Foi no branco pálido de uma livraria curitibana localizada nas terras do norte do Paraná que eu pisei no skate de Paulo Scott. Acidentes à parte, o encontro casual com o novo livro do poeta, novelista, dramaturgo e romancista gaúcho tem lá seus beneméritos próprios. Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (Companhia das Letras, 75 pg.), seu mais recente livro de poesia, é um desafio que começa pelo título. Começa e não termina. Propriamente, não há fim único na poesia de Scott: ela é a todo (e a qualquer) instante revolta e revelação. Desvendar os poemas de Paulo Scott é constatar que não há “nenhum que sirva para me acalmar”, e esta força e violência verbal que por primeiro nos impõe. A sua poesia é feita a ferro e fogo. O livro está à venda nas melhores casas do ramo.
O projeto poético de Paulo Scott é uma caixa preta, daquelas de avião de grande porte, ainda não encontrada. Os segredos de sua escrita – nesta bobagem impulsiva de “entender o autor” – não se comportam bem nas quatro linhas de uma quadra, na pista de patinação e nem cabem nos quadrantes aleatórios de uma folha de papel, nas páginas de um livro, e pouco estão se lixando para “os anseios do leitor”. A impressão ao ler os poemas (e também os contos de seu dissonante Ainda orangotangos) é que aquilo que precisava ser dito foi retirado propositalmente pelo autor. As vísceras estão à mesa – e talvez sejam as suas. Ler Paulo Scott é buscar as pequenas partes de um quebra-cabeça minucioso, e o cubo, uma vez montado, nos remete ao princípio de tudo, energia vital da poesia: o estranhamento da palavra. São assim os poetas, esses eternos ousados/olvidados: eles costumam nos mostrar sem meio tom: a palavra sai como lasca, esconde-se “nas janelas arrancadas de um pássaro”, estado inicial de afogamento, porque é assim a poesia de Scott: salvamento. Sim, recomendo medo, respire ao ler. Respira também você Scott, respira, sim, porque a tua poesia não fala de filhos, mas não mente em momento algum que você já é um escritor. “tudo está perfeito / mas continua, viu – / possivelmente hostil / com o que sobrou”.
Pouco importa saber se a poesia de Paulo Scott tem marcas comuns com os poetas de sua geração (desculpa aí, Paulo Henriques Britto), porque a geração de Scott é a dos robalos de Ainda orangotangos. Está consagrada em formas sintéticas e randômicas de um poema que fala de tecnologias tais, mas em seguida nos avisa: “trate logo / porque em algum lugar sempre sangra”, frase de conteúdo assaz arqueológico das relações humanas instáveis/instantes, tão comum na obra de Scott, como de resto a parte mais sumô e japa (de novo o Paraná) do inquietante livro de poesias A timidez do monstro (para minha pessoa, o melhor). Sua trajetória anterior, bem entendida a trajetória anterior que percorri ao longo de sua obra poética, tem a lucidez de uma “capotagem de mobilete” e a claridade de uma “lã de vidro”, expressão bem apanhada pelo crítico literário José Castello; quanto aos contos, o estranhamento é como o título de um dos capítulos de O inútil de cada um, do lendário Mário Peixoto: “o ruído prossegue”; na sua obra mais extensa, o romance Habitante irreal já provou que diferente de sua geração – vai daí eu contrariar de novo o Paulo Henriques Britto, quem sou eu – o escritor Paulo Scott é alguém consciente de seu tempo. Ele morde o real, queiramos ou não participar deste banquete com raspas de vilania. Como escreveu o citado José Castello na resenha de Mesmo sem dinheiro… : “Um escritor precisa ter coragem não só para reconhecer os próprios limites, mas para enfrentar suas falsificações”. Scott sabe disso. Sabe mais: que nós leitores “estamos viciados deste mal conseguir”. Poesia pura não se fabrica, se vive / se vivo.
Encontrar a poesia de Paulo Scott em seu mais novo livro de poesia é reencontrar o arrebatamento da surpresa, a inquietação da dúvida em suspensão, a certeza que não temos nada para encontrar em seus poemas. Lamento, porque saibam ou não, de resto, ele já retirou isso de nós. Tipo – e nem percebemos. Como já nos avisou o próprio escritor em outras palestras e demais plataformas – seja no bar, durante o intervalo do show ou rabiscando um generoso autógrafo – o ser político que escreve só pode ter um comprometimento com o leitor: a honestidade. Sina.
Boa leitura.