Por Gemis – Gênero, Mídia e Sexualidade*
Ser heterossexual, vestir-se de forma recatada, cuidar dos filhos, ser discreta, falar pouco, ir a jantares caros pagos pelo marido, abdicar da carreira para dedicar-se ao matrimônio. A Revista Veja demonstrou, em sua edição mais recente, qual o papel que acredita que as mulheres devem ter na política, a partir do perfil traçado para Marcela Temer, esposa do vice-presidente Michel Temer (PMDB). Com a abertura do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), a revista julgou pertinente exaltar algumas características de Marcela, mesmo sem entrevistá-la, chegando a referir-se a ela como a “quase primeira dama” ideal.
A imagem de Marcela, jovem, “bela” e “do lar”, contrasta com a da presidenta Dilma Rousseff, ameaçada de impeachment que, caso concretizado, colocaria no governo exatamente o marido de Marcela. Retratada de forma agressiva e desequilibrada, Dilma tem seu temperamento e até mesmo sua sexualidade questionada frequentemente pela imprensa. As críticas à primeira presidenta do Brasil raramente se limitam ao seu governo e extrapolam questões de gênero – basta fazermos o exercício de imaginar essas mesmas críticas dirigidas a um homem ocupando a mesma posição.
O desprezo pela figura feminina na política pode ser exemplificado desde o irônico “tchau, querida”, estampado nas placas dos deputados durante a sessão do último domingo, até os irrisórios 10% de parlamentares mulheres presentes no Congresso Nacional atualmente. Mesmo com a lei que estabelece paridade nas eleições, que prevê o mínimo de 30% de mulheres candidatas, a maioria dos partidos não investe em candidaturas femininas.
Ao descrever Marcela e traçar um perfil correto e ideal de mulher, destacando características como sua participação em dois concursos de beleza e a rotina dedicada ao cuidado com o filho, a revista Veja cristaliza determinados valores e comportamentos relacionados ao feminino, ratificando o lugar histórico destinado a mulher em nossa sociedade. Não podemos perder de vista também o contexto em que a reportagem foi construída: dentro de uma revista contrária ao atual governo e que não mede esforços em impulsionar o impeachment da presidenta Dilma.
Para além da ideia de uma mulher ideal ao lado do vice-presidente, a revista se esforça para construir a imagem de uma família ideal, que é branca, heterossexual e monogâmica – isso fica evidente quando ela menciona, por exemplo, os apelidos de Temer, Marcela e do filho do casal e como eles são vistos pelos demais. Cabe ainda ressaltar que esse perfil de família nuclear apresentado pela reportagem foi bastante lembrado pelos deputados na votação do último domingo e é encarado por muitos como a redenção da política brasileira e como modelo ideal de oposição ao governo.
Os discursos da mídia são responsáveis pela construção e manutenção do estereótipo sobre o ser mulher e pela atribuição de características positivas e negativas a determinados comportamentos e formas de ser e estar no mundo. Ao singularizar o feminino e exibir a visão conservadora de que existe um modelo “tradicional” de família, o jornalismo acentua as assimetrias de gênero e reforça mapas culturais de significado conservadores, causando a opressão e marginalidade de outras identidades. Mais do que isso, posiciona a mulher na esfera privada, desencorajando a sua presença na vida política e inibindo o seu protagonismo. No lar ou na rua, com recato ou despudor, lugar de mulher é onde ela quiser!
*O Gemis – Gênero Mídia e Sexualidade tem como proposta a discussão sobre a produção jornalística relacionada as temáticas de gênero e sexualidade e suas implicações na construção da percepção social sobre estes sujeitos. O grupo escreve quinzenalmente no Nonada.