Voto no Porto Alegre Jazz Festival

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Texto e Foto João Vicente Ribas (autor do blog Pampurbana)

Já sabemos, não houve lobotomização geral nas cucas modernas. Seguimos podendo escolher o que fazer, em quem votar e, ainda bem, o que escutar. Uns vão optar por ouvir o que a naufragada indústria fonográfica continua lançando ao mar, e depois escrever num jornal de São Paulo sobre o fim da música brasileira.

Outros vão se reunir em Porto Alegre para uma semana de intensa fruição de jazz, em que estão inclusos nomes do berço do gênero, e brasileiros não reconhecidos necessariamente como jazzistas, entre outros seres notáveis. Música de alto nível técnico, a maioria instrumental, muita inspiração e diversas referências culturais. Foram estes os quesitos para tornar as atrações do Porto Alegre Jazz Festival elegíveis.

Neste ano, a segunda edição começou no domingo com Milton Nascimento. Pra nós do sul do Brasil, que crescemos sem o hábito dos festivais jazzísticos em nossa casa, fica difícil estabelecer uma relação do cantor mineiro fora da MPB e do Clube da Esquina. Mas a participação dele abrindo a programação nos ajudou a lembrar a face abrangente do jazz. Não é ritmo, apesar de ter alguns compassos característicos. Até pode ser chamado de gênero musical, mas nunca estritamente. O jazz é também um movimento cultural que une artistas ao redor do mundo há décadas. Os festivais são as principais forças motoras do encontro destes com seus pares e com o público. Porto Alegre passou um bom tempo por fora. Ainda bem que este tempo já era.

Na noite de quinta-feira, o argentino radicado no Rio Grande do Sul Lucio Yanel fez as honras de abertura. Tocou os primeiros tangos e chamamés e advertiu a algum eventual público ortodoxo sobre a riqueza da fusão de referências para o jazz. Foi quando citou e interpretou Astor Piazzola. Seu toque técnico e vigoroso conjuga densidade musical e uma certa latinidade, daquelas que estufa o peito de orgulho e nos hermana. A escalação de Yanel para o festival é merecida. O argentino influenciou uma geração de violonistas, como o genial Yamandu Costa. E continua a influenciar. No show teve a participação de outro deles. O jovem Maurício Marques entrou em cena para dialogar com o mestre, reforçando a ideia de uma escola do violão platino.

Na sequência, subiu ao palco do Barra Shopping Sul um gaúcho muito conhecido na Alemanha. Pedro Tagliani construiu carreira na Europa e agora está de volta ao Brasil. Seu retorno foi imprescindível para reavivar nossa memória, onde já se esmaecia o papel que o grupo Raiz de Pedra, do qual fez parte, desempenhou na história da música sul-rio-grandense. O violonista e guitarrista lembrou músicas daquele pretérito e mostrou porque os alemães gostaram tanto dele, com peças mais recentes também. Tagliani compõe dentro da proposta da maior parte dos brasileiros ligados ao jazz. Coloca ritmos da terra pra conversar com a linguagem de improvisação e complexidade harmônica. Porém, cada um com uma identidade muito própria. O porto-alegrense é conhecido pelo toque suave de violão, dedilhando sempre. Também surpreende pegando a guitarra, mudando bastante o estilo, utilizando distorções, porém mantendo a excelência na execução e concepção de arranjo. O novo e ótimo quarteto com parceiros de Porto Alegre ainda vai render muita música boa.

A noite de quinta-feira terminou com o nova iorquino Jonathan Kreisberg, representando o país onde surgiu o jazz. E não decepcionou. A plateia já estava maravilhada com a apresentação do conterrâneo Tagliani, e se transportou para outras paisagens sonoras com o quarteto estrangeiro no palco. Na maior parte do show, Kreisberg tocou sua guitarra marcando e “entortando” a harmonia, enquanto o baita saxofonista Will Vinson atuava mais melodicamente. Em outros momentos, o solista largava o sax e sentava ao piano, invertendo os papéis com o band leader.

Era só o início da programação de uma semana em que Porto Alegre parou em alguns momentos. Na Redenção, o pipoqueiro servia um menino que, encantado com a voz de Milton Nascimento, derrubava sem querer o saquinho no chão. Num pub da Cidade Baixa, uma guria festeira deixava uma pretendente a galantear sozinha, enquanto viajava no som do grupo Kula Jazz. Num apartamento, amigos que não poderiam ir ao festival se reuniam para tomar café colombiano, curtir Charlie Parker no toca-discos e acabar esquecendo de conversar. Na quinta-feira, um fotógrafo abandonou o ofício diversas vezes e ficou sentado no chão em frente ao palco com os sentidos elevados a outra dimensão. Do outro lado da cidade, alguém definia seu voto pra eleição de síndico.

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