Era uma quarta-feira ensolarada em Porto Alegre, nada semelhante com o clima habitual dos filmes de terror. Não havia lobisomens, fantasmas, chupacabra. Nenhum zumbi saiu de dentro da terra e começou a rastejar ou criaturas assustadoras esperando no meio das sombras. O hotel não era mal assombrado, não tinha pedaços de corpos pendurados ou um atendente macabro. Quem apareceu, na verdade, foi Rodrigo Aragão. Pra ser bem sincero, ele estaria em um habitat familiar se essas coisas tivessem aparecido durante o dia.
Rodrigo Aragão é um dos maiores diretores do gênero terror no Brasil e está com seu novo longa no Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa): As Fábulas Negras. Capixaba e fanático pelo gênero, Aragão recebeu o título de sucessor de Mojica pelo mesmo. O bate-papo, que aconteceu em uma cafeteria no centro da cidade, teve diversos assuntos, como as gravações do longa, a experiência de trabalhar com Mojica, a distribuição de filmes do gênero no Brasil, entre outras, que você confere aqui em baixo.
Nonada – Como começou sua paixão pelo filmes de terror?
Rodrigo Aragão – Filmes de terror…eu acho que muito por culpa dos anos 80. Durante minha infância pegando aquelas coisas maravilhosas do SBT, Lobisomem Americano em Londres (1981), Sexta-Feira 13 (1980), os melhores de quando Tom Savini era maquiador. Hora do Espanto (1985), que eu gosto muito. Eu sempre gostei muito. E outra coisa que eu costumo culpar é Guerra nas Estrelas. É meio clichê, mas eu sempre conto isso. Meu pai era mágico e dono de cinema. Meu irmão mais velho estava começando a cursar artes plásticas, então na minha casa sempre teve película, truque de mágica, pincel e tinta. Sempre foi muito esquisita. E isso é uma coisa que eu acho muito legal. Então eu vi um documentário sobre O Império Contra Ataca (1980) e fiquei alucinado com aquilo. E comecei a falar que queria fazer cinema e monstro. E o filme de terror é mais divertido ainda porque além de fazer os monstros, você pode adicionar gosma, sangue falso. Então foi muito por causa disso. Eu acho o cinema de terror muito, muito divertido.
Nonada – E como é que você aprendeu a fazer maquiagem? Aprendeu sozinho ou fez cursos?
Rodrigo Aragão – Foi em casa mesmo, tentando. Meu pai, nos seus truques, tinha um dedo falso e eu comecei a imitar esse dedo. Eu fazia os dedos feridos com guardanapo e cola branca e comecei a vender para os coleguinhas na escola. Isso eu tinha uns 10 anos. E comecei a descobrir que dava pra fazer mais ferimentos com guardanapo, tinta guache, massa de trigo e passei a assustar os vizinhos, as tias e as pessoas em volta e vi que isso funcionava. E meu primeiro trabalho como profissional, em que eu fui contratado para fazer efeitos especiais em um filme, foi em 94, com 17 anos, e foi a partir disso que comecei. Eu sempre quis fazer meus próprios filmes e sou muito feliz de ter conseguido realizá-los. O cinema brasileiro utiliza muito pouco de efeitos especiais e eu sempre fui muito frustrado com isso. Por isso que meus filmes tem tanto sangue, essas coisas, por causa dessa frustração. Nos meus filmes eu vou fazer o máximo de monstros que eu conseguir.
Nonada – Qual foi a diferença entre gravar As Fábulas Negras e seus demais filmes?
Rodrigo Aragão – Eu acho que todo filme que eu faço eu considero uma escola. Eu aprendo muito com eles. Nos meus outros filmes, as pessoas tentavam segurar a minha loucura, porque eu sempre queria fazer coisas maiores do que era possível. Nesse filme, eu também fiz o papel de produtor e eu tive que segurar a loucura dos outros. Isso foi muito bacana pra mim, pois tive a oportunidade de ver esse outro lado da produção. Porque artista é uma desgraça (risos). O Joel chegou pra mim pela primeira vez com um storyboard de 150 páginas pra fazer (o curta-metragem) Loira do Banheiro. Tinha efeito especial em praticamente toda página. E eu tive que fazer o papel de limar isso. O Pampa Feroz era uma superprodução. A gente combina um orçamento Y, mas eles sempre querem a mais (risos). No final ele queria fazer um longa do Pampa. E, de novo, tive que colocar os pés no chão. E isso foi muito bom pra mim, eu tive um enorme aprendizado e estou muito ansioso para o próximo filme.
Nonada – E como foi trabalhar com Mojica (Zé do Caixão)?
Rodrigo Aragão – Esse foi um dos maiores feitos que eu fiz na minha vida inteira: colocar o Mojica na cadeira de diretor. Esse foi o maior prazer que eu tive na vida. Assim como pra equipe toda. Eu nunca vi uma equipe tão feliz. E eu sei que é uma coisa histórica. Ver aquela lenda viva, com 78 anos, dirigindo um filme e se divertindo igual uma criança. Mesmo. Ele se alimenta dessa energia. Ele saiu muito mais jovem de quando chegou ao Espírito Santo. Foi muito bonito. Muito, muito, muito bonito. Foi o momento mais especial que eu já vivi em um set de filmagem. Sou muito grato a essa oportunidade. E eu agradeço que O Saci foi o primeiro curta que gravamos, porque se tivéssemos deixado pra filmar depois, não teria sido possível Mojica gravar. (Praticamente um mês após as gravações, Mojica foi internado em um hospital e, devido a ordens médicas, está proibido de pisar em um set de filmagem). E uma curiosidade: de início, eu ia chamá-lo apenas para fazer a apresentação do filme, nos créditos iniciais. Quando liguei pra ele e contei que ia dirigir um curta sobre o saci, ele soltou: (imitando a voz do Mojica) “O Saci é uma coisa nossa, é brasileiro, eu sempre quis fazer um filme do Saci”. Foi aí que eu o convidei e ele aceitou na hora. É um sonho antigo dele. Foi uma coisa linda.
Nonada – E os filmes dele, quando foi que você começou a assistir? Foi nos anos 80, com as influências que você já citou ou foi mais pra frente?
Rodrigo Aragão – Na década de 1980, 1990 a gente não tinha acesso aos filmes. Ouvia-se muito sobre os filmes, lia-se, mas não se conseguia assistir. O Zombie (1979), de Lucio Fulci, meu irmão viu em 1985. Eu só fui conseguir ter uma cópia desse filme na mão por volta do ano de 2000. Os filmes não vinham ao Brasil. As vezes eles vinham para um cinema, em um circuito pequeno, vazava da censura e muitos deles não saiam em VHS. Os filmes do Mojica a gente não tinha acesso. Todos sabiam quem ele era. Nós víamos ele, na década de 90, na televisão apresentando um monte de filme bacana, mas só após o Cine Trash que começou a passar alguma coisa dele na madrugada. E desde que eu tive contato eu digo: o Mojica é um gênio. E em qualquer outro país que ele estivesse, ele seria mundialmente conhecido. O meu filme favorito dele ainda é o À Meia Noite Levarei Sua Alma (1963), seu primeiro filme. É uma obra que eu considero das mais importantes por ser muito brasileiro, original, ousado. Todos babam ovo do George Romero por ter feito A Noite dos Mortos Vivos. O Mojica é de antes e já tinha a procissão dos mortos. Provavelmente, o filme do Zé é mais original e mais genial. E ainda continuamos a descobrir coisas dele.
Nonada – E como foi trabalhar com o Fepaschoal? O seu filme é muito diferente do trabalho autoral dele. Queria que você me contasse como foi essa experiência.
Rodrigo Aragão – O Fepas, eu conheci através do Coletivo Expurgação, por ele trabalhar com um dos diretores de Fotografia do Fábulas (o longa tem dois diretores de Fotografia: Marcelo Castanheira e o Alexandre Barcelos). E eu o conheci no processo de edição de áudio do Mar Negro (2013). Ele fez a captação de som e foi um trabalho muito bom. Ele é o sonho de qualquer diretor na questão de captação de som (risada). E o trabalho de trilha eu acho que funciona muito bem. Meus filmes sempre tiveram uma trilha muito diferente. O Mangue Negro (2008), meu primeiro filme, tem um trabalho genial do Jaceguay Lins, que mistura musica popular brasileira, congo com música clássica, é fantástico. No segundo filme tivemos uma banda experimental chamada Vida Seca, de Goiânia. E o Fepas se encaixa perfeitamente nisso. Ele conseguiu impactar sendo bem brasileiro, utilizando vários instrumentos. Ele divide a trilha com a banda Gangrena Gasosa. E por termos diretores diferente em cada história, eu considerava importante que cada uma delas tivessem seu próprio tempero, que as pinceladas fossem diferente e não um filme comum do início ao final.
Nonada – Há quem acredite num revival do bom cinema de horror, com o recente sucesso de títulos como The Babadook e It Follows. São filmes que bebem diretamente na fonte dos anos 80, sendo influenciados em forma e estilo por gente como Tobe Hooper, John Carpenter e Wes Craven. Como você enxerga essa nova onda, se é que ela existe?
Rodrigo Aragão – Eu tenho muita fé nisso. Os anos 80 foram o ápice da criatividade, do imaginativo, quando as pessoas não tinham essa possibilidade do digital ou CG. Eu acho que hoje Hollywood está meio sem ideias, isso me parece muito verdadeiro com essa onda de remakes. E são remakes bunda mole, fracos em comparação com os originais. Menos ousados. O Babadook não é americano. Os não americanos estão sendo mais ousados. E eu acho que o mundo se volta muito pra latino-americano, porque é um povo muito querido, com uma cultura incrível, uma mística, realismo fantástico e isso tudo foi muito pouco explorado. Por sinal, eu acho um absurdo o Brasil não ter feito clássicos mundiais com o folclore, com tantas histórias boas. Então eu tenho muita fé nessa nova geração. Uma das características dos anos 80 que o atual mercado rejeita é ter terror com comédia. Isso foi separado. É muito difícil você ver os dois juntos, e é uma coisa que eu faço. Eu sei que é ultrapassado, mas eu tenho fé nessa geração nova. Tipo, nós estamos na 11ª edição do Fantaspoa e ter pela primeira vez uma competição de filmes de terror brasileiro com seis longas é um ótimo sinal. Nesses 11 anos nunca teve volume de produção de gênero para se fazer uma competição. Que bons ventos venham e eu tenho muita fé nos novos diretores da atualidade.
Nonada – E quanto ao público. Você acha que no Brasil tem mercado pra isso? Tem distribuidora?
Rodrigo Aragão – Eu acho que o mercado brasileiro existe. Tem muita plateia. O público brasileiro ama o terror, a prova disso são as ótimas bilheterias. Annabelle, por exemplo, foi um fenômeno. Existe esse mercado. Mas agora, a distribuição do cinema no Brasil é uma piada de mau gosto, é ridícula. Nós temos um mercado bitolado, estúpido, idiota, que não abre nenhum espaço pro cinema independente e o cinema de gênero. Isso vem desde o júri às leis de incentivo, que são preconceituosas contra o gênero sim, ou seja, você tem um abismo absurdo entre as pessoas que definem quais filmes serão contemplados e o público. E com certeza existem mais pessoas que amam os filmes de terror divertidos do que um pseudo filme intelectual com um plano de 40 segundos, que é o que se ganha edital hoje no Brasil. Então você não tem nenhum apoio. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) luta contra qualquer filme que não teve apoio. A distribuição é impossível, porque se você não tem apoio, você tem que pagar uma taxa de imposto de CRT que a Ancine te cobra que deixa totalmente inviável você pegar seu filme e colocar na sala de cinema. Então, lutar no Brasil contra essa distribuição é uma luta muito inglória. E é triste pensar que sou 40 anos mais novo que o Mojica e passo pelas mesmas situações que ele durante sua época como diretor: meus filmes só são exibidos fora do Brasil. Tenho distribuição na Alemanha, Holanda, Japão e no Brasil não conseguimos. Nós batemos na mesma tecla que o Mojica bateu. E eu espero que essa bosta mude e que a nova geração tenha mais facilidades.
Nonada – Eu mesmo vi um documentário sobre o Mojica, uma vez, e ele disse que produzia um filme e o dinheiro que ele ganha com isso era para o próximo longa dele. E assim era a forma que ele fazia filme. Não tinha lucro. Ninguém bancava.
Rodrigo Aragão – Essa foi a história da vida dele. Aí ele faz O Despertar da Besta (1969), que ele estava fazendo dessa forma como você citou, a ditadura censurou e ele faliu. E passou por todas essas dificuldades. O cinema no Brasil você só consegue um apoio se fizer um terror disfarçado, envergonhado. Esse terror me incomoda. São os únicos filmes do gênero que são contemplados. É quando você tira todos os elementos realmente do terror e deixa tudo muito subjetivo. Então não se pode ter sangue, morte. Tem que criar um clima, e quando os diretores são questionados, eles dizem que é mais que um filme de terror, ele é um suspense psicológico. Eu acho isso uma tristeza. Isso não agrada os fãs do gênero. E quem não gosta não vai passar a gostar. O Brasil precisa fazer mais terror sem vergonha. Sem vergonha de seu gênero, com todos os temperos típicos do gênero, que é sangue etc. E uma coisa que eu me orgulho muito dos meus filmes é que quem gosta gosta muito, se diverte. Que não gosta odeia, diz que são filmes medíocres. Eu não estou interessado nesse público. Eu sou fã e faço para os fãs desse gênero.
Nonada – E falando um pouco da sua terra, quanto à produção capixaba, você acha que tem gente pra produzir filmes nesse gênero?
Rodrigo Aragão – Eu tenho fé nessa geração nova, mesmo. O Espírito Santo (ES) sempre foi um buraco no mapa. Infelizmente. O capixaba tem um complexo de vira-lata incrível, que eu acho que é por causa da moça do Tempo, que nunca fala o nome do Espírito Santo, só fala “acima do RJ e abaixo da BA”. Então se tem a mentalidade que pra um capixaba ter sucesso ele tem que sair de lá. E eu acho que temos um problema que o audiovisual é representado pelas mesmas pessoas há 30 anos, que produzem o mesmo cinema estranho. Mas a minha fé é nessa nova geração, com cabeça diferente, como o Alexander S. Buck, que realizou uma das obras mais impressionantes do ES, que é “O Repolho”. Que por sinal é genial. Eu acho que a situação é muito ruim no Espírito Santo, ainda é esse buraco. E mesmo em uma situação política piorada, onde se corta 70% da cultura, com um sistema que pisa na gente, tem gente que faz cinema na raça, na coragem. Eu costumo falar que o Espírito Santo é um dos melhores lugares do planeta para se fazer cinema. Você tem todos os tipos de cenário: urbano, praia, montanhas, paisagens europeias e muitos outros. O que falta no Espírito Santo é paixão pelo próprio estado. O que precisa é parar de contratar diretor e ator de fora. Quando o Governo quer falar bem do estado eles contratam um ator carioca. Isso é um absurdo. O capixaba tem que se amar, gostar de si e começar a dar valor para os próprios artistas. Isso é o que falta, na minha opinião.
Nonada – Por fim, eu me mudei há pouco tempo aqui para Porto Alegre e já ouvi de um amigo e de várias pessoas por aqui, como já tinha ouvido no ES, que você é sucessor do Mojica. Como você lida com esse título, que é importantíssimo?
Rodrigo Aragão – O Mojica falou isso há pouco mais de um ano, em um evento no Rio de Janeiro, e então se criou isso. É a maior honra da minha vida. Eu fico muito honrado porque eu sei da importância do Mojica. Mas eu sei que ele é um personagem insubstituível. E nunca haverá um sucessor pro Mojica. Isso não tem como. O que ele fez em todas as áreas da arte – cinema, TV, história em quadrinho – eu não me considero a altura disso tudo, mas fico muito, muito honrado. Nem aqui no Brasil, nem fora, vai ter um artista igual a ele. E uma coisa que fico muito triste é essa sina de maldito. Eu não acho isso bonito. Querem colocar um glamour nisso, mas isso é uma coisa triste e não acho bonito ser maldito, não ter seu devido reconhecimento no seu próprio país. Não gostaria que ele tivesse passado por isso e não gostaria de passar por isso.
Vídeo da entrevista, em que Aragão comenta o splatter tropical:
*Confira nossa cobertura do Fantaspoa 2015.