Um copo de Cólera, do escritor Raduan Nassar, foi recentemente selecionado entre os 13 finalistas do Prêmio Man Booker International, espécie de premiação para livro traduzidos para a língua inglesa. Concorriam na seleção da Fundação Booker Pize em torno de 150 livros de todo mundo. Publicada originalmente em 1978, a novela é um caso à parte dentro da literatura brasileira. Não apenas pelo fato de ser um livro extraordinário, mas pela história pessoal do escritor que é Raduan Nassar, hoje considerado um autor clássico. Dono de uma obra curta (são apenas três livros ao todo), o escritor paulista não publica um livro desde o início dos anos 1980, ocasião em que decidiu abandonar a literatura e dedicar-se a sua fazenda no interior do estado de São Paulo. Apesar da reclusão, seus outros dois livros, o romance Lavoura Arcaica e a coletânea de contos Menina a caminho, são obras indispensáveis para o cardápio do leitor caturra brasileiro. A voracidade narrativa de seus textos pode ser conferida na pequena novela, em pouco mais de 80 páginas.
O enredo de Um copo de cólera não poderia ser mais simples. Um casal relaciona-se no casarão de um sítio e, na manhã seguinte, discutem aspectos do relacionamento. A princípio não sabemos se os dois são casados, namorados ou simplesmente companheiros de ocasião. Importa apenas saber que estão juntos nessa unidade de ação que começa numa chegada, continua na cama, depois de levantar, banho, café da manhã e o esporro literário incendeia o livro. E é aqui, na majestade de uma escrita feroz e virulenta, de cadência incomum e com a criação de significados que misturam a um só tempo signos do catolicismo, jogos sexuais e a nomenclatura do mundo agrícola. Parece quase impossível de percebermos a força desse curto texto, um romance compactado, carregado de subtextos em que os personagens realizam um jogo de amor nas “horas desconvulsas” numa “arquitetura em chamas” carregada de “som e fúria”. Eis a força do verbo em Raduan Nassar.
Um copo de cólera tem assim um desenvolvimento típico de uma novela. A trama se desenrola em poucas horas, em verdade na passagem de um dia para outro, concentrando num curto diálogo todo o alfarrábio emotivos de situações que envolvem, aqui e ali, um relacionamento. E é toda essa condensação na escrita – a carga significativa milimetricamente estuda em cada palavra empregada – é isso que faz desse pequeno romante Um copo de cólera um livro extraordinário. A concentração do tema. O estilo altamente culto. O desenvolvimento sem peças sobrantes. Uma força expressiva comprimida em cada palavra, frase, diálogo. Uma aula de elegância literária onde – sim, acredite – há espaço para discussões político-sociológica, ainda que estejamos a todo tempo vendo o embate entre um “ermitão” que cuida de seu sítio, “um pilantra em seu cogumelo cerebral”, “graduado no biscate” e uma jornalista supostamente presunçosa, “femeazinha de várias telhas” e “fantasiada de povo”. Pois tais e quais são os adjetivos que cada um atribui ao outro nesse jogo de palavras e sentidos únicos vero, veloz, voracidade dentro da literatura brasileira contemporânea.
Obra adaptada de maneira primorosa para o cinema e ali revivida intensamente na interpretação pulsante, viral e convincente do então casal Alexandre Borges e Júlia Lemmertz, Um copo de cólera é um desenho sintético da obra magistral de Raduan Nassar. Se no outros livros, o clássico Lavoura Arcaica ele investia nas tramas e nos lençóis familiares ao desconstruir o mito cristão do filho que à casa volta, discutindo aí, entre outros temas a loucura do indivíduo, hipocrisia e a repressão familiar, e se, ainda, nos contos de Menina a caminho encontramos o homem perplexo diante das transformações do ser humano que nem ele mesmo compreende, em Um copo de cólera temos a definitiva condensação de todas as dimensões existências que envolvem um relacionamento a dois. Precisa explicar mais onde a escrita de Raduan Nassar pode nos conduzir/levar?
Modelo grandioso de uma curta e compacta carreira literária, Um copo de cólera é um belo exemplo da força poética e narrativa do texto de Raduan Nassar. Hoje um autor clássico. E imperdível.
Boa leitura.