O gênero, a importância e o papel de uma Editora chamada Mulheres

veredas-banner-300x300px (1)No catálogo da Editora Mulheres constam cerca de 90 livros. Entre coletâneas de artigos, ensaios, obras de pesquisadoras e traduções de trabalhos – todos relacionados à mulher e/ou ao feminismo – está o resgate de escritoras do século XIX, sobretudo brasileiras. Porém, não são apenas os números que importam, mas também a contribuição teórica, intelectual e histórica que a editora presta, ao resgatar da invisibilidade autoras excluídas do cânone literário, validado por muito tempo pela crítica masculina.

A proposta editorial foi criada em 1995 pelas professoras aposentadas Zahidé Muzart, Susana Funck e Elvira Sponholz, com sede em Florianópolis, Santa Catarina. No ano seguinte, a editora publica o primeiro livro, Mulheres illustres do Brazil (1899), de Inês Sabino, obra que reúne as várias escritoras daquela época, assim como fotos e biografia.

Em 2016, a Editora Mulheres completa duas décadas de existência, uma data marcante, já que este será o primeiro ano sem a presença de Zahidé, que veio a falecer em outubro de 2015. “Zahidé era a Editora Mulheres”, lembra uma das sócias-fundadoras, Susana Funck. “Ela fazia tudo com a maior dedicação e sozinha [a partir do final da década de 1990]”.

Era recorrente ouvir que as mulheres do século XIX não haviam escrito, consequentemente, nem publicado. No entanto, percebeu-se que, na verdade, as escritoras não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos, como também constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor histórico.

A fundadora Zahidé Muzart era a responsável por editar todas as publicações (Foto: arquivo pessoal)
A fundadora Zahidé Muzart era a responsável por editar todas as publicações (Foto: arquivo pessoal)

Susana, que é professora pesquisadora na área de crítica literária feminista e estudos de gênero, foi sócia da editora durante quatro anos, aproximadamente, mas logo se desligou por razões profissionais. Mesmo assim, sempre acompanhou as atividades de Zahidé, como amiga e como membro do conselho editorial da Editora Mulheres. “Foi um projeto bastante audacioso, que exigiu um imenso trabalho de busca documental, fruto das muitas pesquisas realizadas por Zahidé, que se dedicava principalmente à literatura brasileira”, explica a professora, lembrando que a editora trabalhava em pelo menos três livros na ocasião de seu falecimento.

A proposta da Editora se encaixa no trabalho de resgate, uma das linhas de pesquisa do Grupo de Trabalho (GT) A mulher e literatura, da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística), da qual o trio fazia parte. O projeto alia-se à tendência de uma crítica feminista interessada na consolidação de uma tradição literária escrita por mulheres, ou seja, uma literatura própria. Susana conta que intenção da empresa era a de resgatar, reeditar e colocar em circulação obras literárias produzidas por mulheres que, por razões históricas e ideológicas, haviam sido excluídas do cânone.

Foram publicadas coletâneas com artigos de teoria e crítica feminista, obras inéditas de pesquisadoras brasileiras sobre temas diversos relacionados a mulheres e/ou feminismo, ainda algumas traduções de trabalhos importantes para a história do feminismo, como – A cidade das damas, de Christine de Pizan, e obras de ficção de escritoras brasileiras contemporâneas, como Helena Parente Cunha e Conceição Evaristo.

É possível encontrar diversos artigos e relatos de Zahidé a respeito de sua trajetória. Neles, ela destaca que, quando se aposentou, trabalhava com oito orientandas e um projeto de resgate de escritoras do século XIX. No início da pesquisa, observou a recorrência em ouvir que as mulheres do século XIX não haviam escrito, consequentemente, nem publicado. No entanto, a partir de um olhar mais aguçado percebeu-se que, na verdade, as escritoras não só escreveram e publicaram uma grande quantidade de textos, como também constituíam um legado de boa qualidade literária e de valor histórico.

Em artigo escrito na coletânea Linguagens e narrativas – desafios feministas, Zahidé expõe: “Tudo ficou ainda mais evidente quando descobrimos que de nada adiantaria apenas revelar os nomes dessas escritoras, os pormenores de suas vidas, relacionar o que escreveram. Era fundamental republicá-las hoje”.

A gestação cuidadosa dos livros 

minas

juliaTodas as edições seguiam a mesma metodologia adotada por Zahidé: um aprofundado estudo de especialista, uma cronologia da vida e obra, a bibliografia da e sobre a autora. As publicações são fruto de uma longa e extensa pesquisa orquestrada e, em grande parte, eram realizadas por sua fundadora e diretora, explica Susana Funck, uma das ex-fundadoras da Editora. E, de fato, as edições são impecáveis, a diagramação cuidadosa e as parcerias entre universidades e pesquisadores garantem a qualidade.

A professora titular e coordenadora do núcleo Literatura e Memória da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – também amiga pessoal de Zahidé –  Tânia Regina Oliveira Ramos, conta que o cuidado na edição dos livros sempre foi primordial para a editora. Muitas vezes, para ter financiamento, as autoras que procuravam a Editora Mulheres precisavam de um parecer. Tânia, que colaborava quando era solicitada, conta que cada livro aceito era muito pensado.

A Editora Mulheres é um marco. O século XIX não existiria na história das mulheres se Zahidé não tivesse criado a Editora, reeditando vários livros. O pensamento crítico-feminista se solidificou com o investimento pessoal, afetivo e econômico que Zahidé teve com sua Editora.

As tratativas – como valores, tiragem e definição das capas – eram sempre entre Zahidé e as autoras. “Mesmo assim, ela sempre lia mais uma vez antes da impressão. Não lembro de ter encontrado um erro de digitação nas várias publicações, mais de 100, da Editora Mulheres. Eram primorosas”, elogia Tânia. “Estamos sentindo muito a sua falta.  A Editora Mulheres é um marco. O século XIX não existiria na história das mulheres se Zahidé não tivesse criado a Editora, reeditando vários livros. O pensamento crítico-feminista se solidificou com o investimento pessoal, afetivo e econômico que Zahidé teve com sua Editora.”

Entre os trabalhos de resgate lançados pela Editora Mulheres, estão os romances de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Carmen Dolores (1852-1910), Inês Sabino (1853-1911), Maria Benedita Bormann (1853-1895) e Emília Freitas (1855-1908). De Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), considerada a mais importante escritora brasileira do século XIX, foram editados dez livros – o projeto visa o resgate de toda a sua obra. O primeiro livro de Júlia lançado foi A Silveirinha (1914). Até então, raros críticos literários falavam da autora e, até os anos 1960, a escritora somente foi contemplada um pouco mais por Lúcia Miguel-Pereira em História da literatura brasileira – prosa de ficção: de 1870 a 1920, publicado em 1957.

Antologia de 800 páginas resgata 150 escritoras brasileiras do século XIX (Foto: Priscila Pasko)
Antologia de 800 páginas resgata 150 escritoras brasileiras do século XIX (Foto: Priscila Pasko)

Outra obra da Editora Mulheres que tem grande repercussão são os três volumes da antologia Escritoras brasileiras do século XIX. Com cerca de 800 páginas cada um, a obra resgata, ao todo, cerca de 150 autoras que escreveram naquele século, mas que foram esquecidas ou apagadas das histórias de literatura. Não foi a primeira antologia a ser publicada no Brasil, porém, esta, em particular, além das biografias, reproduz excertos de suas obras.

Dentre essas escritoras, a Editora buscou reeditar as obras mais importantes ou relevantes para o estudo da produção feminina.  “Os três volumes desta obra são um marco da historiografia literária brasileira, reconhecido mesmo por pesquisadores não alinhados com o feminismo”, destaca Susana. “A história literária tem historicamente privilegiado os homens, geralmente brancos de classe média, que conquistaram lugar nas antologias e nos currículos, tendo suas obras perpetuadas”. Para Susana, resgatar uma escritora significa corrigir o viés ideológico de uma tradição e ampliar o universo de obras disponíveis para estudo e avaliação. “Espera-se que, com o passar do tempo, o cânone literário venha incluir um maior número de representantes das minorias de gênero e de raça”.

Os reflexos de tais publicações podem ser sentidos, já que o número de trabalhos acadêmicos que se ocupam das escritoras resgatadas tem sido “surpreendente”, conforme aponta Susana. Incluem-se aí teses, dissertações e trabalhos apresentados em congressos no Brasil e no Exterior.

Inspiração que vem de fora 

Editora feminista Des Femmes foi uma das inspirações da Editora Mulheres (Foto: divulgação)
Editora feminista Des Femmes foi uma das inspirações da Editora Mulheres (Foto: divulgação)

Apesar de empresas com o perfil da Editora Mulheres não serem profícuas, as fundadoras buscaram inspiração em alguns exemplos do Exterior, afinal, editoras feministas já existiam, como a Des Femmes, na França, a mais antiga; Un cuarto propio, no Chile; e a Virago, na Inglaterra. Mas, Zahidé, em artigo escrito para o livro Linguagens e narrativas – desafios feministas, destaca que a quase mentora foi a Des Femmes, criada em 1973, por Antoinette Fouque, cinco anos depois da fundação do Mouvement de Libération des Femmes, na França.

No Brasil, como bem lembra Susana Funck, existia a Editora Rosa dos Tempos, fundada em 1990 pela escritora Rose Marie Muraro e a atriz Ruth Escobar. É descrita em sua página na internet como uma empresa dedicada a obras de gênero e interesse feminino e com o intuito de criar, no Brasil, “uma editora com ótica feminista”. 

A Editora Mulheres foi, então, pioneira ao focalizar a questão do resgate e do apagamento histórico. Seu propósito era mais “arqueológico”, por assim dizer. Por sua natureza, explica Susana, a Mulheres tinha um mercado relativamente restrito, com apelo a pesquisadoras da área de literatura. Com o tempo e com o grande número de trabalhos acadêmicos que surgiram a partir das reedições, e também com a ampliação do âmbito de publicações para incluir obras teóricas e traduções, o mercado foi se ampliando. “A editora passou a ser reconhecida e respeitada, sem contudo deixar de ser uma ‘editora de fundo de quintal’, como Zahidé gostava de descrevê-la.”

Duas décadas de história 

Com o falecimento de Zahidé Muzart, a família e os amigos mais próximos buscam a melhor maneira de manter o projeto, apesar da dificuldade em lidar com a ausência de sua fundadora. “O espírito da editora era, sem sombra de dúvidas, a dedicação e o conhecimento de sua idealizadora”, observa Susana.

O balanço dos 20 anos da editora, que serão completados em outubro deste ano, indica, para Susana, “uma riqueza imensa de publicações, uma contribuição inigualável para a vida literária brasileira e praticamente nenhum lucro financeiro, que nunca foi um dos objetivos principais da Mulheres”.

Pierre Muzart trabalha no mercado financeiro. É um dos filhos de Zahidé. Nunca se envolveu diretamente na empresa da mãe, apenas com conselhos de como atuar no mercado, como ele mesmo explica, que é a sua experiência. “Mas nada em relação aos livros, nisso ela tinha muita experiência”, relata.

Para minha mãe, o sonho era o de divulgar o trabalho de outras escritoras, e assim continuará.

Diante de um inesperado e indesejado cenário, Pierre esclarece que a empresa não passou por entrave algum, até porque a Editora não era uma fonte de renda para a fundadora. “Agora a única dificuldade que podemos encontrar é o caminho que precisamos percorrer para voltarmos a editar livros, pois este trabalho era feito apenas por ela [Zahidé], mas que será solucionado em breve, basta vontade, e isso sobra nas pessoas que estão tocando a editora”. Por enquanto, o filho de Zahidé conta que foi feito um inventário do que a editora dispõe para comercialização e divulgação do catálogo. “Isto vem sendo feito de forma brilhante pela Gerusa [Bondan], as vendas têm aumentado consideravelmente, vamos retomar o contato com a gráfica, editoração e outros profissionais de que precisamos para novas edições. Pretendemos lançar novos livros já para o próximo ano [2016]”, conta, otimista.

Sendo assim, o próximo passo é continuar o trabalho que vinha sendo feito, com um pouco mais de ênfase nas vendas, pois, segundo Pierre, Zahidé, era uma pensadora e não uma vendedora. “Mesmo não tendo muita aptidão para as vendas, ainda fazia isso com muito sucesso”, diz ele. “[A Editora Mulheres era] um sonho que ela tornou realidade, muitas vezes abrindo mão da lucratividade do negócio, e, até, por vezes, utilizando outros recursos. Para minha mãe, o sonho era o de divulgar o trabalho de outras escritoras, e assim continuará.”

O desafio de perpetuar o trabalho e a memória 

Diversos e-mails foram trocados entre Gerusa Bondan e o Veredas. Ela sugeriu nomes para as entrevistas, disponibilizou contatos e informações sobre a situação da editora. Gerusa trabalhou como revisora na Editora Mulheres e, em 2015, passou estar mais presente na rotina da empresa. Por enquanto, é ela quem está assumindo parte das tarefas administrativas e de vendas.  Gerusa conversou sobre o acervo da editora, seu trabalho e a importância do legado deixado por Zahidé. Confira a entrevista abaixo:


Veredas Você menciona que o futuro da editora dependerá da venda dos livros do acervo, pois vocês não contam com nenhum outro recurso. De que forma isso será feito?

Gerusa Bondan –  Este era o primeiro passo. Era preciso “tirarmos uma temperatura”; verificar qual era o público da editora e seu comportamento em relação à aquisição de obras. Precisávamos ter uma ideia da quantidade de livros vendida no decorrer de um mês com e sem um trabalho de divulgação; verificar que obras seriam as mais vendidas. O ideal seria, sem dúvida, poder dar continuidade à editora somente com os recursos nela disponíveis, porém, no momento, isso não é possível.

Veredas Qual o volume do acervo?

Gerusa – O acervo possui mais de dois mil livros. Para termos um número exato ou aproximado do número de exemplares a serem vendidos, precisaríamos ter em mãos, hoje, o orçamento completo dos próximos livros a serem editados. Alguns, porém, não estão prontos; outros ainda são ideias de autores que fizeram um primeiro contato conosco. E há autores com condições e disposição para investirem na edição de sua obra; outros contam com verba governamental; outros, ainda, precisam de patrocínio. A Zahidé deixou alguns projetos encaminhados, e estamos acolhendo outros materiais para leitura, a princípio, que é o primeiro a se fazer, principalmente se quisermos manter a proposta da Editora.

VeredasA Editora Mulheres trabalha com venda consignada? As vendas são feitas por encomendas?

Gerusa – Zahidé trabalhou muito com vendas consignadas, mas dizia que levava muito “calote”. Há distribuidoras que até hoje entram em contato diretamente com a Editora, fazem pedidos e pagam antes do envio. Nos últimos tempos, porém, Zahidé privilegiava as vendas por encomenda.

VeredasDesde quando você participa da Editora Mulheres? Como está sendo a sua rotina, o empenho neste momento?

Gerusa – Trabalhei anos com Zahidé, mais precisamente na área da revisão. Em 2015, todavia, estive mais presente “fisicamente” na Editora, e, é evidente, os laços estreitaram-se, ficamos ainda mais próximas. Trabalhar com isso requer paciência e dedicação, pois envolve uma série de tarefas a serem desempenhadas ao mesmo tempo. No processo de vendas – sem contar o restante -, por exemplo, é preciso fazer levantamento de material, fazer a divulgação, negociar pedidos, controlar depósitos, organizar endereços, fazer a postagem, dar baixa no acervo, dar conta da comunicação… e, como eu disse, não se trabalha com uma única pessoa ou instituição, então várias etapas de toda essa sistemática ocorrem ao mesmo tempo. Confesso-lhe, porém, que os filhos Pierre e Olivier têm sido excelentes orientadores, pois, acredite: por um lado, há a paixão pela atividade, a alegria que toma conta quando um pedido é concluído. Por outro, é difícil lidar com a situação em si, uma vez que se trata da necessidade de lidar com a perda, e, ao mesmo tempo, de se apropriar de parte da vida de Zahidé para poder, justamente, perpetuar a sua memória.

VeredasComo você enxerga a dedicação da Zahidé a este projeto? Particularmente, qual o significado da Editora Mulheres para você?

Gerusa – Já li e ouvi dizer que Zahidé não gostava de falar da vida pessoal. Isso não é verdade. O fato é que ela provém de uma família pequena (apenas três irmãs, com ela; pais falecidos há muitos anos), teve três filhos, que construíram suas famílias longe de Florianópolis, onde ela vivia, e era viúva há dez anos. Por que digo isso? Porque, como bem me escreveu a professora e amiga pessoal de Zahidé, Tânia Regina Oliveira Ramos, em um e-mail, Zahidé era a Editora e a Editora era Zahidé. Além da família e dos amigos, de quem recebia visitas e a quem visitava, o grande prazer e o passatempo dela eram a Editora. É impossível desvincular Zahidé disso e vice-versa, ou seja, é algo que representa muito mais do que um empreendimento financeiro. Trata-se de uma espécie de compromisso com a palavra, com o desenvolvimento do intelecto. É como se fosse um pacto com Zahidé que transcende dimensões. E eu não quero quebrar com esse pacto. O falecimento repentino dela deixou-nos órfãos. O mais difícil é trabalhar para Zahidé sem Zahidé.

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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