Almanaque do Lupi mostra Lupicínio Rodrigues além das músicas

Lupicínio com Hamilton Chaves em frente à casa dos Rodrigues na Ilhota, em 1952 (Foto: reprodução)
Lupicínio com Hamilton Chaves em frente à casa dos Rodrigues na Ilhota, em 1952 (Foto: reprodução)

Lupicínio Rodrigues acaba de ganhar uma homenagem digna de sua carreira: o livro O Almanaque do Lupi, fruto de uma pesquisa de quase 10 anos. A obra é do jornalista Marcello Campos, que conta sobre a vida pessoal do músico, as histórias por detrás das canções, suas influências, seus projetos paralelos e muito mais. Para saber um pouco mais dessa obra, o Nonada conversou com o autor do livro.

Nonada – O que mais lhe interessa na história de Lupicínio Rodrigues? Como você conheceu a sua obra?

As composições mais famosas do Lupicínio são parte do imaginário coletivo há muitas décadas, de forma que fica difícil dizer quando se começa a entrar em contato com elas. Como praticamente todo mundo em Porto Alegre ou mesmo no resto do País, eu conheci Lupicínio ouvindo aqui e ali. E, no meu caso, isso se ampliou a partir dos tempos de faculdade, quando passei a frequentar os bares de Porto Alegre: em alguns deles, as músicas do Lupicínio são um verdadeiro patrimônio, sempre rola um Se Acaso Você Chegasse, um Esses Moços e tal. Sobre o que mais me interessa, o Lupicínio tem muitas facetas e histórias que valem a pena serem contadas, mas se eu tiver que mencionar algo que atrai muito a minha atenção, são as composições menos conhecidas e que acabaram esquecidas com o tempo, ou por não terem tanto apelo quanto as demais, ou por preguiça estética de muitos intérpretes que, em disco ou em shows, acabam insistindo sempre na mesmice. Se a gente pegar a maioria dos discos-tributo ao Lupi, por exemplo, pode achar que ele só compôs uns 10 ou 12 sambas-canções de dor-de-cotovelo, quando na verdade tem mais coisa legal, inclusive em estilos como marchinha.

Nonada – Há alguma história em especial que o motivou a pesquisar mais profundamente?

A minha pesquisa sobre a vida e a obra do Lupicínio tem a ver, de certa forma, com as outras pesquisas que faço para mim ou como contratado de outros projetos (trabalhei como pesquisador para a série de livros Getúlio, de Lira Neto, e no projeto de resgate da obra do fotógrafo Assis Hoffmann, por exemplo). De dez anos para cá, sempre que eu me dedicava a um tema, acabava deparando com várias notícias e depoimentos sobre o Lupi, antes e depois da morte dele em 1974. E sempre guardei essas informações, na certeza de que, mais dia menos dia, esse levantamento seria útil para mim ou para algum colega.

Nonada – Qual foi o papel de Lupicínio Rodrigues na Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música?

Lupi 01O Lupicínio sempre foi muito atento à questão dos direitos autorais. Em 1946, quando ele já era um nome nacional e se encaminhava para o seu auge como compositor, inclusive viajando com frequência para Rio e São Paulo para fazer contatos, negócios e cantar, a direção nacional da Sbacem o convidou a ser o representante da entidade no Rio Grande do Sul. Ele ainda trabalhava como bedel (uma espécie de monitor) na Faculdade de Direito, mas topou o desafio, contribuindo para difundir e fiscalizar a arrecadação que os músicos tinham direito. Nessa atividade, foi fundamental a ampla circulação de Lupicínio entre os bares, boates e similares, afinal era preciso percorrer e fiscalizar os estabelecimentos com música ao vivo ou “mecânica” para fazer o controle e cobrança dos direitos que já eram assegurados em lei, de forma semelhante ao que hoje faz o Ecad. Uma tarefa, aliás, que nunca foi muito bem recebida por alguns proprietários e que, eventualmente, envolvia risco de vida (um colega de Lupi foi morto durante o trabalho, no Interior). Igualmente importante foi a colaboração direta de amigos que ele escolheu a dedo para trabalharem com ele no escritório regional: o jornalista, advogado e compositor Hamilton Chaves e os músicos Túlio Piva, Johnson e Rubens Santos, dentre outros.

Nonada – Produzir uma biografia também é destacar algumas características sobre outras. Essa foi uma dificuldade para você ao escrever a de Lupicínio?

Essa tarefa não foi problemática, afinal eu acho que consegui dar conta das diversas facetas pessoais e artísticas do Lupicínio. Essa abordagem, mesmo quando valoriza uma área mais do que a outra, acaba reforçando o aspecto múltiplo de um sujeito que, na maioria das vezes, é lembrado como compositor e boêmio, coisas que fez muito bem mas que não representam a totalidade do personagem. A maior dificuldade é a de encontrar fontes primárias que tenham convivido com todos esses “Lupicínios”, pois a maioria dos seus “camaradinhas” ainda vivos são pessoas que conviveram com o Lupi na fase final de sua vida. Outro fator limitador é a veracidade dos depoimentos dados por gente entrevistada na época em que ele era vivo ou mesmo depois: são muito comuns as versões fantasiosas sobre os fatos, a valorização do mito, da anedota, do causo, e o próprio Lupicínio contribuiu para isso eventualmente, com declarações reticentes, desencontradas, evasivas. Eu sempre menciono como maior exemplo a famigerada “versão dos marinheiros”, segundo a qual as composições de Lupicínio teriam alcançado projeção nacional por conta dos marujos que aprendiam letra e melodia nos bares e cabarés de Porto Alegre para depois leva-las na ponta da língua para o Rio. Trata-se de uma tese estapafúrdia, até porque os reais protagonistas desse sucesso foram os intérpretes gaúchos e, depois, de fora do Estado, que viram nas criações de um rapazote de 20 anos e ainda desconhecido do grande público, algo de qualidade e com potencial de sucesso para cantar nas rádios, festivais, concursos e discos. Nesse aspecto, a imprensa também acabou tendo um certo papel de culpa, ao não saber ou não querer (muitos eram amigos íntimos de Lupi) extrair de Lupi as histórias por trás do simples folclore. Sorte dos pesquisadores atuais que houve gente entrevistados e entrevistadores que foram além, registrando informações que hoje são bastante confiáveis.

Nonada – Há artistas que dificultam o trabalho do biógrafo. Para você, qual deve ser o papel da biografia?

Eu penso no gênero “biografia” como o registro de uma trajetória que merece ser contada, pela relevância do personagem e pelo potencial de interesse que ele é capaz de gerar. Melhor ainda se houver boas histórias e novas luzes sobre o biografado. Há uma polêmica envolvendo a questão do direito de veto à biografia por parte do biografado ou de seus descendentes. Se há dois lados nessa questão – a liberdade de expressão do autor e o direito à privacidade do personagem retratado, penso que se deveria chegar a um meio-termo: uma proposta paliativa seria conceder o direito de veto somente a artistas vivos. Depois de sua morte, a família não teria possibilidade de ingerência e, caso se sentisse incomodada, recorreria a processos por calúnia, injúria ou difamação, sem prejuízo à circulação da obra.

Nonada – Nos últimos anos, parece que temos uma recuperação história e artística principalmente de músicos aqui do Estado pela comunidade cultural. Para vocês, quais são os artistas que ainda faltam “recuperar” ou trazer sua história à tona?

É importante ter em mente que nenhuma biografia é definitiva. Livros, documentários e outros projetos desse tipo estão sempre sujeitos a revisões, ampliações, desmentidos, segundas edições e novos enfoques por outros autores. Isso deixa espaço para que o tema volte a ser abordado, mesmo quando já biografados, lembrados e homenageados. De qualquer forma, há uma série de personalidades que ainda não foram devidamente detalhados nesse tipo de livro, e nem precisamos ficar restritos à área da Cultura. Como é possível ainda não haver uma biografia de Leonel Brizola, por exemplo? No segmento artístico, é uma pena que não haja um livro sobre Raul Roillien, um ator, diretor e cantor carioca que chegou à Hollywood nos anos 1930 e teve a carreira, promissora, boicotada por lá ao insistir em processar um figurão dos estúdios que, bêbado, havia atropelado e matado sua esposa. Roulien foi um dos primeiros – se não o primeiro – ídolo de massas no Brasil da época e, hoje, poucos conhecem essa história.

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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