Autoras abrindo espaço nas prateleiras

Maurem Kayna e Clarissa Xavier participam ativamente do Leia Mulheres (Foto: Sidd Rodrigues/Nonada)
Maurem Kayna e Clarissa Xavier participam ativamente do Leia Mulheres (Foto: Sidd Rodrigues/Nonada)

 

veredas-banner-300x300px (1)Foi lendo uma reportagem que Clarissa Xavier soube, de forma mais crítica, qual espaço na literatura é destinado à mulher. A linguista computacional também se ateve ao fato da maioria dos livros ser escrito por homens. “Parei para pensar no assunto. Fui olhar os livros que tinha em casa e, realmente, me dei conta de que os autores homens se sobressaíram na estante”, confessa ela.

A partir desta inquietação, Clarissa entrou em contato com as organizadoras do Leia Mulheres, que eram citadas na tal reportagem, cogitando a possibilidade de criar um grupo em Porto Alegre. Recebeu o sim. Até agora, já foram promovidos três encontros na capital, que são mensais e gratuitos, e o grupo do Facebook já conta com 286 membros.

Clarissa é um dos exemplos entre tantos outros espalhados por diversos estados do Brasil. Além de Porto Alegre, há grupos do Leia Mulheres em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Fortaleza, Curitiba, Brasília, Recife e São Luís. Isso apenas para citar as capitais, pois o interesse de diversos municípios em participar da iniciativa é contínuo.

Originalmente, tudo começou no Twitter com a hashtag #readwomen2014, proposta pela escritora e ilustradora britânica Joanna Walsh. A intenção era incentivar a leitura de autoras femininas e a questão de gênero na literatura. A hashtag se multiplicou, provocando discussões e acabou resultando em iniciativas como o Leia Mulheres.

No caso da capital gaúcha, até agora, a escolha do livro a ser lido mantinha uma dinâmica: o tema da obra escolhida era decidida na reunião presencial. E, dentro da temática, era aberta uma enquete com sugestões de títulos no grupo do Facebook. Em agosto, o Leia Mulheres começou com A descoberta do mundo, de Clarice Lispector. Em setembro, o tema foi “escritoras suicidas” (A redoma de vidro, Sylvia Plath). No mês de outubro, “escritoras gaúchas” (As parceiras, de Lya Luft). E agora, no dia 28 de novembro, a temática será “escritoras negras”. A obra escolhida foi Coração apertado, de Marie Ndiaye. O encontro será promovido, às 16h, na Biblioteca Pública Municipal Josué Guimaraes (Érico Verissimo, 307).

A cada mês, um livro é escolhido para ser discutido (Foto: Sidd Rodrigues/Nonada)
A cada mês, um livro é escolhido para ser discutido (Foto: Sidd Rodrigues/Nonada)

No entanto, Clarissa percebeu que as escritoras mais conhecidas e populares eram as escolhidas nas enquetes. Por isso, a partir de dezembro, o livro será definido em reunião ou por alguém designado, sem enquete. A intenção é diversificar o nome de autoras, contemplando um leque maior e mais plural. O legal, conta a organizadora, é que muitas pessoas não vão aos encontros, mas leem a obra.

Maurem Kayna, engenheira florestal, escritora e uma das integrantes do Leia Mulheres, conta que a discussão sobre as obras é bastante fluida. Não há uma abordagem teórica sistemática, até porque, segundo elas, não é essa a intenção. Cada um diz o que pensa do livro, destaca um trecho que lhe interessa ou que não compreendeu. “Acaba rolando uma associação entre a obra e a vida da autora”, conta Maurem. E é a partir daí que nasce uma discussão prática da vida e do papel da mulher na sociedade em cada fase da história.

Apesar de as participantes apresentarem certa homogeneidade, as interpretações e opiniões a respeito das obras são distintas, até divergentes em alguns casos, mas isso não é problema. “Para nossa felicidade”, conta Maurem, “por enquanto, a civilidade tem se mantido de maneira bárbara, quase surpreendente. Até agora, a gente notou a predisposição de se ouvir”.

O clube de leitura não tem um lugar permanente para ser promovido. O Leia Mulheres já passou pela sala da Usina do Gasômetro, pela Casa de Cultura Mario Quintana e, mais recentemente, pela Biblioteca Josué Guimaraes. Ao contrário do que acontece em São Paulo e no Rio de Janeiro, em que o Leia Mulheres surgiu a partir de uma estratégia de marketing de uma livraria, o que garantia apoio, em Porto Alegre a iniciativa é independente. Fora do espaço físico, os principais debates, trocas de informações e compartilhamento de textos relacionados ao tema acontecem no grupo do Facebook entre um encontro e outro.

Cartaz de divulgação do próximo encontro do grupo
Cartaz de divulgação do próximo encontro do grupo

Leitura heterogênea e o paradigma Tostines

A defesa de uma literatura mais receptiva às escritoras e a formação de um grupo de leitura voltado exclusivamente a autoras femininas não impede a participação dos homens. “Penso que ter a presença de homens no clube seria muito legal, para que eles se dessem conta desta nossa diferença de leitura e para a gente também observasse isso neles”, explica Maurem Kayna. As leitoras chegaram a convidar amigos, mas eles não compareceram. Até hoje só estiveram presentes mulheres.

Pessoas de diversas áreas do conhecimento integram o grupo, que a cada encontro se renova. Há os do curso de Letras, História, Engenharia, Computação. “Mas até hoje, ou eram universitários, ou graduados, mulheres e brancas. Gostaria que fosse mais heterogêneo, seria melhor, enriqueceria nossa discussão”, destaca Clarissa Xavier.

Uma pesquisa divulgada em 2012 pelo Instituto Pró-Livro indicava que 43% dos entrevistados liam, contra 57% das mulheres. Mesmo assim, elas são menos lidas. Para Clarissa isso é um reflexo do mercado editorial, não do comprador de livros. ”Há mais de uma experiência em que a mulher manda um original e ele é rejeitado, e, quando manda com pseudônimo de homem, a recepção é outra”, critica Clarissa, lembrando o caso da autora do Harry Potter Joanne Rowling. O livro foi publicado pela primeira vez pela Bloomsbury Children’s Books, em 1997, sob o nome de J.K. Rowling. A autora acrescentou o “K”, de Kathleen, nome de sua avó paterna, a pedido de sua editora, pensando que o nome de uma mulher não seria atrativo para o público-alvo de jovens garotos.

Conforme a pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè, da Universidade de Brasília (UnB), 72,7% das obras são escritas por homens. Maurem acredita que este cenário se torna bastante propício para a aquisição de livros de autores. “Tem um paradigma Tostines aí. O mercado editorial não investe mais na visibilidade das mulheres, porque, suponho, sabe que vende menos. Então como é que a mulher vai vender mais se não for mais exposta e divulgada? O que começa primeiro?”, pergunta.

É claro que as discussões mais presentes sobre o feminismo têm despertado iniciativas que questionam a ausência da mulher em diversas áreas. Mas será que tais debates influenciam a escrita e a leitura? Mauren admite que durante muito tempo, ao escrever, talvez tenha se imposto certos filtros. Ela não queria ser identificada pela literatura feminina tratada pejorativamente. “Eu mesma não tinha parado para pensar se eu tinha menos chances. Mas na escrita eu me imponho. Acho que a provocação da Luisa Geisler (“Eu escrevo como mulher, sim”) eu acho legal. Vou escrever como mulher, sim. Eu achei bárbaro especialmente por ela ser nova. Isso influencia o conteúdo produzido por mulheres, a partir do momento que ela se propõe a essa discussão”.

Clarissa pensa que a influência das discussões feministas não é consciente, apenas reflete, queira ou não, a vivência de quem lê ou escreve. “Eu não tenho intenção de fazer nenhum tipo de texto que seja panfletário. Não gosto da ideia. Mas a partir do momento em que eu me autorizo e olho para certas questões isso vai estar lá dentro [do texto] de alguma maneira”.

Existe o risco do conteúdo ser panfletário? Para Maurem, a distinção é clara. “Ele [texto panfletário] coloca a tentativa de convencer uma ideia acima do conteúdo literário em si. Quando fica muito explicito a tentativa de convencimento da tua ideia, a tendência é que haja uma desistência de um leitor mais crítico. Mas não existe literatura neutra”, pondera.

Clarissa acredita que o objetivo está longe de ser alcançado. “O ideal é que a gente não tenha um Leia Mulheres e sim um “Leia seres humanos”. [a realidade] não reflete o percentual de escritoras na sociedade. Mas, enquanto isso, a gente vai ter que forçar a barra.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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