Candidato a lançamento editorial do ano, a reunião completa da obra poética do escritor curitibano Paulo Leminski é um acontecimento único no mercado literário brasileiro. “Toda poesia” (Companhia das Letras, 421 págs.) reúne de forma inédita a vasta produção poética do grande agitador, ensaísta, cronista, contistas, biógrafo, romancista, mestre zen e lutador de judô Paulo Leminski. Nascido numa paisagem rara de escritores de peso nacional – estão aí para demonstrar a distância de tempo entre o surgimento de um Dalton Trevisan e a revelação literária tardia do acadêmico Cristóvão Tezza –, Curitiba nos deu Leminski e toda sua inquietação coloquial. Sua poesia, contestadora na essência, foi além de seu tempo. Universal, dali para o mundo. Chega a nós, agora completa. Até que enfim!
Para enfrentar os limites de uma cidade ainda provinciana na década de 1970 – a Curitiba dos costumes reprimidos e dos vampiros esfomeados tão bem retratados nas histórias de Dalton Trevisan – foi ali que Leminski produziu obras impressionantes no campo da poesia e da prosa. “Catatau”, por exemplo, é um obra extraordinária no cenário literário brasileiro e que narra, de forma fictícia, a chegada de Descartes ao Brasil Colonial ocupado por holandeses. Trata-se de um tratado filosófico-literário-linguístico sem precedentes nem iguais na literatura brasileira, antes e depois de seus lançamento (1975), verdadeira obra-prima da literatura brasileira de invenção do século 20. Único paralelo em inventividade surge muito antes: Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. No ramo da poesia, agora reunida em sua loucura insana, Leminski talvez vá mais longe ainda na experimentação. Ele preencheu um espaço de criação poética nunca antes transitado por por nenhum poeta contemporâneo seu, vivo ou morto, de ontem ou de hoje. Caminhando entre a erudição e o popular, brincando com as formas leves e com a própria leveza do texto, criando em torno de si toda uma carga de signos e significados, arrastando junto a vanguarda poética que se seguiu e associando-se com a nata da música popular brasileira, Leminski foi ímpar na forma e no conteúdo. No uso de suas ferramentas múltiplas da língua e com um trabalho de carpinteiro literário, Leminski influenciou gerações e gerações de poetas que se seguiram. A reunião de toda sua produção poética vem fazer justiça a um dos escritores fundamentais de nossa prosa contemporânea. Até porque sua produção poética permaneceu fora de catálogo por muito tempo… e agora está aí, num tijolo laranja e com um preço bem camarada.
O mérito de sua escrita incisiva está na ousadia. A grande ousadia de Leminski foi ter criado poemas caledoscópicos, à semelhança de poeta concretista dos anos 1960, poemas humanos e cotidianos, tal como um poeta caminhante e perspicaz como Drummond, ou irônico e desconcertante como Mário Quintana; poemas esses absolutamente líricos, universais e diretos e com a força e precisão exata e enxuta de um hai-kai japonês. Tudo isso a mostrar como sua poesia acabou se transformando em referência literária e intelectual máxima para toda a produção poética que surgiu no Brasil a partir dos anos 1970. O lugar de Paulo Leminski no olimpo da poesia brasileira está garantido – e a leitura dessa produção inquieta, irreverente e insular está agora assegurado. Retorna ao público, retorna à vida.
Em Leminski, estamos diante de um grande expoente não só da poesia, mas da cultura brasileira e toda sua parafernália de cruzamentos culturais que reuniu em torno de si: de origem polonesa, viveu a cultura japonesa e escreveu com a ginga de um samba autêntico de raiz. Tanto que em seu texto de apresentação, a Folha de São Paulo o definiu assim (se é que alguém como ele pode ser definido): “A Besta dos Pinheirais, Boia-Fria do Texto, Bandido que Sabia Latim ou Polaco Loco Paca, tradutor de Joyce, Petrônio e Mishima, faixa preta de judô, professor de cursinho, compositor parceiro de Caetano Veloso, Moraes Moreira e Itamar Assumpção, biógrafo de Trótski e de Jesus, roteirista de quadrinhos, ensaísta, jornalista, publicitário, contista, autor de infantojuvenis, romancista, o acima de tudo poeta Paulo Leminski, mestiço de negra e polonês, nascido na capital do Paraná sob os signos de Virgem e Macaco, escreveu para si o seguinte epitáfio: Aqui jaz um grande poeta./ Nada deixou escrito./ Este silêncio, acredito, /são suas obras completas”. A diferença de formas de atuação na cena cultural brasileira presente nessa elíptica descrição bem-humorada mostra a profundidade da atuação desse pensador paranaense. Leminski viveu pouco, 44 anos, mas viveu intensamente. Ou como escreveu: esta vida é uma viagem / pena eu estar / só de passagem.
Arquitetura literária simples e ao mesmo tempo profunda, crítica e complexa. Nonsense na criação de formas únicas de humor cotidiano. Profundidade reflexiva sobre os fatos da vida em textos carregados de experimentalismo verbal. Isto é Leminski! Poeta onde “tudo sucede súbito”, e somos convidados agora à leitura desse belo lançamento editorial, cuja capa traz o famoso bigode do poeta. Somo invitados a caminhar pela verve única de um dos maiores expoentes da poesia brasileira contemporânea – de todos os tempos.
Edgar Aristimunho é escritor e revisor, com pós-graduação lato senso em Letras pela UniRitter. Tem publicado pela editoria Dom Quixote o livro de contos O Homem perplexo (2008) e participou da antologia Ponto de Partilha”. Escreve no blog O Íncubo (http://oincubo.blogspot.com)