Moll Flanders: a odisseia de uma mulher guerreira do século XVIII

DSC_0770Ao retomar sua coleção Nova Prosa do Mundo, a editora Cosac Naify não poderia ter começado de forma mais épica – e, por que não dizer, surpreendente. Afinal, o lançamento de um livro escrito há mais de dois séculos, em certa medida poderia desencorajar o público leitor; ocorre, contudo, o contrário.

Moll Flanders, obra escrita em 1722 e no auge da carreira do escritor inglês Daniel Defoe surge aos olhos dos dias de hoje como um belo libero e um magnífico relato de uma mulher com algo a dizer e muito a mostrar ao mundo. E é precisamente aí que o livro tem a sua mais forte e atual contribuição, ao mesmo tempo verdadeira, incisiva e universal: Moll Flanders, a personagem principal e narradora, coloca em evidências as intempéries e os preconceitos sofridos – contra os quais se impôs como mulher ávida e capitalista -, que com suas habilidades próprias lutou para se impor numa sociedade absolutamente machista e mercantilista na qual ela vivia nos idos do século XVIII. E que, convenhamos, está aí bem viva até os dias de hoje.

Com o espantoso subtítulo (uma prática comum na época de lançamento) “As venturas e desventuras da famosa Moll Flanders & Cia, que nasceu na prisão de Newgate, e ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente.”, Moll Flanders é um romance que vem ainda com uma observação curiosa: “Escrito com base em suas próprias memórias”. Como se fosse um verdadeiro relato tanto no que se refere à datação como ao registro de uma época durante a qual ser mulher, e ainda mais sozinha, impunha um sofrimento quase intransponível.

Ilustração da Cosac Naify (crédito: divulgação)

Mas a narradora do livro ora perdeu, ora venceu tudo isso e se apresenta como uma personalidade para entrar para o hall das grandes narradoras da história da literatura universal (arrancando elogios até mesmo de Virginia Woolf, que escreve no posfácio da presente edição).  O relato de Moll Flanders é forte, a autoconsciência da narradora é terrível e a possibilidade de fazer mais uma mudança em sua vida é constante, que a certa altura do relato a própria Moll declara: “… minhas próprias desventuras silenciaram todas essas reflexões, e a perspectiva de eu mesma passar fome, que se agravava horrivelmente a cada dia, pouco a pouco endureceu-me o coração”. Um relato que nos fala sobre a necessidade de o ser humano mudar sua vida a partir do abismo e baseado nas “iniquidades passadas”, vivendo “a medonha necessidade” que sempre conduziu a personagem principal do livro à “destruição do corpo e da alma”, até que o “arrependimento pela vida passada” leva Moll Flanders à redenção, ao descanso, e fundamentalmente a nos ensinar algo sobre o ser humano.

Daniel Defoe, o escritor por trás desse relato longo, humano, surpreendente e avassalador, é muito mais conhecido do público pelo seu romance Robinson Crusoé, outra obra imortal da literatura mundial escrita há quase 300 anos e que ainda tem bastante a nos ensinar. Fundamentalmente, o sucesso de Robinson Crusué acabou por esconder do grande público a existência de outro romance de Daniel Defoe, que a edição da Cosac Naify agora resgata com Moll Flanders. Mas Defoe precisou viveu muito e adquirir muita experiência de vida – inclusive estar preso por longo tempo – antes de se tornar o grande escritor de Robison Crusoé e Moll Flanders.

Em comum, os dois romances têm a sina de uma vida solitária, a obsessão da descoberta dos limites do mundo, o inusitado das situações, as revoluções internas das personagens principais e o descortinado de um jeito de ser moldado de forma seca e dura – como exigiam as circunstâncias do homem isolado numa ilha e da mulher que tem que fazer sua vida com o próprio corpo ante as adversidades da sociedade hipócrita. Ainda em comum, os dois romances têm o fato de narrarem experiências de vidas limites, surpreendentes e transformadoras. Histórias que são capazes até hoje de nos ensinar algo substancioso e útil sobre o homem e o meio, sobre sobrevivência e transformação, não importa se bem longe ou muito perto da civilização consumista. Enfim, como se estivéssemos falando dos dias de hoje.

Moll Flanders é uma odisseia interna de uma mulher do século XVIII, guerreira em sua essência, batalhadora por uma vida melhor, questionadora de sua situação, pessoa que cometeu erros e com eles aprendeu, fria e calculista, sensual e sedutora, enfim, uma personagem complexa que viajou no tempo para nos ensinar algo. Essa extraordinária história de vida nos é contada nesse belo romance editado e lançado de forma cuidadosa e aguerrida, como, por certo, deveria ser tratada essa fantástica personagem chamada Moll Flanders.

Boa leitura.

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