Uma obra inédita de um dos mais reconhecidos autores na língua portuguesa deve ser publicada dia 17/10 (segunda-feira) em Portugal. Trata-se do romance Claraboia (assim mesmo, sem acento), de José Saramago, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1998. A editora responsável pelo lançamento é a Editorial Caminho. O livro ainda não tem data prevista para ser impresso em terras brasileiras.
Claraboia é um romance que se passa na Lisboa do século XX, por volta de 1950, época em que Saramago escrevera a obra. Em um edifício vivem quatro homens com suas famílias: um sapateiro, um caixeiro-viajante, um empregado de um jornal, um empregado de escritório, além de uma família de quatro mulheres e uma solteirona que vive sozinha. O romance avança desvelando as vidas daquelas pessoas de classe média com seus dramas pessoais e familiares, suas frustrações e a miséria material e moral.
Saramago não guardou uma cópia da obra, e o manuscrito se perdeu nos arquivos da editora até ser encontrado em 1980 após uma mudança. O escritor resolveu não lançar o livro por acreditar que a obra não teria mais as suas características. No entanto, ele autorizou seus herdeiros à publicá-la. O romance Claraboia então fica sendo, cronologicamente, o primeiro grande romance escrito pelo português a ser lançado. Percebe-se que há uma estrutura narrativa muito diferente da que consagrou o escritor, com separação de parágrafos e maior obediência às regras de pontuação. Aos mais interessados, eis um excerto (uma parte da obra):
Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pela das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada.
Contemplando com desalento os pés descalços assentes no tapete, Silvestre coçou a cabeça grisalha. Depois passou a mão pelo rosto, apalpou os ossos e a barba. De má vontade, levantou-se e deu alguns passos no quarto. Tinha uma figura algo quixotesca, empoleirado nas altas pernas como andas, em cuecas e camisola, a trunfa de cabelos manchados e sal-e-pimenta, o nariz grande e adunco, e aquele tronco poderoso que as pernas mal suportavam.
Procurou as calças e não deu com elas. Estendendo o pescoço para o lado da porta, gritou:
– Mariana! Eh, Mariana! Onde estão as minhas calças?
(Voz de dentro:)
– Já lá vai!
Pelo modo de andar, adivinhava-se que Mariana era gorda e que não poderia vir depressa. Silvestre teve de esperar um bom pedaço e esperou com paciência. A mulher apareceu à porta:
– Estão aqui.
Trazia as calças dobradas no braço direito, um braço mais gordo que as pernas de Silvestre. E acrescentou:
– Não sei que fazes aos botões das calças, que todas as semanas desaparecem. Estou a ver que tenho de passar a pregá-los com arame…
A voz de Mariana era tão gorda como a sua dona.