O protagonismo das personagens negras no romance hispanoamericano

veredas-banner-300x300px (1)Dois dias antes de apresentar a tese de doutorado (Re)cordar para (re)contar: representaciones de la protagonista negra em tres novelas históricas hispano-americanas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Liliam Ramos conversou com o Veredas sobre as semelhanças e particularidades das obras que analisa – e como consequência as escritoras: Jonatás y Manuela (1994), da equatoriana Argentina Chiriboga; Las esclavas del rincón (2001), da uruguaia Susana Cabrera; e La isla bajo el mar (2009), da chilena Isabel Allende. Também contou como percebe que tais personagens se deslocam e se expressam dentro do cenário da escravidão.

A professora de língua espanhola e de literatura hispano-americana vem trabalhando com autores negros das américas desde a graduação, quando participava de um grupo de pesquisa da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll). O núcleo Hibridação literária nas américas contava com a coordenação da professora Zilá Bernd, especialista em literatura afro-brasileira.

Após ter contato com a literatura afro-hispano-americana, Liliam trabalhou com a poesia do cubano Nicolás Guillén e do poeta afro-brasileiro Solano Trindade durante iniciação científica como bolsista. No mestrado, procurou romances históricos que apresentassem protagonistas negros. Queria saber de que de forma eles reconstruíram sua identidade na literatura. Foi então que comparou as obras Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro, e Changó, el gran putas (1983), do colombiano Manuel Zapatta Olivella.

Entre os inúmeros personagens desses romances, estavam as mulheres. “Quando terminei a dissertação eu pensei, ‘se eu dia eu fizer doutorado, vou procurar quem são essas mulheres hispano-americanas’”, conta Liliam, ressaltando que há muitas diferenças entre os 19 países da américa hispânica. Acompanhe os principais trechos da conversa:

 

Capa de La Isla Bajo el Mar, de Isabel Allende
Capa de La Isla Bajo el Mar, de Isabel Allende

Veredas – Como teve início esta pesquisa e como tomou conhecimento das obras?

Liliam Ramos – Em 2009, chega em minhas mãos La isla bajo el mar, da Isabel Allende. Era isso que eu queria: uma mulher em contato com a história da revolução dos escravos do Haiti (1791-1803). Eu pretendia, a partir de um momento histórico, saber de que forma aquela mulher atua no cenário, como consegue se deslocar naquele contexto de escravidão e de que forma isso aparece no romance, a partir do ponto de vista da mulher. Das três obras analisadas, todas personagens são escravas. Há livros que só conhecemos através de contatos, conversas com professores e em eventos fora do Brasil. Por mais que a internet ajude, alguns são difíceis de serem encontrados. [os livros Las esclavas del rincón e a Jonatás y Manuela foram indicações de professores de Liliam ou de pessoas próximas das escritoras].

Veredas – São obras de lugares e contextos distintos…

Liliam – Fiquei feliz porque tenho uma protagonista de um momento histórico do Caribe, uma do Pacífico Andino e uma do Rio da Prata. De certa forma, as comarcas culturales, conceito do escritor e crítico Ángel Rama (1926-1983), diz que o nosso sistema literário cultural não está dividido por países, e sim por regiões. Seriam elas a comarca do pampa, andina, amazônica e a caribenha. Na Amazônica, não encontrei nenhuma obra de uma mulher negra como protagonista.

Veredas – O que há de comum entre essas comarcas e de que forma isso reflete nos romances?

Liliam – Vamos ter regiões que receberam muitos e poucos escravizados, e isso acaba influenciando a literatura. Por exemplo, no Caribe, existe uma profusão de literatura negra, temos muitos escritores – e aí incluo o Caribe francófono. Há muita literatura caribenha relacionada ao protagonismo negro. Existe tanto que até uma escritora chilena [Isabel Allende] resolve escrever sobre a revolução dos escravos no Haiti.

O pacífico andino é uma região mais desconhecida, pois, quando falamos nos Andes, pensamos em indígenas, e não em negros. Mas, no Equador, há uma cidade chamada Esmeraldas que recebeu muitos negros escravizados. Ali foi desenvolvida uma literatura muito importante. No Rio da Prata também. É cultivada uma ideia de que não houve escravidão aqui no Sul ou que teve pouco. Mas ela existiu.

Veredas – Como as três escritoras manifestam este protagonismo da mulher negra?

Liliam – A divisão que faço da minha tese é El protagonismo da mujer negra em La islã bajo el mar, La narrativa de la mujer negra em Las esclavas del rincón e La voz de la mujer negra em Jonatás y Manuela. São duas escritoras brancas (Isabell Allende e Susana Cabrera) e uma negra (Argentina Chiriboga). A Isabel Allende consegue dar protagonismo à personagem dela. Ela é uma escritora branca e super feminista, então aquela voz feminina está ali no texto.

Da Argentina Chiriboga não tem nem o que dizer: ela é uma mulher negra que escreve sobre Jonatás, uma escrava de Manuela Sáenz (1797-1856) [figura revolucionária que lutou durante a independência das colônias sul-americanas ao lado de Simon Bolívar (1783-1830)]. Argentina resgata toda a história de Jonatás a partir da avó da personagem, que é traficada da África, passa pela diáspora e chega no porto de Cartagena das Índias, na Colômbia. De lá, a avó caminha até o Equador. Assim acontece o descobrimento desta nova terra que ela não conhece. Depois vem o nascimento de Jonatás, ela se sentindo uma mulher das américas e que precisa lutar pela liberdade do Equador em relação às colônias. A gente vê muito claro a escritora resgatar este passado familiar. Com certeza são histórias que ela vem ouvindo há muitos anos que contam a escravidão.

Já a Susana Cabrera parte de um momento histórico, no Uruguai, que é o assassinato de uma mulher, na província Cisplatina, por duas escravas. Elas não aguentam mais serem maltratadas e manter a vida que levavam. Então elas matam a sua proprietária e são condenadas à pena de morte pela forca. A única condenação que existiu no Uruguai pela pena de morte na forca foi essa.

A pesquisadora Liliam Ramos Foto: arquivo pessoal)
A pesquisadora Liliam Ramos Foto: arquivo pessoal)

Veredas – Não há registro de outras?

Liliam – Não, foi a única vez. Depois que elas foram enforcadas em praça pública – sempre para dar o exemplo aos outros negros, “olhem o que pode acontecer com vocês também” – a forca foi queimada e nunca mais foi utilizada. Inclusive o nome da forca começou a ser chamada Mariquita, que era o nome da escrava que eu analiso no romance Las esclavas del rincon.

Veredas – Como as escritoras retratam a escravidão?

Liliam – Pela região sul ter tido menos registros da escravidão, isso acaba refletindo no texto histórico e literário. Temos a Susana, que resgata o passado de uma escravizada, mas ela não questiona muito a escravidão. Ela quer recontar aquela história, apenas isso. Enquanto as outras duas, a Isabel Allende e a Argentina Chiriboga, estão sempre questionando: mas por que ser escrava? Por que tenho que aceitar um deus dizendo que preciso ser escravo? Elas trazem todos esses elementos afros que aparecem na literatura. Por exemplo, religiosidade, sabedoria ancestral. Os africanos se movem sempre com os seus ancestrais, a religião africana é a junção de presente, passado e futuro. A religião está fortemente relacionada à natureza, ao respeito. E isso a Susana Cabrera não faz muito neste cenário do crime que acontece na província cisplatina.

Elas são bem diferentes, as três. Mas o importante é que essas escritoras conseguem reconstruir uma memória afro hispanoamericana a partir da voz da mulher.

Veredas – Podemos dizer que existe na obra um discurso duplo de contestação?

Liliam – Sim, é o duplo preconceito: ser mulher e ser negra.

Jonatás y Manuela_Divulgação
Libro da escritora negra fala sobre escravidão

Veredas – Como o protagonismo destas personagens é exposto? Ele é político também?

Liliam – Sim, nos discursos. Identificamos o protagonismo em La isla bajo el mar porque tu tens uma mulher que decide atuar naquele redemoinho. É Zarité que salva a família com a qual vivia, já que, na revolução, os brancos eram os principais alvos dos negros na guerra civil.

Percebe-se que Zarité tem seu discurso, mas não pode falar com todas as palavras, porque é escravizada.

Quando tem 40 anos ela consegue falar sobre a sua vida desde criança, quando foi adquirida na primeira casa, e quando foi vendida. Fala dos estupros dos quais foi vítima, da gravidez e dos filhos dos senhores brancos. Zarité conta da sua paixão por outros homens escravizados, mesmo assim, nunca vai embora com eles porque ela sente que precisa da liberdade em papel, mesmo sendo uma analfabeta. Ao mesmo tempo, ela continua participando das cerimônias festivas de vodoo que aconteciam. A Isabel Allende trabalha bem e consegue dar este protagonismo. Tanto nas atitudes como nos discursos.

Com a Argentina Chiriboga não tenho críticas. É a escritora negra que está rememorando todo este passado familiar e reconstruindo a história para Jonatás, que foi a escravizada de Manuela. Na última parte do romance, aparecem Jonatás, Manuela, Bolívar e todo o exército saindo em direção à Batalha de Pichincha (1822), no Equador, onde começariam as lutas pela independência dos países hispano-americanos, principalmente os do norte da América do Sul, que o Bolívar consegue libertar.

Veredas – Sentes, a partir destas obras, diferença na abordagem de uma mulher branca escrevendo sobre um contexto de escravidão da mulher negra?

Liliam – Sim. Por mais que nós, como críticos de literatura, digamos que, quando se trata de literatura negra, não necessariamente tenha que ser um negro para escrever. Um escritor branco também consegue contemplar, acredito que sim, as especificidades da cultura negra. Ele trabalha bem com os elementos. Está aí o trabalho do João Ubaldo Ribeiro: ele não era um escritor afro-descentente, mas trabalhava bem a questão da identidade nacional e inclui o negro na formação. O cubano Alejo Carpentier (1904-1980) era branco. Mas ele conseguia reescrever a história da revolução dos escravos no Haiti dando o protagonismo ao negro. Tanto que ele tem outras produções que tratam da questão do negro.

Mas quando o texto [relacionado à escravidão e à identidade] é escrito por um negro a gente consegue visualizar este elementos. Por exemplo: a Isabel Allende e a Susana Cabrera são brancas, elas trazem estas protagonistas negras que falam em primeira pessoa. A Argentina Chiriboga, em Jonatás y Manuela, não, a narrativa dela é onisciente. Mas, por mais que seja em terceira pessoa, tu identificas a escritora ali, com todas as lembranças e a memória familiar inserido no texto dela.

[Por outro lado] A mulher, mesmo branca, sempre se identificou com os escravizados, porque, de certa forma, ela também se sentia assim. Qual mulher vinha para cá, para o Novo Mundo, para estas novas terras? As que se casavam com homens que queriam vir para a américa [muitas vezes contra a sua vontade].

No século XIX, temos a obra cubana escrita por uma mulher [Gertrudes Gómes de Avellaneda (1814-1873)], se chama Sab, que é o nome do protagonista, um homem. Mas, na verdade, pode ser uma mulher também, pode ser a própria escritora. Tanto é, que ela dá um nome que cabe tanto para homem quanto para mulher.

Veredas – É como se o fato de ser negra autenticasse esta narrativa?

Liliam – Exatamente. A Isabel Allende traduz muito bem. Com a Susana Cabrera, eu já tenho alguma restrição, acho que não funciona tanto.

Veredas – Por quê?

Liliam – Ela vai recontar a história desta mulher, mas não trabalha com os elementos afro na literatura. A Susana reconstrói o passado da Mariquita, trazida de Cuba, que é recebida por Celedonia como um presente de seu irmão, em Montevidéu. O problema, para a senhora branca, é que Mariquita é uma negra bonita. Celedonia vai relembrar de sua infância na Espanha, quando via que o pai mantinha relações sexuais com uma negra e traía a mãe.

É muito interessante que a Susana descreve a aceitação desta negra por parte da Celedonia, quando ela dá um espelho para a escravizada. A Mariquita pensa que a branca se preocupa com ela, mas não. Aquele espelho servia para que a escrava visse a degradação que ela sofreria desde a sua chegada até o dia em que ela não aguentasse mais. Celedonia desejava que Mariquita se matasse, mas é a escrava que a mata. Por isso, é condenada e vai para o castigo da forca. Elas são personagens históricas, existiram.

Susana reconstrói muito bem a personagem, mas, em comparação com as outras duas, ela não questiona a escravidão. Ela não descreve de forma tão completa, assim como a Isabel Allende, a mulher escravizada, negra, com sentimento de união com os outros negros escravizados.

Mas precisamos levar em conta que o romance histórico no Uruguai começou a tomar forma há pouco tempo. Ainda me parece que a Susana Cabrera se utiliza de elementos do século XIX, do negro estereotipado, que quer ser igual ao branco. A Mariquita é descrita como uma escravizada que vem de Cuba com “uma criação de menina branca”. Contudo, este é o único romance da região do pampa hispânico, argentino e uruguaio, que apresenta uma mulher protagonista vivenciando um momento histórico. Não tem outro. Talvez a partir deste outros escritores pensem em reescrever.

Veredas – O cenário está mudando? As mulheres estão se fazendo presentes na literatura?

Liliam – É bem interessante pensar nisso porque, se a gente for ver as publicações de romances do século XIX que existem. Além desta análise dos três romances, há uma pesquisa de todos os romances [hispano-americanos] escritos até hoje que apresentem, não só a mulher, mas o negro em geral. Existem 17 obras escritas no século XIX, 46 no século XX e, até 2015, foram publicados 25. Então esta literatura existe. Agora, o século XXI é da mulher. Dos 25 romances, 16 são escritos por mulheres. É a mulher negra escrevendo sobre a mulher negra. Estamos num caminho bem importante.

VeredasExistem, nos romances afro hispano-americanos do século XIX, semelhanças?

Liliam – A maioria destes romances é cubano. Como foram publicados ainda na época da escravidão, apresentam características de um negro estereotipado. É aquele que tem vontade de sair daquela vida, mas quer se igualar ao branco. Não vai apresentar nenhum tipo de resistência, justamente porque, se estes textos começassem a circular e as pessoas começassem a ler “olha, eles podem se rebelar”, os textos não seriam lidos. São sempre homens passivos que aceitam aquele destino.

Existia o relacionamento entre o homem branco e a mulher, mas o casamento e o final feliz eram inviáveis. Em nenhum deles, em nenhum dos 17 romances existiu um final feliz. Geralmente alguém morre e, na maioria das vezes, é a mulher, a mulata. Ela fica doente, triste, é assassinada. De alguma forma os escritores tinham que dar um jeito naquela mulher. Ela não podia se casar com o homem branco.

Compartilhe
Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
Ler mais sobre
Direitos humanos Entrevista

“O racismo sempre fez parte do meu acolhimento no Brasil”, diz autor haitiano

Memória e patrimônio Reportagem

Centenário é importante para revisar mitos da Semana de Arte Moderna

Entrevista Processos artísticos Resenha

Ana Cañas: “Querem calar as vozes que defendem os direitos e a democracia”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *