Fotos Gabi Carapeto
Andando pela rua São Carlos, no bairro Floresta, entre casas e prédios baixos, via-se uma casa que se destacava das demais. Logo na entrada, uma cortina feita com retalhos de tecidos decorava o ambiente e, quanto mais as pessoas adentravam o local, mais se encantavam com a singularidade daquele espaço: ambiente feito quase que por encomenda como um refúgio do mundo exterior.
A primeira impressão que se tem ao chegar ao Vila Flores é de estar na Vila do Chaves. Curiosamente, esse é o delicado apelido que o local recebeu de seus moradores. Apesar de estar passando por um processo de revitalização e reforma, os dois prédios de aproximadamente três andares apresentam pinturas descascadas pelo tempo, tijolos aparecendo, e um deles tem suas varandas sem parapeitos. Além disso, uma casa-ateliê serve de local para exposições. E no meio, um belo pátio. E não se engane que isso tudo torna o local menos atrativo. Pelo contrário, esse é um dos seus charmes. No lugar de Kiko, Seu Madruga, Bruxa do 71, etc., vivem 18 iniciativas de diversos artistas e profissionais de setores criativos — projetos como, por exemplo, AC Arquitetura, Ato Espelhado Companhia Teatral, Casca Design, Estúdio Hybrido, Solabici, Surto Criativo, Goma Oficina, Mate Hackers, República da Bicicleta, entre outros.
Não é por acaso que nesse local aconteceu a segunda edição do Fugere Urbem. Como o próprio nome sugere, é um evento para fugir do urbano. Um dia para as pessoas darem novo significado às coisas ao seu redor ou buscarem antigos significados que, ao longo das décadas, foram perdendo sua verdadeira natureza. O evento, organizado pelo brechó Vuelta El Mundo, além de contar com a participação de algum dos residentes do local, trouxe outras iniciativas para que pudessem expor seus trabalhos, criando assim uma teia de colaboração e ideologia cada vez mais consistente – como, por exemplo, o Colibrii, que trabalha com artesãos da capital gaúcha para criar produtos a partir de materiais alternativos e reutilizados; ou Banana Verde, que vende produtos ecológicos não alimentícios e práticos para a vida moderna.
No decorrer do evento, as pessoas iam chegando, admiradas com o local e com a decoração do espaço. Em uma das varandas sem parapeito, um enorme filtro dos sonhos feito de retalhos foi colocado como enfeite, com uma placa atrás em que se lia a legenda: “filtre seus sonhos”. Fazia os visitantes pararem por alguns segundos e refletirem sobre o verdadeiro sentido daquelas palavras. Em outra varanda, um varal de fotos junto a um manequim chamava muito a atenção das pessoas.
Era no pátio do Vila Flores que as pessoas iam conhecendo cada exposição ali presente. Logo na entrada do local, uma enorme colcha de retalhos servia de tenda para o Ateliê Inspira Ação, projeto que utiliza bambu na confecção de peças artesanais. A ideia não é que o bambu substitua todos os materiais artesanais – mas sim, que ele seja, de fato, uma opção sustentável. Thiago Alves mostrava a mesa na qual ele, utilizando a porta de madeira de um armário como parte superior, construiu as pernas e bases de sustentação com bambu. Além disso, Alves expôs suas minicasas nas árvores feitas com pequenos pedaços de madeira de jogos americanos (acessório utilizado para se colocar em baixo de pratos, talheres e copos). Enquanto as crianças brincavam, os adultos em volta por vezes as repreendiam, mas o artesão incentivava a brincadeira: as minicasas foram criadas com esse intuito.
Enquanto conheciam os projetos do evento, os visitantes se reuniam para conversar. Podiam, inclusive, desfrutar dos cinco tipos de cerveja artesanal e dois tipos de cachaça que estavam sendo vendidos, ou curtir o setlist do Jazz, Blues e Guloseimas, que ia do rock e folk dos anos 1960 e 1970 às músicas brasileiras contemporâneas. Sem contar que o espaço possuía uma área de lazer, feita de pallets e almofadas de tecido florido ou xadrez. Em suma, um espaço onde as pessoas pudessem descansar e desfrutar, de forma mais relaxada, não somente do evento, mas da paisagem. Por sinal, o céu azulado, praticamente sem nuvens, já era uma decoração à parte naquele dia.
No mesmo pátio, os visitantes podiam observar quatro grafiteiros que faziam, na hora, cada um, um quadro que refletia a mensagem do evento. Ou podiam ir à casa-ateliê e apreciar a exposição Casa Grande, que contempla sete ações relacionadas à presença de artistas negros no cenário cultural gaúcho.
O interessante que se percebia durante o evento é que, mesmo sendo organizado pelo Vuelta, não existia uma hierarquia – ou seja, todos os expositores podiam opinar. Não era de se estranhar ver vários participantes colaborando para enfeitar o local, ajudando a pendurar varais de fotos ou montando uma tenda. O evento reforça a ideia de que é possível todos estarem no mesmo nível e, juntos, colaborarem pela mesma causa – nesse caso, um evento. Mas poderia ser uma empresa. Por que não?
O dia ia passando. No meio da tarde, uma oficina de práticas circenses com Maria Pendurada. Cerca de 10 pessoas participaram, praticando exercícios como pular corda, engatinhar, fazer “carrinho de mão” ou abdominais ao som de Beirut.
Às 16h, começaram os shows das bandas. Ana Muniz e seu grupo abriram o circuito de shows. Usando um vestido verde e com um sorriso delicado, Ana apresentou as músicas do seu CD Buscai – experimental, soando como uma mistura entre Doces Bárbaros e Novos Baianos – e cativou o público com sua voz suave mas, ao mesmo tempo, forte. Depois de mais de 30 minutos de apresentação, Ana encerrou o show tocando Ciranda e fez o público dançar como o título da música sugere. Em seguida foi a vez de se apresentarem Victorino e seu baterista Guilherme Geyer. Victorino, rapaz de cabelos e barba compridos, vestindo uma camisa florida, apresentou um show mais intimista, com música como “Rascunho”, tocando violão e gaita e fazendo lembrar um pouco o jovem Bob Dylan, ou “Só Que Não”, um folk mais agressivo, com bateria em um tom mais grave.
Aconteceram mais três shows até o final do evento. A terceira banda foi o Jamaican Jazz Trio, formado por baixista, tecladista e baterista. Os solos eram realizados pelo baixista, enquanto o tecladista impunha um acompanhamento mais voltado para o reggae. Enquanto a segunda música tinha elementos do reggaeton, fazendo o público dançar, a terceira ia na raiz reggae tradicional. Em seguida foi a vez da banda Expresso Livre, com nove integrantes – cantoras, baixista, violão, cavaco e percussão – reunindo elementos experimentais e samba. Por fim, foi a vez da banda Bicicletas Africanas.
À medida que a noite ia caindo do lado de fora, o pátio já estava pequeno para a quantidade de visitantes. A luz do sol foi substituída por um varal de lampadas, enquanto que holofotes de luz ajudavam a enxergar as decorações em um dos prédios. Enquanto algumas pessoas curtiam os shows das bandas, outras provavam os alimentos do Sempre Viva Alimentos, Caramellas, Cookeria Culinária Especial, ou os Bolos Veganos Vicente Ruchel da Silva. Outras ainda preferiam as pinturas faciais artísticas feitas pela Júlia Bitencourt, que utilizava uma tinta neon. No final da festa, estavam reluzentes: algo que não era apenas efeito da tinta mas, sim, reflexo de como estavam se sentindo após um evento e um dia tão agradável como esse.
Fugere Urbem é um evento que faz refletir sobre os nossos hábitos diários – alimentação, moda, transporte e questões sociais – e como eles são prejudiciais para nossas vidas. Reforça a ideia de que é possível viver de forma diferente, sem que isso afete negativamente as pessoas ao nosso redor, no mundo inteiro. É acreditar que a utopia, afinal de contas, não é tão impossível assim.