isola o personagem de sua história. Se tu entras aqui nessa casa, tu verás que uma parte da minha vida está aqui. Então, também através do cenário a história do ser humano, daquele personagem, é contada. Isso é algo muito cinematográfico – e que veio da pintura, é claro. É preciso prestar atenção nisso quando se vê um filme. O cenário ele também é um mundo.
Bergman, por outro lado, já preferia o primeiro plano, porque achava que estava tudo sintetizado no rosto da pessoa. Daí tu vai ver um filme como Morangos Silvestres e pega o plano final em que o professor olha a imagem do passado, e vê a infância dele, e a imagem de um cidadão de mais de 80 anos vai se desfigurando e se transformando em uma criança… O cinema é tão rico que um modo de filmar não exclui o outro, trata-se de um mútuo enriquecimento.
Nonada – Tu tens alguma preferência pelo cinema europeu, americano ou alguma outra vertente?
Hélio Nascimento –Os franceses irmãos Lumière inventaram o mecanismo. O Méliès inventou a fantasia com A Viagem à Lua, toda essa coisa. Mas quem inventou realmente o cinema, isso que todo mundo entende por cinema atualmente, a narrativa, foi o Griffith, o norte americano. Esse é o pai de todos. Não estou dizendo nenhuma heresia, o Serguei Eisenstein também dizia isso: “nosso grande pai, o Griffith”. Isso é inegável. O André Bazin dizia que o Western era o cinema americano por excelência, mas é o americano que é o cinema por excelência. Se tu pegar, por exemplo, o neo-realismo italiano, ou o cinema iraniano atual- antes desse imbecil do Mahmoud Ahmadinejad assumir e praticamente destruir com o cinema iraniano -, tu vê que a origem está lá no cinema americano. É o personagem, é o cotidiano, é a casa, é nós dois conversando aqui. Essa é a grande lição.
Até o Kubrick, com todas aquelas cenas grandiosas, como em 2001, por exemplo, do episódio do cientista, trata do cotidiano: o cara dentro da nave conversando com os colegas. Se não tem aquilo ali, ninguém verá o filme. Tem que ter gente, tem que ter personagem. Essa é a grande lição do cinema americano. Eles não são os únicos, é claro. Bergman, Visconti, Renoir, David Lean, cinema europeu é de uma riqueza extraordinária. Mas a importância do cinema americano é essa: a valorização do personagem, eles botaram o ser humano no centro. Se o cinema deles é o melhor do mundo ou não é, isso é secundário. E os bons foram atrás disso, perceberam isso. E, além disso, eles inventaram a narrativa, campo, contracampo, toda a linguagem. Isso tudo está em O Nascimento de uma Nação, aliás, o título deveria ter sido o Nascimento do Cinema. Tá todo o cinema ali. Ações paralelas, etc. O Griffith foi realmente um dos gênios do século.
Nonada – É mais fácil criticar um filme ruim ou um bom?
Hélio Nascimento –Ah, sem dúvida, é mais fácil escrever sobre o bom, claro. A coisa mais trabalhosa para um crítico de cinema é escrever sobre um filme que tu não gostou. Dá trabalho, é algo meio aborrecido, pra resumir tu não tens entusiasmo e sem isso, a coisa fica difícil. A não ser quando é o filme de um diretor importante, que possa ter dado o passo em falso, mas escrever sobre filmes ruins e diretores sem valor é difícil, realmente é complicado.
Nonada – Já sofreu retaliação porque alguém não gostou do que tu escreveste?
Hélio Nascimento –Isso acontece, ninguém é obrigado a concordar, né? Imagino que tenham algumas pessoas que por motivo ou outro possam não gostar. Mas sabe que eu acho o seguinte: esse negócio de gostar ou não gostar de um filme é algo secundário, acho que o fundamental é entender aquilo que está vendo, então mesmo que seja complicado escrever sobre um filme que tu não goste, o mais importante é tu perceber o que o filme representa. Isso é a crítica mesmo, não é o gosto pessoal. Se bem que o gosto pessoal dá um sabor para a crítica também, até para quem lê e concorda com o crítico é legal.
Nonada – E a sua opinião sobre o cinema 3D, acha que será o futuro?
Hélio Nascimento –Sinceramente, por enquanto o 3D tem um problema: ele torna a imagem muito escura, perde um pouco daquele esplendor visual do cinema. Mas, pelo que eu to vendo aí, daqui a pouco não vai mais precisar de óculos e na hora que não precisar mais de óculos, a coisa vai entrar. Como entrou o cinema sonoro. Acho que grandes filmes serão feitos em terceira dimensão ainda e muitos filmes ruins também serão feitos em terceira dimensão. A tendência, com o tempo, é que os óculos sejam abandonados, daí a luz melhorará e tenho a impressão que a coisa vai continuar e se aprimorar. Sempre foi assim. Quando o som surgiu, o próprio Chaplin teve algumas restrições, acreditava que iria acabar com o cinema, mas não terminou não, não terminou nem com o cinema dele, porque ele acabou fazendo muita obra prima depois que entrou o som, como Tempos Modernos, Luzes da Ribalta… Já vivi o suficiente para não emitir um juízo negativo. Olha, essas coisas técnicas, quando aparecem, elas vêm para ficar.
Nonada – E sobre as salas de cinema de Porto Alegre, o que acha delas?
Hélio Nascimento –Em geral são boas. Para mim, sala boa é aquela tem uma boa projeção, nitidez, tem luz, foco, som bom. Agora acho que o público também tem que ter um pouco de critério e aprender a reclamar, porque, às vezes, você vê projeções muito escuras e ninguém reclama. Eu já estive em uma projeção em que o camarada errou a lente. Ele passou em cinemacospe, os personagens gordos, os carros compridos, e ninguém reclamava na plateia. Aí eu tive que ir lá, fui ver nas latas e realmente o pessoal do cinema não tinha culpa: a lata estava com a orientação errada. Mas o pessoal da plateia não reclama. Eu sou da época em que se tinha qualquer coisinha fora de foco, havia reclamação. Agora não, há uma extrema passividade.
Nonada – Pois é, no seu tempo o cinema era um assunto mais regular. As pessoas se encontravam para comentar sobre ele.
Hélio Nascimento –Olha, quando eu comecei nos anos 60, era época da Nouvelle Vague, aquela coisa toda. Mas também tem uma coisa: naquela época não tinha televisão, ou internet, não tinha nada. O Fellini é que dizia que o cinema tinha o monopólio da imagem em movimento. Se a pessoa quisesse ver a realidade na tela, ela tinha que ir no cinema. Hoje em dia a imagem está vulgarizada, é internet, é televisão, é isso e aquilo. Caiu um pouco o nível, pois aumentou o número de ofertas. Para tu ter uma ideia, por exemplo, um filme como Hiroshima Meu Amor, o Ano Passado em Marienbaderam lançados em cinemas do centro cinco seções por dia e ficavam duas ou três semanas. Atualmente, se tu colocasses um filme como o Ano Passado…em shopping sairia de cartaz após uma semana, depois iria para uma sala menor até sair do circuito encontrando lugar em salas alternativas. Esses dois filmes que citei foram lançados nos extintos cinema Guarani, na Rua da Praia, e no Ópera, também pela Rua da Praia.
Nonada – Não há mais cinema de ruaem Porto Alegre, né…
Hélio Nascimento –Não. Em algumas cidades ainda têm, como o Rio de Janeiro. Tem bons. Ali em Copacabana, Rox tem três salas,,é em um bairro e tem uma certa segurança. No Cinema da Rua da Praia quem é que vai ver uma sessão das 22h? Liquidaram, liquidaram.
Nonada – Agora, voltando um pouco para crítica… O que você evita fazer nela?
Hélio Nascimento –Eu evito, por exemplo, falar de coisas exteriores ao filme. Se eu vou falar de fotografia, da música, dos atores, da decoração, para falar disso tu tens que falar e explicar porque aquilo está sendo usado e porque está sendo feito de determinada maneira. E isso são coisas que não é só o cinema que te dá, são as outras artes também. Vou te dar um exemplo, para ficar mais prático ver como funciona. Em uma ópera, na cena de amor o sujeito canta para uma mulher uma ária de amor, revelando que está apaixonado. Então, há uma determinada melodia que acompanha isso. De repente, nessa melodia aparece um pequeno tema que tu conhece de algum lugar, de uma cena anterior. E isso acompanhou uma outra personagem feminina. Ou seja, quando o personagem está dizendo para a mulher que gosta dela e de repente aparece aquele tema da outra personagem feminina, fica claro que ele está mentindo. E isso se usa muito no cinema, então para falar em música em cinema, não é o caso de falar se é bom ou ruim: tem que explicar como a música é utilizada. Mesma coisa com a fotografia, por que certa luz acompanha o personagem. De repente esse personagem está na rua e esse tipo de cor aparece, em uma situação semelhante à anterior e assim por diante.
Negócio de ator e atriz não adiante eu falar, ah, porque o ator é bom, o ator é ruim. Isso não existe. Cinema é a filosofia dos atores. Interpretação é mais para teatro. Para cinema depende muito, tem que ter o jeito, a fisionomia, a maneira de falar e como a câmera se posiciona. Não é a interpretação em si. Claro que é importante, mas não é o essencial. Então, eu evito falar dessas coisas de maneira a dizer que é muito bom ou muito ruim.
Nonada – Atualmente tem visto algum filme que lhe marcou?
Hélio Nascimento –Olha, eu tenho visto belos filmes. Quando dizem que o cinema está em crise, eu digo que alguns dos melhores filmes que eu já vi, eu vi no século XXI. A Fita Branca, do Michael Haneke, o Match Point do Woody Allen, A Menina de Ouro do Clint Eastwood, A Vida dos Outros, do alemão Florian Henckel von Donnersmarc e O Homem que Grita do Mahamat-Saleh Haroun. O cinema não está em crise não.
O que as pessoas estão de certa maneira com razão é que o cinema americano, que domina 80% do mercado, está em crise. Durante os anos 40, 50 e 60, se me perguntassem quantos diretores bons tinha no cinema americano, tu citava uns 30 ou 40 ótimos, porque cada um fazia dois ou três filmes por ano. Atualmente, há quatro ou cinco diretores de altíssimo nível: o Scorcese, o Eastwood, o Woody Allen, os Irmãos Coen, por aí. Mas então, o mercado está se ressentindo desses grandes nomes. E eles estão trabalhando muito, pois sentem que se não fizerem, ninguém mais fará.
Nonada – Consegue notar alguma corrente nova no cinema, alguma escola?
Hélio Nascimento -Acho muito interessantes os filmes iranianos. Inclusive esse cineasta que está preso, o Jafar Panahi, é muito bom. Infelizmente, ao invés de deixarem ele fazendo filmes, colocaram ele na cadeia, por que ele filmou lá uma manifestação contra o governo. O cinema iraniano, para driblar a censura, usava muito as crianças. Então, elas vivenciavam dramas que os adultos viveriam, logo a censurava deixava passar. O Panahi, para tu ter uma ideia, tem esse filme chamado O Espelho, que começa do seguinte jeito: uma menina lá pelos seus 10 anos de idade termina a aula e fica na frente do colégio, esperando que a mãe vá pegá-la. Por um motivo que não interessa, a mãe não vem. E ela começa a observar as pessoas na rua. Isso, por si só, já é fantástico. Depois de uma meia hora, por aí, a guriazinha se irrita e resolve entrar no primeiro ônibus que aparece. Daí a câmera é colocada dentro da porta do ônibus, e quando a menina entra no ônibus você escuta uma voz: “não olha para a câmera”. O cinema iraniano brinca muito com isso, com a metalinguagem. Quando eu vejo, ela está olhando para a câmera, e diz que não quer mais trabalhar nesse filme. Daí tu escuta a voz de novo “não corta, não corta, continua filmando”, então aquilo que era um filme sobre uma menina cuja mãe não pode buscá-la na hora da escola se transforma num documentário sobre uma menina iraniana que é contratada por uma companhia de cinema iraniana para fazer o papel da menina no filme. Esse é o Panahii, que atualmente está preso. É bom que as pessoas saibam disso, saibam quem é esse diretor. Ele foi condenado a 8 anos de prisão e durante 20 anos ele não pode trabalhar. Não pode nem escrever os roteiros. Censura total.
* A imagem da home do site foi retirada da galeria de fotos da entrevista que Hélio Nascimento concedeu ao Encontros com o Professor.