Em exposição prevista para ser aberta na cidade nos próximos dias (*), o público gaúcho poderá ter acesso a itens pessoais e objetos relacionados à produção escrita do escritor holandês Thomas Bernhard (1931-1989). O privilégio de conhecer em detalhes aspectos pessoais da vida do escritor, que viveu parte de sua existência na Áustria, nos permitirá quem sabe conhecer algumas particularidades deste que sempre foi considerado um escritor tumultuado, para não dizer perturbado, quase o título de uma de suas obras. Em O sobrinho de Wittgenstein – uma amizade, livro escolhido para ser resenhado aqui hoje, temos um relato bastante peculiar desse representante da literatura escrita em alemão.
A curiosidade sobre essa pequena novela, um misto de ficção, depoimentos e memórias do próprio escritor é realmente grande para o leitor mais astuto. A questão toda é: como imaginar que um grande escritor de língua alemã, de repente, no meio da carreira e logo após lançado Perturbação, resolva escrever sobre o sobrinho de um dos maiores filósofos do século XX, Ludwig Wittgenstein, sem que a isto dê o nome de biografia. A história contida nesse monólogo contínuo de fato pertence ao ciclo de suas narrativas autobiográficas. O registro do depoimento contido no livro parte de um fato real e concreto de que Thomas Bernhard, doente internado em uma clínica na Áustria para resolver problema gravíssimo no pulmão, inicia o relato descrevendo toda sua admiração por Paul Wittgenstein, sobrinho do grande filósofo Ludwig Wittgenstein. Tal como o seu tio Ludwig, o famoso filósofo, Paul nasceu em uma das famílias mais ricas de Viena e herdou uma fortuna considerável. Como Ludwig, Paul deu mais longe e acabou pobre e à mercê de sua rica família que parece ter cuidado mais em afastá-lo da fortuna do que da loucura. O narrador também afirma que, assim como Ludwig sempre foi conhecido como talvez o maior filósofo que Viena produziu, Paul foi um dos loucos mais famosos da cidade. Toda essa admiração pela figura de Paul surge num relato rápido e num fluxo contínuo, e assim se constrói para que o leitor não consiga respirar durante a narrativa desses momentos íntimos e curiosos da vida de Paul Wittgenstein, amigo decisivo emocionalmente para o escritor, esse austríaco por opção.
O sobrinho de Wittgenstein é uma obra de Thomas Bernhard com traços autobiográficos, crucial dentro da carreira desse escritor de língua alemã (apesar de holandês, adotou a língua de Goethe desde o início). Nela, temos belos relatos sobre as crueldades médicas numa clínica de recuperação; sobre o rigor das instituições e sobre as estratégias dos pacientes para driblar tudo isso; e relatos sobre a estranha recusa de Thomas Bernhard em receber prêmios literários, bem como uma descrição hilária sobre o mundo dos cafés literários fúteis e evasivos de Viena. E ainda que muitos críticos literários considerem A força do hábito (parábola sobre autoritarismo) a obra-prima do autor, a pequena novela O sobrinho de Wittgenstein revela uma leveza na escrita de um autor que ficou caracterizado por retratar, em suas obras, temas pesados tais como a morte, o suicídio, a solidão, a depressão, o absurdo… Nas palavras de Luciano Alabarse, diretor de teatro gaúcho que adaptou a obra do “austríaco”, o que impressiona em Thomas Bernhard “é a capacidade que esse artista tem de chamar atenção, de nos deixar paralisados diante de sua obra.” Foi assim com alguns de seus principais romances: Perturbação, O imitador de vozes, O náufrago, todos disponíveis em boas traduções aqui no Brasil.
A leitura de O sobrinho de Wittgenstein exigirá do leitor concentração, fôlego e algum tato com nomes e expressões do alemão que surgirão no texto. Nada assim tão trágico. Aliás, no belo texto desse livro tudo está colocado de uma forma bastante leve, até certo ponto divertida e bem menos trágica do que foi a vida deste contestador e irreverente escritor, representante radical da literatura de língua alemã.
Boa leitura.
(*) No dia 16 de outubro começou em Porto Alegre uma estupenda exposição de fotos, manuscritos e documentos de Thomas Bernhard, com ensaios esclarecedores sobre a vida e a obra deste polêmico autor austríaco. Local: Memorial do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Praça Marechal Deodoro, n. 110, Centro Histórico.