Emicida: o marinheiro que não está só

Texto Bruno Teixeira

Fotos Fernando Halal

Emicida fez contato direto com os fãs no Opinião
Emicida fez contato direto com os fãs no Opinião

Quando as luzes do palco foram ligadas, a imagem de uma enorme caravela portuguesa  chamou a atenção do público. Em frente a ela, vestindo uma máscara e sentado ao centro do palco, Emicida observou o mar a sua frente. Um mar multicolorido, formado por pessoas de diferentes raças e classes sociais. Ao se levantar e retirar a máscara, ele proclamou verso da música “8”, tipo central do Brasil, eu vou sozinho…No entanto, não foi o que aconteceu.

Emicida foi acompanhado de forma intensa pela multidão que lotou o Opinião, na última quinta-feira, 12, no show de lançamento de seu segundo álbum oficial, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa. Durante cerca de duas horas, o rapper paulista cantou novos e antigos sucessos da carreira, declamou poesias e mostrou, mais uma vez, porque é um dos artistas relevantes do país na atualidade.

Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa ganhou as ruas e plataformas digitais no início do mês de agosto. Desta vez, as letras extremamente críticas à realidade brasileira são acompanhadas, em grande parte, por  ritmos tribais. A mistura é resultado da viagem de 20 dias do rapper pelas cidades de Praia (Cabo Verde) e Luanda (Angola), locais onde gravou parte do disco.

O mergulho na cultura desses países está presente de forma intensa no álbum e também é o pano de fundo desta turnê. Novamente, Emicida acertou ao repetir o formato de seu disco anterior e levar ao palco a combinação entre os toca-discos de Dj Nyack e a banda formada por Doni Jr (cavaco e violão), Anna Trea (guitarra e percussão), Carlos Café (percussão), Samuel Bueno (baixo) e de Sivuca (percussão). Deste modo, o show reproduziu com grande fidelidade a atmosfera criada pelo ábum.

Desde o inicio do evento, foi possível sentir que aquela não seria uma noite comum. Na data que comemora o dia mundial do hip-hop, o grupo Rafuagi, veterano no cenário do rap nacional, abriu o evento com maestria e colocou o nível no alto. A energia se manteve no período entre shows com a seleção musical que envolveu desde o rapper estadunidense Mos Def e os brasileiros Rael da Rima, Marcelo D2, SNJ e Criolo. Quando Emicida surgiu e cantou “8”, o público já estava a todo vapor. Porém, algo surpreendente aconteceu. Emicida não seguiu a ordem da setlist do disco e, já na segunda canção, apresentou uma das músicas mais aguardadas da noite, “Boa esperança”. Como uma torcida de futebol fanática comemorando um gol, o público soltou o grito que parecia estar entalado na garganta. Na voz do cantor, foi possível sentir a mesma revolta dos empregados retratados no clipe da música. “Boa esperança” tem o poder de traduzir o sentimento de um povo cansado de sofrer dos abusos de uma sociedade racista e desconfortar aqueles que ainda se recusam a enxergar esse cenário.

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Rapper está em turnê com o álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa

Outro momento de comoção, no início do show, foi quando Emicida cantou “Mãe”. Apesar de ser uma música autobiográfica, os versos traduzem algo muito comum no Brasil: a relação entre uma mãe que precisa trabalhar como doméstica e criar sozinha os filhos e a criança que cresce em meio a pobreza e as oportunidades do crime sem entender muito bem as dificuldades enfrentadas por sua mãe.

“Gueto e Hoje cedo”, sucessos do disco anterior, O retorno de quem nunca esteve aqui (2013), também foram cantados com força pela multidão. Enquanto isso, o rapper agradeceu aos músicos que foram o alicerce do rap no Brasil. Entre eles, aos que literalmente deram a vida pelo movimento hip-hop, caso do rapper Sabotage e tantos outros. Outra referência lembrada por Emicida foi o Dj Gê Powers, um dos estandartes da música negra de Porto Alegre.

No início do mês, Emicida perguntou em sua página no facebook qual era a música que os fãs gaúchos mais gostariam de ouvir no show. Em poucos segundos, “Passarinhos” foi o nome mais comentado no post. A música que conta com a participação especial de Vanessa da Mata virou hit em diversas rádios do país e, no show, teve o seu refrão entoado levemente como um hino. Neste momento, algumas fãs chegaram a subir no palco, porém foram rapidamente contidas pelos seguranças, dando indícios de que aquela cena poderia ocorrer outras vezes.

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Anna Trea na guitarra

Outra canção muito celebrada foi “Baiana”, que fez muita gente dançar e, especialmente, cantar o verso 2 de Fevereiro, dia da Rainha/ Que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha. A ligação com o continente africano, tão bem ilustrada no álbum, foi um dos méritos do espetáculo. Seja pela imagem afetiva criada pelas letras das músicas ou do excelente desempenho dos percussionistas, foi possível se sentir dançando em um terreiro ao som dos tambores.

Em meio ao show, uma fã levantou um cartaz e Emicida reconheceu que se tratava de um texto do poeta Sérgio Vaz. Logo, ele começou a recitar um poema do autor. Depois, recitou o poema “Súplica”, da poetisa angolana Noémia de Souza (leia aqui). Os momentos de reflexão também seguiram quando o rapper cantou “Haiti”, de Caetano Veloso, em homenagem aos imigrantes Haitianos que chegam ao país.

A mensagem sobre os imigrantes haitianos exemplifica a importância de seu discurso. A cada novo álbum, Emicida conquista ouvintes dos mais variados tipos. Em 2013, às vésperas de lançar O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, o rapper foi recebido no Opinião por um público majoritariamente formado por fãs de rap. Já neste ano, o conjunto de pessoas foi caracterizado por sua diversidade. Além do pessoal identificado com o movimento hip-hop, muitos universitários e adolescentes assistiram ao show. Neste contexto, o rapper utilizou um artifício que já foi muito característico em apresentações do grupo Racionais MC’s: a orelhada. Em resumo, pequenos discursos entre as músicas para que o público reflita sobre determinados temas. Em um período onde muitos artistas ganham destaque com opiniões sem o mínimo grau de reflexão e a intolerância é reproduzida massivamente na internet, Emicida busca o caminho inverso. “Eu quis fazer um disco que propusesse o diálogo”, explicou. “Temos que sair do twitter, do “face” e olhar mais nos olhos das pessoas”, concluiu.

De fato, o contato de Emicida com o público foi muito intenso. Por diversas vezes, o MC foi até a beira do palco para apertar as mãos dos fãs. Contudo, o que acontecia, não era um simples saudação. O contato visual e a energia trocada nos apertos de mãos, que por algumas vezes quase lhe derrubaram do palco,  davam a sensação de que ele tinha uma relação de amizade com aquelas pessoas. De fato, Emicida reconheceu: “Gosto de cantar aqui. Tem show grande que tu fica muito distante do público. Aqui parece na época da rinha (dos MC’s) que tu subia numa cadeira e todo mundo ficava perto”, contou.

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Desde o começo de sua carreira, Emicida é um porta-voz das ruas

“Zica vai lá”, da mixtape Doozicabraba e a revolução silenciosa (2011), e “Triunfo”, sucesso da mixtape Pra quem mordeu um cachorro por comida até que eu cheguei longe (2009), antecederam Mandume, que teve os versos de Drik Barbosa, Amiri,Rico Dalasam, Muzzik e Raphão Alaafin cantados na integra para um novo delírio do público. Neste momento, o show se tornou uma festa insana.

Emicida encerou o a apresentação com a música “Casa”, mas voltou ao palco após os pedidos do público. Recitou a música “Hey rap” e cantou “Rinha (já ouviu falar)” acompanhado apenas do violão, que falhou, mas não impediu que as rimas do MC fossem guiadas pelo ritmo das palmas do público.

“Levanta e anda e Salve black” fecharam a noite e fizeram o mar de gente invadir o palco. Neste momento,  várias mulheres abraçaram o rapper. Uma delas, talvez, tenha resumido a simbologia daquela noite em um ato. Negra, cerrou o punho direito, o levantou ao céu e abriu um imenso sorriso. Em seu rosto não estava apenas a satisfação em abraçar o artista, mas a alegria em saudar alguém que dá voz a muitas de suas lutas.

Desde o início de sua carreira, Emicida já era um porta-voz das ruas, combatendo preconceitos, a violência da polícia e a desigualdade social. Em Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa o artista foi além e escutou a voz que existe no interior da negritude brasileira, a voz que faz com que as pessoas se sintam como o “Marinheiro Só”, de Clementina de Jesus, alguém que não é daqui. Por isso, seu trabalho é tão relevante, pois traz consigo um pedaço da cultura africana e faz com que todos se sintam um pouco mais em casa.

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