Olmo e a Gaivota, novo filme de Petra Costa e o primeiro de Lea Glob, levanta questões especiais sobre a vivência de uma mulher. No longa, todo o período da gravidez da atriz de teatro Olívia (Olívia Corsini) é relatado, assim como a forma com que ela se relaciona com seu estado, seu marido e o mundo ao redor.
Porém, se alguém espera um longa cheio de estereótipos sobre a maternidade, vai se decepcionar. O filme é quase um relato, belíssimo, de descoberta e contato enquanto mulher com aquela gravidez que ali desponta. O cinema feito por Petra Costa e Lea Glob é, em Olmo e a Gaivota – como fez a primeira em Elena – íntimo e libertador. Os problemas são expostos, e o flerte com o formato documental faz com que o espectador seja um dos personagens naqueles ambientes.
A gravidez de Olívia é, inicialmente, um momento bastante feliz para ela e seu companheiro, Serge (Serge Nicolai), também ator. Na cena da descoberta, a vemos dentro de um banheiro fazendo o teste, enquanto ele a espera do lado de fora. Porém, a companhia de teatro na qual trabalham (Le Théâtre du Soleil, em Paris, França) fará uma turnê em Nova Iorque e Montreal, e a gravidez impossibilitará que Olívia seja parte disso. O filme é delicado ao mostrar aquela gestação, sim, como algo quisto por ambos, mas também como algo que pode vir a decepcionar certas aspirações. E isso nunca cai num maniqueísmo de certo ou errado, mas sim mostra a dificuldade que pessoas realmente teriam em aceitar aquelas limitações. Olívia não esconde que seu desejo seria trabalhar o máximo de tempo possível, e, ao descobrir um hematoma no útero, esta fica confinada ao apartamento que divide com Serge em Paris. Nos dias em que fica apenas dentro de casa, o filme não poupa em mostrar seu tédio. A tristeza com que olha o marido ensaiando as falas da peça, já confinada há alguns dias, é comovente.
O filme é delicado ao desnaturalizar a gravidez enquanto parte essencial da vida de alguém. Não sabemos se a gestação é acidente ou planejada, mas sabe-se que Olívia tinha pensamentos anteriores sobre ser mãe. Sendo assim, o filme já acerta ao apresentar um casal que não está lidando com “um deslize” ou assumindo “um acidente”, mas de fato optando pela maternidade e paternidade, pois é o que deve ser na vida de uma pessoa: uma escolha, não um destino. E isso não é fácil para a protagonista. Confinada em casa, ela luta contra seu desejo por liberdade, e é tocante a forma como sua própria postura muda quando ela sai pela primeira vez depois de alguns meses – curiosamente quando seu marido se ausenta para ir trabalhar em Nova Iorque. Seria uma alegoria ao fato de que mesmo homens que não reproduzem estereótipos machistas de opressão podem acabar, de certo modo, limitando a liberdade de uma mulher em algumas situações específicas?
Serge, aliás, é um personagem interessante. O companheiro é presente e tenta se fazer interessado em partilhar os momentos da gravidez. Desde o momento da feitura do teste até a hora de montar o berço e organizar uma festa com sua (estressada) esposa, ele se dedica. Inclusive quando este chega perto de se tornar um estereótipo “machão”, a diretora intervém (sim, no meio do filme) quase como se dissesse: o longa não é sobre você, não vamos transformar o Serge em alguém que vai ser a causa dos conflitos e questionamentos causados por essa gravidez. Sendo assim, Serge é, na medida do possível, um futuro pai que quer participar, e o filme não o deixa fugir de vários pontos relativos à paternidade. Mas as questões, reflexões, pesos, conflitos e mudanças são protagonizadas por Olívia. É ela quem deixa de trabalhar e é ela quem gera esse bebê. Há, inclusive, uma divertidíssima (porém melancólica) cena na qual Serge pergunta sobre o que ela fez durante o dia que passou no apartamento. Com um olhar perdido, ela responde que havia feito as orelhas, talvez os cílios e o fígado. Ou então quando validamente se questiona sobre a naturalidade com a qual a maternidade suga as mulheres ao comentar sobre uma conhecida que lhe contou de alguém que perdeu um dente devido à necessidade do bebê por cálcio. Olívia é humilde ao fazer a comparação de “uma vida por um dente”, mas também questiona o fato de a gravidez literalmente exigir um pedaço dela e isso não ter atenção suficiente das outras pessoas.
O título da produção tem uma proposta interessante: por um lado, o olmo, árvore típica da Europa, seria essa nova vida que cresce dentro da mulher e, de certo modo, a prende, criando raízes. Já gaivota representaria o anseio por liberdade da protagonista que, mesmo em casa, não deixa de criativamente se relacionar com o mundo. E conectado a isso, a peça que a companhia de teatro que ambos trabalhavam está ensaiando é “A Gaivota”, de Tchekhov.
Olívia e Serge são realmente um casal, e a gravidez da atriz foi real. Petra Costa já os acompanhava anteriormente à gestação, e os dois atores interpretando a si mesmos no filme têm (obviamente) uma química intensa. Vivenciar a situação talvez seja o que intensifique a sinceridade com que a atriz vive aquele momento, somando-se ao seu imenso talento. Em uma festa que fazem, diversas pessoas falando diversos idiomas fazem um brinde, o que colabora para mostrar como aquele casal é simpático e também vivido, no sentido de ter partilhado experiências – podendo ser um namoro ou até mesmo amizade – com tantas pessoas diferentes. E enquanto Olívia conta para o espectador sobre seu passado pessoal e profissional, pode-se observar novamente o talento de Petra Costa em demonstrar a sensibilidade das pessoas de uma forma não óbvia. Se em Elena, a personagem-título dançava com a lua, em Olmo e a Gaivota, o passado de Olívia, com gravações antigas da atriz narradas por ela mesma, surge para reforçar toda aquela visão que ela tem agora desse período tão único.
O roteiro do filme é bastante baseado na improvisação e é creditado a Petra Costa e Léa Glob. Os personagens e a situação são creditados no final como construídos em parceira com Olivia e Serge. A direção de fotografia de Muhammad Hamdy é talentosa, especialmente por conseguir transformar aquele apartamento e em um ambiente ora acolhedor, ora opressor e por, durante o período em que Olívia está no apartamento, filmar a rua através de grades e janelas, como se aquela fosse sua prisão.
Longe de ser um conto de fadas sobre maternidade, a beleza de Olmo e a Gaivota está justamente na sinceridade (e talvez no ineditismo) que lide com esse tema. A gravidez, muitas vezes dita como um momento mágico, é vista por Olívia como algo “abstrato”, e isso não significa falta de amor. Significa que não é fácil e o peso desse processo acaba sempre sendo maior para as mulheres, mesmo quando se tem um companheiro desejoso de participação ao lado. É bastante clara a função protagonista da mulher nesse processo. E entre os vários méritos de Olmo e a Gaivota, uma delas é sem dúvida trazer conforto e voz para essas mulheres que, muitas vezes confinadas aos seus próprios sentimentos, sentem-se sós ao não partilhar da magia e facilidade com que supostamente as grávidas devem passar os nove meses de gestação.