Fotos Erick Peres
Decidi começar esta resenha por aquilo que normalmente estaria fora dela: as dificuldades da escrita. Seja qual for o gênero do texto – matéria, notícia, crônica, poema – quando estamos diante daquele conjunto de palavras semanticamente encadeado temos uma ilusão de completude e coerência; não sabemos por quais indefinições ele passou antes de chegar ao estado em que o lemos. Acontece que minha dificuldade em escrever este texto está justamente na temática do evento que ele se destina a cobrir: erotismo. A segunda edição do Randevu Vila Flores, no sábado 5 de março, foi uma noite em que se misturaram o entusiasmo com as apresentações artísticas e reflexões sobre sexualidade, sensualidade e afetividade. Se eu deixasse isso de fora deste texto, talvez ele fosse mais jornalístico, mas seria, sem dúvida, menos erótico.
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Contrariando a previsão de chuva, o sábado do Randevu entardeceu sem nuvens e com uma temperatura amena. Era a terceira ou quarta vez que eu ia ao Vila Flores, espaço que comprovou ter consolidado sua presença no cenário cultural da cidade. Havia gente na medida perfeita: o suficiente para dar a impressão de lotação completa, mas sem dificultar a circulação e a visibilidade das atrações. Pra quem ainda não conhece, o Vila Flores é um complexo arquitetônico de três prédios, localizado no bairro Floresta. O conjunto foi construído na década de 1920 e desde 2013 destinado ao uso cultural, pelos chamados residentes – artistas e empreendedores – e para a realização de eventos como o Randevu.
O nome aportuguesado vem da palavra francesa rendez-vous, que é a denominação popular dos bordéis e cabarés parisienses, mas que também pode designar qualquer reunião de pessoas. Se de um lado, a proposta do Randevu é apresentar o erotismo em suas variadas formas de expressão, colocando teatro, música, circo, artes plásticas, gastronomia, vestuário, poesia e economia criativa em diálogo; de outro, o evento está alinhado com o projeto mais amplo da Associação Vila Flores de revitalizar e atrair a população local para a região do bairro Floresta.
Nesse sentido, o Vila Flores representa na cidade de Porto Alegre uma proposta de ocupação do espaço urbano que vai contra a lógica da especulação imobiliária e também questiona os critérios de exclusão ou inclusão de determinadas regiões na nossa geografia cotidiana. Esta iniciativa demonstra a confluência cada vez maior entre o político e o cultural nos debates sobre que cidade queremos e, portanto, que tipo de sociabilidade desejamos construir para além dos muros de nossas casas.
Cheguei no Randevu logo que as portas abriram, por volta das 18h30. Junto com a iluminação indireta do ambiente, os prédios estavam iluminados em azul, roxo e vermelho e recebiam imensas projeções de nus femininos e masculinos. Em vez do esperado clima noir, a atmosfera era de descontração e conforto. Boas opções de alimentação e bebida estavam à disposição nas bordas do pátio central, enquanto o centro estava ocupado em sua metade pelas cadeiras enfileiradas diante do palco central. Ao lado deste, um palco menor, em que a banda La Digna Rabia, usando máscaras multicoloridas, abriu os trabalhos da noite às 19h30, nos fazendo dançar ao som de ska e cumbia.
As atrações no palco principal começaram com o número fetichista do Valen Bar18+, naquela clássica e polêmica associação entre controle (algemas, chicotes) e erotismo. Lauro Ramalho, em sua versão Laurita Leão, subiu ao palco na sequência, fazendo todo mundo rir com piadas espirituosas e com o momento “vamos todos dar as mãos e dizer ‘Jesus, eu te amo’”. Laurita foi a apresentadora oficial da noite e só por ela o show já teria valido a pena. O terceiro a se apresentar neste bloco foi o malabarista Gustavo Margarina, vestido de Bailarina, num número que brinca com erros propositais ao som de um tema dramático. Amanayara Rodrigues veio a seguir, com a primeira parte de seu burlesque show, um strip-tease cheio de simpatia. Depois, Veruska de Mattos, orgulhosa de seus setenta anos e com a alcunha de “a grande dúvida brasileira”, dublou a canção “Como uma deusa”, cantada em coro por todas as mulheres que pude observar. Roberta Alfaya, a musa dos bambolês, fez um número irônico, demonstrando sua destreza com os aparelhos, enquanto bebia um copo de cerveja e fechava um cigarro. Não vi o público desanimar em nenhuma das apresentações, pelo contrário, o entusiasmo atingiu seu auge neste que julgo ter sido o grande momento do primeiro bloco e talvez da noite: o show de Valeria Houston, acompanhada pelo violão de Rafael Erê.
Valeria abriu o show dizendo que ia cantar uma composição de Adriana Deffenti, especial para aquele momento, e que gostaria que todos prestassem atenção na letra. No meio da interpretação, o público já estava entoando junto versos como “Há seres que se surpreendem com o espontâneo.” e “Eu adoro ser essa pessoa que você detesta”. A canção se chama “Controversa” e, além de ser um sambinha delicioso de dançar, comove pela temática do empoderamento, do autorrespeito e da liberdade de escolha das mulheres, e, sobretudo, das mulheres trans, como Valeria deixou claro ao se dirigir ao público. Além das belas interpretações de canções como “Time of my life “ e “Como Nossos Pais”, Houston deixou sua marca naquela noite contando para nós que seria a primeira mulher transgênero a receber o troféu Mulher Cidadã, concedido pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul por ocasião do Dia Internacional da Mulher.
Entre o primeiro e o segundo bloco, a La Digna nos colocou para dançar mais uma vez, com destaque para a canção “Garota Black Bloc”, que a galera de pertinho do palco soube cantar junto. Aproveitei esse momento para dar uma volta pelo espaço e descobrir o que estava rolando no galpão do fundo. Conferi a exposição de artes visuais, com curadoria de Marcelo Monteiro, composta pelas obras de Lu Mena Barreto, Luiza Prado e Juliana Veloso, tendo por elemento comum uma poética da nudez, dos contornos e gestos do corpo. Fiquei contente de saber que a literatura também estava presente, representada pela Livraria Taverna, que fez uma seleção especial de livros eróticos, num sentido bem amplo do termo – estavam à venda, por exemplo, “A Insustentável Leveza do ser”, de Milan Kundera e “Memórias de Minhas Putas Tristes”, de Gabriel Garcia Márquez.
Laurita Leão abriu o segundo bloco à la Maria Bethânia, com direito a revoltos cabelos grisalhos e uma túnica branca. Depois de dublar uma canção, anunciou o número de lira (arco suspenso) de Roberta Alfaya. O aparelho estava pendurado no centro do Vila Flores, o que provocou o público a sair da posição estática e quebrou a formalidade palco-plateia. É pouco dizer que a execução de Alfaya foi impecável e que a canção hispânica escolhida dava uma sensualidade especial ao número. Como ex-ginasta sou suspeita: o arco é um dos instrumentos mais ricos em possibilidades acrobáticas. E analogias eróticas.
O grande momento do segundo bloco foi o número de tecido de Ana Cláudia Bernarecki. Vestida com um maiô preto de topless, ela executou as acrobacias ao som da canção “Lésbica Futurista”, mantendo sempre contato visual com o público e um sorriso que transmitia segurança e divertimento. O show foi complementado por novas aparições de Gustavo Margarina, Valen Bar18+ e Mayanna Rodrigues. O penúltimo número foi o de Roda Cyr, por Zeca Padilha, ex-integrante do Cirque du Soleil, e a noite de apresentações foi encerrada por Hique Gomes, com duas conhecidas canções do repertório de Tangos e Tragédias.
Como tudo acima indica, foi uma grande noite. Artistas excelentes, ambiente tranquilo e esteticamente agradável, público entusiasmado, gastronomia elogiada, oportunidade de ampliar a fruição cultural de nossa cidade e de repensar nosso uso do espaço urbano. Mas se é tão fácil reconhecer a positividade de um evento cultural tão rico, por que minha dificuldade em escrever desde o sábado 5 de março? Por razões que não dizem respeito ao Randevu, mas que dizem respeito à nossa forma de vida.
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Refiro-me ao sentido da palavra “erotismo” e nossa compreensão das práticas que merecem essa classificação. O Randevu congrega uma série de manifestações artísticas que colocam em cena o corpo em sua vertente sensual e sexual – aquilo que pode despertar o desejo, mas também o jogo, os princípios do prazer, a beleza da nudez, a provocação e a festa dos sentidos. Sem dúvida, ainda há setores conservadores da nossa sociedade que pretendem cercear a liberdade sexual, impor limites repressivos à forma como nos vestimos, nos comportamos, nos expressamos a partir de nossos corpos. A luta pela libertação do corpo das amarras opressoras da religião e do moralismo e com isso, a celebração do erotismo como forma de contracultura são movimentos muito antigos. Para nós mulheres, não tanto. O que quero dizer é que, sim, segue sendo importante enquanto fenômeno antimoralista e contracultural celebrar o corpo, em suas múltiplas formas e possibilidades expressivas; o prazer; a sensualidade; o erotismo.
Não obstante, sinto na geração de que sou parte uma tendência a pensar por falsas dicotomias. Por exemplo, esta que coloca o erotismo de um lado e o romantismo de outro, como representantes respectivos da heterodoxia e do moralismo conservador. Por assim dizer, uma boa parte da juventude com quem convivo já naturalizou a nudez pública e as múltiplas experiências sexuais como exercício saudáveis de sua liberdade e de sua sociabilidade, e, no entanto, está cada vez mais inapta para o erotismo (eros – amor, afeto) que envolve duas pessoas num projeto comum – seja ele qual for. Não vou me aprofundar em questões de gênero, porque isso tornaria esse texto infinito. Mas é claro que outra falsa dicotomia que ainda nos assola é aquela entre a “puta” e a “mulher para casar” – reflexo do quanto a liberdade erótica ainda é vista como uma prerrogativa masculina.
Voltemos ao ponto principal: a percepção de que reduzimos Eros a Dionísio; a sensação de que o erotismo é ainda mais fundamental em nossas vidas do que temos considerado, a sugestão de que ampliemos nossa prática erótica. Como? Desenvolvendo nas relações com os outros, no exercício do afeto e dos encontros, a mesma desenvoltura que estamos construindo com relação à liberdade dos corpos. Roland Barthes escreve em “Fragmentos de um Discurso Amoroso” que “a sentimentalidade do amor é assumida pelo sujeito amoroso como uma forte transgressão que o deixa só e exposto; e que por uma inversão de valores, é a sentimentalidade que constitui hoje o obsceno do amor”. Se Eros é o deus do amor, não há nada mais erótico do que amar. Que exercitemos essa obscenidade também.