Em uma cidade completamente abandonada, as paredes das casas encontram-se repletas de furos, causados pelas balas das armas. Os vidros estão quebrados ou trincados. Algumas dezenas de pessoas, entre elas, crianças, andam pelas ruas, por entre corpos no chão. Os jovens soldados olham para as vítimas, que ainda agonizam e, por misericórdia, dão o último tiro. É nessa realidade que vive o protagonista de Beasts of no Nation.
Baseado no livro homônimo do nigeriano Uzodinma Iweala, o longa nos apresenta Agu, interpretado pelo estreante e excelente Abraham Attah, uma criança que vive com os pais e o irmão em um país africano desconhecido em meio a uma guerra civil. Porém, seu cotidiano se altera completamente quando o exército decide intervir, colocando aquele povoado a mercê dos militares e dos rebeldes. Ao ser capturado por esses últimos, Agu é recrutado pelo Comandante (Idris Ela) e treinado para se juntar ao batalhão formado por crianças e jovens, algo aparentemente normal naquela guerra.
O primeiro ato do filme, escrito e dirigido por Cary Joji Fukunaga, nos apresenta o cotidiano de uma criança que se encontra no meio de uma guerra civil. Ao mostrar o dia a dia do personagem – retratada por Fukunaga através de cores fortes e calorosas – vemos como a juventude tem a capacidade de reverter situações mais difíceis e encontrar formas de se divertir e sorrir, seja jogando futebol, brincando com os familiares ou inventando uma TV imaginária – este, por sinal, um dos poucos momentos capaz de fazer o público rir, sendo um presságio da atual situação do personagem. Além do mais, é possível ver a inocência de Agu com relação a certas situações do cotidiano adulto e a falta de compreensão do que realmente está acontecendo.
Assim sendo, quando Agu é capturado pelos rebeldes, o que se vê é uma criança que, sem compreender o que realmente está acontecendo, passa a fazer parte de um grupo apenas porque esta é a sua última alternativa de sobrevivência. Dessa forma, Beasts of no Nation é mais do que um filme sobre uma guerra em um país específico – e o fato de manter a localidade desconhecida é uma escolha acertada do diretor –, mas sim uma trama sobre diversas crianças que vivem em um ambiente onde a violência faz parte do seu cotidiano. A “escolha” feita pelo protagonista, assim como a de muitas crianças iguais a ele, não é algo consciente, mas sim uma decisão que ele considera “natural”, já que a maioria das pessoas com que ele vive também se encontram inseridas nesse contexto, ou porque alguém de status no grupo irá “convencê-la” de que esse é o melhor caminho.
E é nesse ponto que entra a figura do Comandante. Idris Elba – sempre demonstrando dominância em todos os papéis que executa – encarna um personagem calculista e perverso que se aproveita da fragilidade das crianças para transformá-las em soldados. Ao realizar discursos com promessas de conforto, riqueza, prestígio e vingança, ele consegue converter crianças em armas perigosas, já que, de acordo com ele, elas possuem “dois olhos para ver e mão para apertar o gatilho”. Por sinal, a cena em que o Comandante convence Agu é impactante, com Fukunaga focando o olhar de perdido da criança enquanto observa a mão de seu futuro superior gesticular.
Nas cenas de doutrinação do protagonista, como quando ele participa de seu primeiro confronto, é perceptível a alternância das cores do cenário para vermelho/roxo, tornando a trama verossímil e nos revelando que o destino do personagem é inevitável. E, quando Agu confunde uma vítima com sua mãe, percebemos como aqueles garotos estão completamente perdidos e anestesiados em meio a violência, drogas e abusos sexuais. Porém, mesmo com todas as coisas horrorosas que o menino é submetido a ver/fazer, ele tem um diálogo constante com Deus. É uma forma de manter o mínimo de sanidade possível, além de ser uma maneira de pedir perdão. O que nos leva a crer que o silêncio de Strike (o também formidável Emmanuel Nii Adom Quaye), outro dos garotos, não é de nascença, mas sim uma resposta inconsciente advinda dos traumas vivenciados durante a guerra.
Mesmo sendo uma figura perversa, o Comandante surge quase como um Deus para eles, com promessas de segurança e de sucesso no futuro. E até mesmo essa figura monstruosa se revela ser apenas um peão de um cenário muito mais complexo quando, ao se encontrar com seu superior – um homem miúdo, de terno e gravata –, afirma que a guerra não mais é que um jogo político. Usando a divisória de uma porta, Fukunaga consegue mostrar, simbolicamente, como aqueles homens, mesmo estando do mesmo lado da guerra, possuem convicções completamente diferentes.
E esse é um dos pontos que já colocam Beasts of no Nation como um marco no cenário audiovisual, além de ser o primeiro filme produzido por uma empresa de streaming (Netflix), algo que por si só já é o bastante para colocá-lo em uma posição importante na história do cinema. Além de decidir não apresentar a ideologia de cada um dos lados da guerra – de quem está certo ou errado – e seguindo um caminho diferente dos tradicionais filmes do gênero, que vangloriam o fato de estar matando por uma ideologia, Fukunaga prefere seguir o caminho oposto e mostrar que a guerra é tenebrosa, independente do lado. Ela atinge todas as idades.
Mais do que um estudo de personagem, Beasts of no Nation é um reflexo da situação de diversas crianças e jovens que vivem em constante contato com a violência e que provavelmente, por mais que tentem, o destino cruel de suas vidas é inevitável.