MV Bill: agente da mudança no rap

As letras de MV Bill são carregadas de críticas à sociedade e à guerra do tráfico
As letras de MV Bill são carregadas de críticas à sociedade e à guerra do tráfico

FOTOS Fernando Halal

O Mensageiro da Verdade (MV) veio a Porto Alegre mais uma vez. Fazendo jus ao apelido, o rapper carioca Alex Pereira Barbosa se apresentou no Opinião na última quinta-feira (30). Foram cerca de duas horas repletas de engajamento, reflexão, críticas, descontração e surpresas. A casa não estava cheia, mas nem por isso o show deixou a desejar. Marcada para às 23h, a apresentação iniciou com 20min de atraso. Talvez um tempo de tolerância dado por MV Bill, consciente de que seu público chegaria em cima da hora.

O começo foi um tanto diferente. Sob nenhuma iluminação, Bill entrou no palco. Enquanto isso, o DJ tocava Is This Love. Os presentes que notaram a presença do rapper correram para a chegar o mais perto possível, enquanto o carioca foi recebendo a devida iluminação aos poucos. Sem o microfone, Bill cantava os versos escritos por Bob Marley de uma forma pura, como um verdadeiro fã. Não demorou muito para que todos o acompanhassem. Mesmo gostando da filosofia do Reggae, não foi por ela que MV Bill ficou conhecido. Um Tiro foi a música que deu o start na noite em que o rap ganhou voz no Opinião. No meio do rap, entra em cena Kmila CDD (Cidade de Deus). A irmã de Bill que mostra a força da família no gênero.

A sequência foi composta pelos sucessos ligados diretamente ao tema tráfico. O Soldado Que Fica, música na qual Bill fala da repercussão que uma Unidade Policial Pacificadora (UPP) traz para a favela. E Falcão, um belo cartão de visitas do morador da CDD, rap feito como trilha de seu documentário Falcão, Meninos do Tráfico. Os primeiros versos do rap falam da realidade de crianças na guerra do tráfico: Jovem, preto, novo, pequeno/Falcão fica na laje de plantão no sereno/Drogas, armas, sem futuro/Moleque cheio de ódio invisível no escuro, puro.

Só Deus Pode Me Julgar. Uma frase repetida por muitos brasileiros, talvez pela maioria, é o nome da principal música de MV Bill. O público do Opinião cantou toda letra junto do rapper, como se cada verso fosse um refrão. O momento que já seria empolgante, ficou maior ao ver o artista sacando sua melhor carta no início do show. A casa estava com o mezanino fechado, porém o coro desde a primeira linha (Vai ser preciso muito mais pra me fazer recuar) foi de lotação esgotada. O rap critica veementemente a sociedade brasileira, retratando a posição do negro pobre para com a realidade. Em 2004, MV Bill cantou essa música no Domingão do Faustão, e o apresentador Fausto Silva tentou abafar a parte na qual Bill fala da Rede Globo, dizendo que era improviso da parte do cantor (ver a partir de 5:30). Bill seguiu sua própria composição: manteve sua cabeça em pé e não deu marcha ré.

MV Billl e Kmila CDD distribuíram CDs do último projeto do rapper para o público
MV Billl e Kmila CDD distribuíram CDs do último projeto do rapper para o público

Durante o show, o dueto Kmila e Bill é um exemplo de afinidade. O fato de serem irmãos ajuda e torna a apresentação mais descontraída. Os dois se alternam no microfone entre 3 da Madruga, O Bonde Não Para e Monstrão, sem deixar a qualidade de lado. MV Bill é sério, focado e vivenciou de perto as palavras que saem de sua boca. Kmila CDD tem mais melodias ao proferir os versos, é mais desbocada e tem uma presença de palco melhor que a do irmão. Em Cidadão Refém a cantora se surpreendeu ao ver o primogênito se arriscar no canto. A música foi uma parceria de Bill com o cantor Chorão, em 2002. Os irmãos continuaram a cantar, dessa vez com Campo Minado, presente no último álbum de Bill “Vitoria Pra Quem Acordou Agora e Vida Longa Pra Quem Nunca Dormiu”. Também em Emivi e Vivo. Mas o ápice do trabalho da dupla se resume em Estilo Vagabundo. O rap que sintetiza a briga de um casal é parte do segundo álbum do carioca Falcão – O Bagulho é Doido. O público do Opinião foi à loucura, e, mais uma vez, cantou do início ao fim. O sucesso do rap foi tão grande, que Bill e Kmila fizeram mais duas partes (respostas à primeira versão), apresentadas na noite. Destaque para o empoderamento de Kmila durante o rap, ela vai “ganhando” à medida que vai respondendo ao personagem de Bill, até que solta o verso que todos aguardavam: Canalha que deixou falha/Ca-Ca-Ca-Canalha que deixou falha.

MV Bill foi bastante atencioso com o público, agradecendo aos que foram, cumprimentando rostos que se repetiram nesses 15 anos de vindas a Porto Alegre, pegando celulares dos fãs e gravando a si mesmo enquanto cantava, além de pausar o show para distribuir – sem custo algum – seu mais recente trabalho. O show continuou com Junto e Misturado e Marginal Menestrel. “Quando falam do Brasil, não falam da raiz africana” foi a introdução para Raiz, mais um exemplo do uso do rap para reflexão e crítica. E essas duas palavras, reflexão e crítica, representam o propósito do carioca. Bill cantou também O Bagulho é Doido, Traficando Informação e Só Mais Um Maluco.

Também gravamos uma declaração que MV Bill deu durante o show:

Para um cara que mudou muitas vidas dentro de favelas – lutando contra o tráfico de drogas e a tentando conscientizar a sociedade –, MV Bill pode ser considerado mais que um mensageiro da verdade, e, sim, um agente da mudança. Em Soldado Morto, ele retrata a morte de homem que vive a guerra do tráfico e o peso da perda na sua família. E em Soldado do Morro, Bill canta sobre a escolha de quem vai para o tráfico, apontando as condições e as oportunidades que surgem para alguém se entregar à guerra. O forte refrão desse rap tornou-se conhecido entre as pessoas que acompanham, mesmo que pouco, o rap nacional: Feio e esperto, com uma cara de mal/A sociedade me criou, mais um marginal/Eu tenho uma 9 e uma HK/Com ódio na veia, pronto para atirar.

Nos planos de MV Bill, a ideia era de encerrar a apresentação com É Nós e a Gente e Pedra no Caminho, mas o carioca resolveu improvisar. Como todo show, o público pede músicas que não estão no setlist do artista. Só que dessa vez a sugestão foi acatada. Bill e Kmila cantaram A Noite, música do primeiro álbum “Traficando Informação”, de 1999, como se ensaiassem frequentemente. E pediram Amor Bandido, do trabalho Causa e Efeito. Essa última, Bill disse que não lembrava, então chamou o fã que solicitou a música para subir ao palco e cantar. Mano Paul (?), de Alvorada, não fez feio, cantou toda canção. MV Bill parou tudo e agradeceu a todos que estavam no Opinião, disse que quase cancelou o show, pois estava acompanhando o estrago que as chuvas causaram nas regiões pobres da região metropolitana, citando que tem amigos em Alvorada, por exemplo. Bill disse que está pensando em se aposentar, falou também que já sente os 40 anos. Mesmo ouvindo o otimismo de MV Bill, que está feliz pela forma como o rap cresceu no Brasil, todos ali tinham a certeza de que o Mensageiro da Verdade, o co-criador da Central Única das Favelas, o embaixador da Cidade de Deus nunca foi tão necessário na música brasileira quanto agora. Durante duas horas, quem foi no Opinião na última quinta-feira não viu só um rapper, presenciou a apresentação de alguém que realmente faz a diferença na sociedade brasileira.

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Editor, apaixonado por Carnaval e defensor do protagonismo negro. Gosta de escrever sobre representatividade, resistência e identidade cultural.
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