Desde que foi convidado a participar do movimento negro de Pelotas, Zé Darci viu na sua arte a oportunidade de expressar questões fundamentais sobre a própria identidade e da realidade à sua volta. Seu talento dá vida a histórias de quilombolas, retrata a força das mulheres negras, revisita o passado dos negros no Estado, revê a construção de um Jesus Cristo branco no imaginário da sociedade.
Mesmo com 15 anos de carreira, Darci nunca mandou avaliar suas obras, mas reconhece o valor. Com mais de 100 telas, ele é chamado para palestrar sobre cultura negra em escolas e já teve trabalhos expostos em países como Chile, Alemanha e Itália. “Minha arte já andou pelo mundo”, conta, com uma simplicidade que lhe é característica.
O artista, que se mantém com o salário de funcionário público, conversou com o Nonada durante o Fórum Social Temático 2016. “Se eu tivesse que vender minhas obras para me manter, teria que assassinar minha arte”, acredita. Sua exposição Memórias e Identidade: uma visão africanista abriu o FST e segue em cartaz até 29 de fevereiro no Memorial do RS, em Porto Alegre.
Nonada – Como o senhor começou a aliar sua arte com o movimento negro?
Zé Darci – A única coisa que eu queria na minha vida era ter um quadro lá em casa. Eu desenhava, até que me disseram há 15 anos “Zezinho, teu trabalho com desenho é fantástico. aprende a pintar”. Fiz um curso de pintura e me descobri. No começo, eu não trabalhava com cultura negra. Eu pintava flores, natureza morta. Um dia, o pessoal do movimento negro da cidade de Pelotas me chamou para conversar: “por que tu não trabalha com a cultura negra?” Eu queria fazer uma coisa completamente diferente, não tinha informação, achava que isso era muita política. Mas comecei a participar das reuniões para ver como funcionavam. Aí eu comecei a me envolver mais e a pegar o gosto pela coisa. À medida que conheci as questões sociais, as questões dos negros, eu comecei a transmitir para as minhas telas. O movimento negro de Pelotas foi o que me criou, é um movimento muito forte. Pelotas é uma cidade negra e, quanto mais para a periferia, mais dificuldades, mais desigualdades.
Chega um momento que tu não consegue andar sozinho para fazer esse trabalho. Hoje, eu integro um grupo de artes plásticas e cultura negra em Pelotas que se chama Quilombos Urbanos. Nós trabalhamos na região com exposições, oficinas. São artistas diferentes, mas com a mesma ideia: trabalhar pela cultura negra, mostrando a desigualdade, mas também o negro com a sua história, a sua boniteza e o seu valor. Também tenho exposição coletiva com artistas como o Valdir Santana e o Paulo Corrêa. Nós produzimos, para a Assembleia Legislativa, a convite dos deputados, o trabalho A Casa das Sete Mulheres (inspirado no livro homônimo, de Letícia Wierzchowski), para representar a bancada feminina. Fizemos o casarão, pesquisamos as roupas da época e retratamos as deputadas, mas eu pensei: onde estão as negras nessa casa? Já que era uma encomenda, eu tive uma ideia. Coloquei as negras dentro da casa trabalhando, a chaminé fumaceando. Foi um modo sutil de mostrar essa realidade.
Quanto mais fora dos grandes eixos, menos valorizada é a arte. Na minha própria cidade, Arroio Grande, me dizem que não entendem minha arte. E eu costumava dizer “minha arte não é pra vocês, é pro mundo”.
Nonada – Quais são as temáticas com que o senhor mais trabalha?
Zé Darci – No começo, eram questões como as grandes cidades e a periferia, a desigualdade. Depois, com o tempo, fui pintando outros tipo de imagem. Eu aproveito muito o momento, através da música, da literatura ou até do dia-a-dia pra produzir minhas telas. Fiz uma tela com base na música João Saudade, que fala de um homem que saiu da campanha para a cidade e não pode voltar mais. “Eu pintei um quadro mostrando toda a desigualdade, e ele puxando uma carroça de papelão.”
Por eu ser filho de Arroio Grande, fiz telas também sobre as ferrovias. Primeiro, fiz uma homenageando [O Barão de] Mauá [empresário que financiou a primeira ferrovia do país], mas aí parei e pensei: Mauá fez o projeto, mas alguém construiu. Quem? Os descendentes de escravos, os trabalhadores… então fiz outra tela, retratando a construção da estrada de ferro. Quis mostrar toda a dificuldade que eles tiveram naquela época.
Outro trabalho que eu acho importante hoje é “O agronegócio nos quilombos”. Esse trabalho envolve também a Universidade Federal de Pelotas, porque uma professora me convidou para fazer a tela baseada num texto publicado em uma universidade do Pará. O texto dizia que o agronegócio vem transformando a vida dos quilombolas, tirando suas próprias terras e mudando sua cultura. Eu deixei minha mente viajar, pintei o grande agronegócio lá no fundo, e aí vem mudando a paisagem até chegar num quilombo. E aí eu mostro o quilombola em uma lavoura bem simples, olhando todo aquele desenvolvimento. Ele não quer entrar naquilo, ele quer manter a sua cultura, seu modo de viver.
Nonada – O que fazer para resolver o problema da apropriação da cultura negra?
Zé Darci – O negro vive um momento de dificuldades, mas também de avanços. Quando a coisa está bem, sempre tem gente que se apropria. Nas pesquisas de universidade, quando ocorrem principalmente nos quilombos, eu acho que deveria haver um retorno, porque os pesquisadores usam o quilombo e normalmente esquecem de quem está lá. Os pesquisadores vão fazer seu doutorado, ganhar alguma coisa. Enquanto isso, quem repassou suas histórias fica no esquecimento. Eu acho que deveria ser criada uma lei para ter um fundo nesses casos, ter algum retorno.
A grande mídia não tem interesse, porque é baseada no capitalismo selvagem. Eles não vão se interessar em algo que não tenha um retorno para eles.
Nonada – Qual é a importância de rever a história dos negros no Rio Grande do Sul através da arte?
Zé Darci – Nós estamos numa era de muita tecnologia, e a nova geração não sabe o que os nossos antepassados viveram. Artistas que trabalham com a cultura negra conseguem transmitir informações e despertar as atenções.É o momento de retratar nosso passado, nosso presente e talvez até nosso futuro.
Nonada – Artistas negros como Wilson Tibério o João Timóteo da Costa são invisibilizados no ensino da história da arte e na própria mídia. Como mudar essa situação?
Zé Darci – Procurando ocupar espaços públicos, espaços de visibilidade, a internet. O próprio artista no seu dia-a-dia tem que falar de si, falar dos artistas do passado, não esperar que a própria mídia vá nos mostrar no mundo. A grande mídia não tem interesse, porque é baseada no capitalismo selvagem. Eles não vão se interessar em algo que não tenha um retorno para eles.
Nonada – Qual sua visão sobre a sociedade brasileira hoje, com o avanço da onda conservadora na política e em alguns nichos?
Zé Darci – Parece que as pessoas estão enraizadas nas suas ideias antigas, em questões como a intolerância religiosa, por exemplo. Elas não estão abrindo a mente para as coisas novas. Muita coisa avançou para o negro, mas também tem o contraponto: muita pressão em cima da gente para que as coisas não mudem. Hoje, estou num lugar privilegiado, com meu trabalho que desenvolvo há 15 anos. Mas olhando para outras direções, existem quantos negros com um grande talento para quem as portas não se abrem?
Nonada – O seu trabalho está completando 15 anos e o Fórum Social Mundial também. Como é fazer parte dessa história?
Zé Darci – Eu já havia participado junto com o pessoal do movimento negro e tive alguns trabalhas junto com eles, tive oportunidade de participar do primeiro fórum. A ficha ainda não caiu ainda, mas eu vejo a importância desse trabalho negro pro Rio Grande do Sul e pro Brasil também. Estar ao lado de duas exposições internacionais sobre a Polônia e a Palestina (no Memorial do RS) e mostrar o negro. Com toda humildade, estar representando a cultura negra aqui é um momento muito importante na minha vida e eu nem sei se estou preparado, mas estamos aqui.