Texto: Kelly Freitas
Fotos: André Olmos/Divulgação
Em um momento em que a cultura negra está tão presente no mainstream, um título como “Qual a diferença entre o charme e o funk?” não passa despercebido (em branco?). Frustra-se, porém, quem vai ao teatro somente em busca da riqueza cultural da favela. Com um grupo de sete atores negros que criaram o enredo em conjunto, a peça possibilita ao espectador negro que se reconheça naquelas histórias, e ao espectador branco, que tenha ciência sobre quem se está falando nos discursos que, muitas vezes, se apropria.
Quase três semanas após o fuzilamento de cinco jovens negros em Costa Barros, no subúrbio do Rio de Janeiro, esses dois tipos de espectadores terão mais uma oportunidade de verem-se diante de seus medos, memórias e perspectivas no Salão de Atos da UFRGS, no dia 11 de dezembro, às 14h30min. Roberto (16), Wilton (20), Wesley (25), Carlos Eduardo (16) e Cleiton (18), mortos no último dia 28 com 111 tiros disparados por policiais militares, saíam para comemorar o primeiro salário de um deles em um sábado à noite. Qual a diferença entre o charme e o funk? consegue trazer, em pouco mais de uma hora de espetáculo, representações sobre as expectativas e as aflições presentes em cada vida negra, como as desses rapazes.
Curiosamente, O rap do Silva, que perde um pouco do seu valor a cada vez que é entoado por privilegiados brancos e de alto poder aquisitivo – muitas vezes, de dentro de suas festas privadas, onde o funk é descolado, mas o negro não -, completa 20 anos em 2015. Por mais que a canção não diga, é histórico que a morte do negro não vem somente pelas mãos daquele que é visto como o vilão da história, o outro negro envolvido com o tráfico. Durante o espetáculo, aquilo que tanto se exaltou sobre a versão da música Survivor, das Destiny’s Child, realizada recentemente pela cantora Clarice Falcão (uma brasileira de classe média e caucasiana, cantando em inglês, uma versão romantizada de uma música de forte empoderamento negro feminino nos Estados Unidos), pode ser encaixado de uma maneira mais certeira à interpretação por atores negros da letra do funk: é a chance de se prestar atenção como nunca.
Em uma atmosfera que circula em torno de elementos como as religiões de matrizes africanas, a música e a dança, as histórias nos levam a olhar nos olhos de cada protagonista e, em algumas vezes, nos percebermos quase que às suas alturas. O arrepio é inevitável quando o grito que permanece dentro de cada negro se transforma em um ritmo bradado a plenos pulmões. É o orgulho acompanhado de toda a raiva legitimada e, ao mesmo tempo, com o sorriso estampado no rosto de quem se levanta contra seu opressor. A trilha e os efeitos sonoros realizados na hora, em sintonia com os acontecimentos da peça, são capazes de envolver até aqueles que não mantém uma relação tão próxima com os assentos de casas de teatros. O congá, que nas religiões de matrizes africanas serve como um altar, ocupa o fundo do palco contendo elementos que dão introdução a várias das histórias. Ele foi costurado pelo próprio diretor da peça, o Thiago Pirajira, junto da atriz Camila Falcão e a mãe dela, Mari Falcão.
Por meio de uma experiência visual, auditiva e sensorial, são apresentados durante a peça, desafios que as atrizes e os atores enfrentaram, e ainda enfrentam, em suas próprias realidades. São narrativas sobre as lutas vencidas em relação à estética negra, marginalizada em um país de padrão de beleza ainda eurocêntrico; sobre a homoafetividade do homem negro, tão ignorada pelo estereótipo construído em séculos de uma sexualidade reduzida ao animalesco; a relação entre as gerações das famílias negras, explorando histórias de atrizes com seus pais, revelando a dureza da vida que aparece, inclusive, nas formas de amar de quem convive com diversos tipos de violência.
Fazendo o “Teste do Pescoço”, que se baseia em contar quantos negros estão presentes nos espaços – principalmente aqueles considerados centrais na vida cultural das cidades – considerando a função desempenhada por cada um deles, não é muito difícil perceber que o teatro ainda não é um ambiente tão negro quanto branco. Essa diferença é ainda mais visível quando se faz essa busca de representatividade do lado de cima do palco, objetivando o protagonismo. Por isso mesmo, uma peça de teatro idealizada por jovens negros ainda não graduados, mas que consegue falar direto àqueles cujas vidas podem ser assimiladas durante o enredo, merece ser vista pelo público que tem seu espaço constantemente negado no ambiente cultural brasileiro.
As cinco indicações ao Prêmio Açorianos de Teatro de 2015, nas categorias de melhor direção (Thiago Pirajira), melhor ator (Bruno Fernandes), melhor dramaturgia original, melhor produção e melhor trilha sonora (João Pedro Cé), coroam um mês de apresentações bem-sucedidas na Sala Álvaro Moreyra, no Centro Municipal de Cultura Érico Veríssimo, e encerra as atividades culturais do ano letivo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais que um revival, é o reconhecimento de um trabalho feito pelas mãos daqueles que sentiram a necessidade de questionar a frágil crença de uma democracia racial, utilizando-se da própria arte. Após a apresentação, será realizada uma conversa com os atores da peça, o professor Pedro Acosta e o ativista social Mario Marques.
*com informações do site da UFRGS
Texto ótimo!!!
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Aproveito para agradecer a citação do ‘teste do pescoço’, de minha autoria e Francisco Antero.