Texto Giulia Barão
Poucos discordam de que um dos trunfos indicadores da grande arte é sua resistência à passagem do tempo. Sobrevivência que se torna ainda mais assombrosa quando não se deve apenas ao valor estético da obra, mas ao fato de representar questões humanas que preferíamos crer serem coisa antiga e superada (ah, o progresso!). Caesar – como construir um império, adaptação da peça de William Shakesperare pelo Diretor Roberto Alvim, tem a potencialidade desse duplo assombro.
Segundo revelado pela equipe da peça, a ideia de montá-la surgiu em 2014, por ocasião dos debates entre os candidatos à presidência da República e as discussões acaloradas que eles geraram entre o eleitorado. É isso mesmo: o cenário pré-eleitoral brasileiro fez Roberto Alvim se lembrar desta obra dramatúrgica escrita por Shakespeare no final do século XVI, baseada em acontecimentos históricos do primeiro século a. C. Terá sido pela maleabilidade discursiva dos candidatos ou a polarização simplista dos posicionamentos no velho esquema amigo-inimigo? Pois no cerne desta obra de Shakespeare está o abismo – que tentamos constantemente amenizar – entre a razão pública e os afetos e motivações particulares.
Não só por causa desse eco contemporâneo das falas da peça, mas também por uma preferência estilística do diretor, o foco da montagem é o texto. Em cena, os dois atores e uma pianista, que interpreta a trilha original de Vladimir Safatle. O palco permanece a maior parte do tempo no escuro, enquanto canhões de luz focam os rostos dos atores e as mãos da pianista. Em determinados momentos pode ficar difícil prestar atenção no que falam atores, porque o piano soa como uma terceira voz. O que não deixa de ser interessante – mais que trilha sonora, a música ao vivo acaba se tornando uma personagem de fundo, interpeladora: como se as vibrações das notas fizessem tremer os discursos dos políticos romanos, evidenciando sua fragilidade.
Discursos que também ganham ênfase pelo primoroso trabalho de voz dos atores Caco Ciocler e Carmo Dalla Vecchia. Os dois se alternam na interpretação dos personagens da trama, que conta a conspiração que levou ao assassinato de Julio César, em pleno Senado romano, por múltiplas facadas. César era amado pelo povo e sua crescente popularidade gera temor por parte de seus colegas de governo. Temor ou inveja? Seu assassinato é justificado sob o argumento do benefício público: matamos o homem antes que ele se torne um tirano. Mas como garantir que ele se tornaria um tirano? E se ele se tornasse, não seria possível reverter a situação por meio da política e não do crime? Que bem público pode realmente advir de um assassinato?
A morte de César é sucedida por monólogos e diálogos que evidenciam a falibilidade da suposta razão superior que justificaria o homicídio, e as motivações pessoais que na verdade estavam ali implicadas. Em vez de ser sepultado como tirano, César recebe as homenagens de um homem honrado. Em vez de serem julgados pelo crime, os perpetradores sofrem a retaliação pelas mãos do povo romano. Ou por sua consciência pesada. (Sim, estou evitando spoilers. Vale a pena ler o texto na íntegra!)
Onde falha o poder, vigora a violência, já disse Hannah Arendt. Da Roma Antiga ao Brasil contemporâneo, a promessa da política segue sendo a de criar um espaço público governado por outras leis que não as da vaidade humana. Dói lembrar que falhamos nisso diariamente. Dói um pouco menos quando isso é feito por uma obra dramatúrgica de alta qualidade.
Caesar foi apresentado nos dias 8, 9 e 10 de setembro no teatro Renascença, como parte da programação da 22ª edição do Porto Alegre Em Cena, que segue até o dia 20 deste mês.
Confira: http://www.portoalegreemcena.com/