Cultura pela democracia: não aceitamos retroceder

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Negra Jaque conduziu o ato no caminhão de som Foto: Rafael Gloria/Nonada)

Texto Giulia Barão

Entrevistas Priscila Pasko

Fotos Rafael Gloria e Thays Cruz

Nossa democracia ainda pena no quesito da equidade, na atenção às demandas dos grupos minoritários e socialmente marginalizados, na distribuição da renda, da terra, na proteção dos direitos sociais. Não obstante, só podemos caminhar em direção a esses objetivos pisando em solo democrático, e é nesse sentido que desejamos seguir. Aceitar arbitrariedades politicas, midiáticas e jurídicas seria virar as costas para o horizonte de um país melhor e resetar autoritariamente o jogo político que nos trouxe até aqui.

Por mensagem de Facebook, o Nonada foi avisado de uma reunião que aconteceria no histórico bar Ocidente há uma semana. O objetivo do encontro era convocar a classe cultural e artística de Porto Alegre para discutir a formação de um movimento apartidário contra as manipulações midiáticas, os discursos de ódio e as arbitrariedades jurídicas que têm colocado em risco a manutenção de nossa frágil democracia. Isso foi sábado, dia 19 de março. No domingo, a reunião teve como sequência um pequeno ato na Redenção, que consolidava o nascimento do  “Cultura pela Democracia”. Em poucas horas, o movimento já tinha identidade visual, mais de três mil seguidores no Facebook e planejava o formato da manifestação cultural que deveria ocorrer na quarta-feira seguinte. Um dos aspectos que mais chamou a atenção da nossa equipe foi justamente a rapidíssima capacidade de  mobilização colaborativa que, em apenas cinco dias, organizou o ato do qual participamos no dia 23 de Março.

Mais de 2 mil pessoas participaram do ato, segundo os organizadores Foto: Thays Cruz)
Mais de 2 mil pessoas participaram do ato, segundo os organizadores Foto: Thays Cruz)

Por volta das 19h00, o Largo Zumbi dos Palmares já estava ocupado por cerca de duas mil pessoas, segundo os organizadores. Dois caminhões de som serviam de palco para as apresentações artísticas e acolhiam as vozes de Negra Jaque, Lili e Alexandre Missel. Além de fazer referência aos coletivos artísticos e culturais ali presentes, eles dialogavam com os demais manifestantes, entoando palavras de ordem e reiterando os princípios basilares daquele encontro: a favor da democracia e contra o golpe; a favor da arte e contra os discursos de ódio. Negra Jaque falou do papel da arte e da cultura na defesa da liberdade e da diversidade e entoou a frase que talvez melhor represente a intenção dos indivíduos ali reunidos: não aceitaremos retroceder.

Enquanto artistas como Marcelo Delacroix, Jorge Forques, Marietti Fialho, Juçara Gaspar e Luciano Alves faziam suas apresentações no caminhão de som, o Largo era colorido por uma diversidade de cartazes, coletivos de teatro e circo, blocos de carnaval, grupos estudantis da UFRGS e da UERGS e artistas independentes. Um dos momentos de maior comoção foi a apresentação da Front LR, conjunto de rap que assinalou a importância de estar ali sem qualquer alinhamento partidário e com a missão de dar voz à periferia. Destacaram-se as canções “Esconde os iPhone”, em que o grupo ironiza e denuncia a hipocrisia privilegiada daqueles que são a favor da violência policial e “Lágrimas de Maria”, na qual se reconhece o sofrimento redobrado das mulheres da periferia. Na sequência, subiu no palco a banda Farabute, projeto musical e político que aposta na mestiçagem e na integração cultural latino-americana como forma de resistência. Canções como “Okupación” e “Hasta Bolivia” armaram o bailongo no Largo Zumbi.

Assim que a Farabute encerrou a apresentação, Negra Jaque e Cristiane Cubas iniciaram a chamada para o ato-cortejo que seguiria pela José do Patrocínio até o Centro Municipal de Cultura, onde as apresentações artísticas teriam continuidade. O caminhão de som deu a volta na Perimetral, enquanto nos organizávamos para seguir a bateria, logo atrás da faixa com os dizeres “Cultura pela Democracia”. Exemplo de organização colaborativa, a bateria foi formada na hora, por membros de diversos blocos, como o As Batucas, Turucutá, Bloco da Laje e Bloco da Diversidade.

Cortejo saiu da Cidade Baixa em direção Ao Centro Municipal de Cultura Foto: Thays Cru/Nonada)
Cortejo saiu da Cidade Baixa em direção Ao Centro Municipal de Cultura Foto: Thays Cruz/Nonada)

O cortejo demorou cerca de trinta minutos para chegar à Érico Veríssimo. Durante o trajeto, Negra Jaque e Lili entoavam canções de protesto da época da ditadura militar e lideravam as palavras de ordem, sobretudo “Não vai ter ódio, vai ter arte” e “A nossa luta é todo dia, vai ter cultura, vai ter democracia”. No chão, a artista e produtora cultural, Cristiane Cubas, liderava o grupo dos que abriam passagem, evitando a entrada de carros no percurso do ato, já que a EPTC não estava fazendo a cobertura na avenida Aureliano de Figueiredo Pinto.

A atmosfera do cortejo foi de alegria e integração. Na frente do Renascença, vi muitos discutindo a situação do país e foi perceptível a sensação de pertencimento a algo potente e transformador entre as pessoas ali presentes. Os shows seguiram noite a dentro, com destaque para a apresentação de Nei Lisboa, celebrado não apenas por ser referência na cultural local, mas por seu papel na mobilização do evento. Ali, Katia Suman e Zé Adão Barbosa conduziram as apresentações, que encerraram com o grupo Roda Viva.

Nosso coletivo participou do ato com uma cobertura colaborativa ao vivo para as redes sociais. Entre nós, reverberava a importância da cultura, da arte e do afeto como fermentos da democracia e ao mesmo tempo, como pressupostos indispensáveis de uma sociedade atenta à diversidade, à representatividade, ao desenvolvimento humano. Se às vezes parece abstrato demais falar na função social da arte e da cultura, no dia 23, ela ficou manifesta. Em ato, encontro, movimento, caminhada. Caminhamos. E não aceitaremos retroceder.

O Nonada ouviu artistas e intelectuais que participaram dos protestos. Confira:

Nei Lisboa, cantor e compositor

“A gente está vivendo um momento dramático no Brasil. Acho que todo mundo tem que fazer o possível. Os artistas, claro, têm poder de mobilização, podem lançar mão para que as pessoas não deixem que o pior aconteça. Nós passamos pelo risco de, mais uma vez, ter um golpe de Estado no Brasil. Eu tenho uma história pessoal, meu irmão foi morto pela ditadura.

Todo mundo sabe, viveu ou tem como saber o que foi a história da ditadura no País. Estamos sob forte manipulação dos acontecimentos dos fatos na mídia. Então é muito importante que a gente possa oferecer um contraponto a isso, mobilizar para alertar as pessoas, que muitas vezes se deixam levar de roldão por este comboio de desinformação que é a grande imprensa no Brasil hoje. A arte não vive sem liberdade, então, neste sentido, ela já é representativa e mobiliza as pessoas pela criatividade, emoção e tudo aquilo que um governo ditatorial tenta eliminar.”

Antonio Carlos Falcão, ator

[sobre a importância da classe artística se engajar na manifestação] “Para mim, não tem outra forma de pensar como artista, a não ser se engajar nos movimentos políticos, sociais, se importar com o País. Seja da forma que tu souberes: com a tua arte, com a tua música, falando, escrevendo, fazendo poesia. Mas acho que é do artista [se manifestar], pelo menos acredito eu, que seja uma de suas atribuições de poder. Como tem essa facilidade de ter o palco, a ribalta, usar isso como força para ajudar o movimento.”

Pedro Guindani, produtor audiovisual

“É fundamental que todos os produtores culturais, artistas e intelectuais estejam envolvidos neste movimento, porque o que nós estamos defendendo aqui são 30 anos de conquistas sociais desde a redemocratização. A gente tem passado por muitas transformações positivas no Brasil e, que se a gente voltar atrás, estaremos perdendo todas conquistas que foram tão difíceis conseguir ao longo deste período para nossa sociedade, cultura e país. É preciso estarmos aqui e em todos os lugares, enquanto a gente não garantir que a nossa democracia irá se sustentar neste momento.”

Nanda Barreto, poeta                                                                                 

“Uma das grandes importâncias é ver que não estamos sozinhos. A gente viu um discurso de ódio nas ruas. Por algum momento, todos que estão aqui se sentiram acuados. Hoje mostramos que estamos juntos para garantir o estruturamento da democracia, que é um dos principais legados que a gente pode deixar para as próximas gerações. Os nossos antecessores, pessoas que deram a sua vida pela defesa da democracia e que lutaram contra a ditadura, em nome dessas pessoas, em nosso nome e em das próximas gerações, está a importância em irmos pra rua e defender a legalidade e a democracia, combatendo a corrupção, doa a quem doer.                                                                                                               

Thiago Pirajira, ator, diretor e produtor

“Um momento como esse serve para a gente se utilizar de mecanismos e artifícios como forma de exercitar de fato a democracia. Aqui tem um monte de gente que pensa, imagina e deseja coisas muito diferentes uma da outra, mas tentando estar junta e conviver. Acho isso válido. Essas pessoas estão aqui pensando de maneira plural, diversa, não sabendo se é o perfeito, mas estamos aqui.”

Zé Adão Barbosa, ator

“É fundamental [a participação dos artistas]. Já fizemos isso nos anos 1960. Na ditadura, a cultura teve uma participação imensa, obviamente, pagamos um preço caro por isso, fomos censurados, exilados, torturados. Quando digo “fomos” digo em nome de tantas pessoas. A gente não pode deixar isso acontecer de novo, a arte acaba sempre pagando o pato. O artista, que é um ser revolucionário, um ser político, é o primeiro a ser perseguido. O Brasil passa, no momento, por uma crise bastante grande e que a nossa participação, e a nossa palavra neste momento é fundamental para lutar contra isso.

Nonada – Algumas pessoas dizem que o atual momento político é muito distinto do cenário de 1964, que não tem nada a ver. Tu achas?

Tem a ver, sim.  O início é muito parecido. A Casa Grande, quando ela resolve colocar a mão, ela coloca uma mão pesada. A senzala tem que se cuidar para não entrar de novo nesta luta. A luta de classes é eterna. A gente tem, de alguma forma, que nos preservar para que não aconteça de novo. Claro que tem muitas diferenças. As forças armadas ainda não estão envolvidas nesta coisa toda, mesmo assim, a gente tem que manter o olho aberto.”

Adão Clóvis Martins dos Santos, sociólogo

“Estamos vivendo hoje uma conjuntura política bem diferente dos processos que conhecíamos anteriormente. Por exemplo, partidos políticos, sindicatos, assim como grande parte das instituições entraram em um processo de decomposição, quase perderam a legitimidade no sentido de convocar. Conforme nós fomos verificando, grande parte das mobilizações acabam passando por sindicatos e partidos políticos, mas elas vão encontrar nas redes sociais, na internet, um mecanismo que vai fazer um novo movimento: ao mesmo tempo você trabalha na rede, vai para as ruas.

Neste sentido existe uma espécie de outra sociabilidade, difícil de ser apreendida a partir de categorias acadêmicas tradicionais. Hoje estamos vendo nas ruas uma massa extremamente heterogênea que não atende necessariamente ao partido tal, mas que se mobiliza pela preservação da democracia, que é a condição para as pessoas poderem se situar no espaço urbano, no direito de ir e vir.

Estamos a frente de uma mobilização muito forte em que grande parte da direita, não acreditava que fosse possível existir. Quando, por exemplo, vazaram os áudios [da presidente Dilma com o ex-presidente Lula], ali o golpe foi dado. Ou seja [para o senso comum], você pune o Sérgio Moro e, se não punir, a Dilma fica, mas não governa. Ou o Lula não permanece como ministro, e, se a Dilma ficar, não governa. No entanto, eles [oposição] não esperavam esta capacidade de mobilização que a sociedade da internet e das redes cria. Antes você tinha o Estadão, O globo, a Folha de SP. Hoje você tem uma multiplicidade de indivíduos que através da rede se torna uma rádio, e isso eles não avaliaram o impacto que teria. Mostrou-se extremante fundamental para mobilizar as pessoas um movimento que não tenha um partido.

Não se trata de personalismo. Algumas pessoas falam no populismo de Lula. Uma democracia representativa, precisa de personalidade, mas não de personalismos. O Lula é uma personalidade criada coletivamente, assim como o Olívio [Dutra]. Mobiliza.”

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