por João Vicente Ribas
*artigo publicado originalmente no blog Gauchismo Líquido e no Pampurbana.
Nunca o jornalismo cultural gaúcho foi uma arena tão disputada quanto nos anos 80, auge do nativismo, década de aguerridos debates estéticos sobre a música e a cultura do estado. Em cada final de semana, em alguma cidade do interior, sempre havia um festival e a conseqüente discordância sobre seu resultado. Um dos momentos mais interessantes se deu em 1982, quando a polêmica girou em torno do festival Uma Canção para São Borja.
Dois debatedores de peso duelaram com artigos publicados no jornal Zero Hora. Primeiro, Antônio Augusto Fagundes, que recém havia estreado o programa Galpão Crioulo na RBS TV. Depois, a réplica de Sérgio Jacaré Metz, que iniciava naquele ano a primeira parceria com Carlos Leandro Cachoeira, dando origem mais tarde ao grupo Tambo do Bando.
Para começar, o motivo da discórdia foi a escolha da música São Borja, Canto e Ritmo, composta por Jacaré e Cachoeira, como grande vencedora do festival dos 300 anos da cidade. Nico Fagundes contestou o resultado, alegando que sua composição concorrente, classificada em segundo lugar, A canção de São Borja, merecia a vitória. No mesmo ano da publicação dos textos, 1982, a Califórnia da Canção Nativa foi palco de intensa disputa estética, entre artistas e entre o público.
Para que o leitor se ambiente no calor daquela época, proponho assistir abaixo a reportagem de resgate histórico, que fiz para a TVE no ano passado. Atenção para a enquete do final da noite, com o pessoal indignado; para o cantor Leopoldo Rassier puxando uma adaga na interpretação de Não Podemo Se Entregá pros Home; e para a banda que acompanha Mário Barbará, o lendário musical Saracura, com Nico Nicolaiewsky no piano e Fernando Pezão na bateria.
Agora vamos às minúcias dos textos, para compreendermos mais este debate.
Fagundes iniciou o artigo de 16 de outubro de 1982 saudando a proliferação dos festivais nativistas. “Faz-se assim uma autêntica lavagem cerebral de jovens que, em caso contrário, estariam fazendo uma música alienada que a nada conduz”. Mas ressalvou que os organizadores dos festivais precisavam tomar mais cuidado. “O que acaba de acontecer em São Borja não pode se repetir”, sentenciou.O apresentador do programa Galpão Crioulo reclamava que o regulamento do festival Uma Canção para São Borja só admitia ritmos rio-grandenses. E a música escolhida vencedora era um misto de zamba com rasguido doble, ritmos argentinos. Nico Fagundes também contestou a letra da canção vencedora, de Jacaré, que trazia os seguintes versos no refrão: “entre irmãos de arte, geografia à parte, não há contrabando”. Sobre isto escreveu:
Há contrabando, há desinformação, há amizades no júri, conterrâneos e muito uísque enchendo os jurados. O que não há é charango, cordilheira e zamba, em São Borja. Nem rasguido doble, apesar de ser esse ritmo de certa forma comum em Corrientes, do outro lado do rio Uruguai, argumento que não socorre a zamba, que diz respeito a Santiago del Estero. Se há um regulamento, com toda a aparência de rigoroso, que seja cumprido. Se é pra ser desrespeitado, que não se tente dar aparência de sério a um festival que não o é. (Nico Fagundes)
Sérgio Jacaré Metz defendeu-se em 22 de outubro de 1982, afirmando que a questão da arte no Rio Grande do Sul estava tomando tal forma, seguindo à risca os manuais e regulamentos – pela fatalidade geográfica, que acabaria “nos restando apenas o mar”. Sobre a composição vencedora, escreveu: “Não cantaríamos São Borja, ontem espanhola e guarani e hoje brasileira multirracial, procurando os ritmos no manual do tradicionalista e sim no abecedário da arte: a própria alma, a realidade, a verossimilhança”. Para seguir argumentando, o letrista do Tambo do Bando evocou a sabedoria guarani: “quando se corre muito, há que se parar e esperar pela alma”. E botou suas habilidades retórica e literária pra funcionar:
A arte transcende a sabedoria. A arte é a alma à frente. A mim representa que ela foge dos blocos de anotações e dos manuais. A mim a arte está, também, viajando, no favo das bombachas dos desesperados que batem à porta das nações próximas (até o mais profundo Cone Sul). Está no calção dos chibeiros naufragados, independente do ritmo quaternário das metralhadoras. A arte está na Encruzilhada, sob os toldos. (Sérgio Jacaré)
Para Jacaré, a arte é domínio do tempo, memória da humanidade, independe de manuais que a preservem. Prometeu que na próxima execução da música São Borja, Canto e Ritmo, acrescentaria cuíca, cubana, charango e até a bateria completa da escola de samba do bairro Maria do Carmo. “Porque a América, em São Borja, a nosso ver, não é uma regra. É um ponto de união”, concluiu.
O debate entre os compositores foi recuperado por Tau Golin, no livro Ideologia do gauchismo (1983, p.171), que classificou como o “conflito entre o velho e o revolucionariamente novo”. Já em Mídia Nativa, Nilda Jacks analisou a coluna Regionalismo de Antônio Augusto Fagundes, na Zero Hora. De acordo com a pesquisadora, o espaço cumpria função de “divulgar as teses tradicionalistas e o movimento como um todo, muito mais que discutir a questão da cultura regional na sua dimensão total” (1998, p.72).
Hoje, olhando para os 30 anos que passaram, percebemos o papel fundamental de Nico Fagundes na construção da identidade gauchesca, servindo de modelo televisivo. Será que o apresentador se comportou sempre conforme o pensamento revelado no artigo de 1982? Jacaré, por sua vez, foi saudado pela crítica como provocador da vanguarda sul-rio-grandense. Seu entendimento sobre arte, professado naquele artigo, teria guiado o trabalho com o grupo Tambo do Bando e a escrita do livro Assim na Terra?