Por Natasha Centenaro*
Ao receber o convite da Priscila Pasko, pensei em abordar uma vereda ainda menos alcançada, a escrita dramatúrgica feminina. Se nas veredas da prosa e da poesia, apesar do domínio falocêntrico, lembramos e citamos autoras, sejam elas das margens do Atlântico, do Índico ou do Pacífico, quando falamos em dramaturgas, no entanto, o palco parece se esvaziar, as páginas se apagarem e quase nenhum nome nos vem de imediato. Um novo artigo deve tratar desses nomes da dramaturgia nacional, de Maria Clara da Cunha, Andradina de Oliveira e Anna Aurora do Amaral Lisboa, até Hilda Hilst, Consuelo de Castro, Vera Karam, Leilah Assumpção, Maria Clara Machado, Grace Passô.
Minha atenção, dessa vez, está voltada para uma cesta repleta de fruta, a mesma fruta, porém, com gostos, espessuras e formatos distintos. A cesta de amoras da escritora Natalia Borges Polesso, 34 anos, publicado pela Não editora, em 2015. Aqui mesmo no site do Nonada é possível conferir a leitura feminista desta obra pela pesquisadora Camila Doval e a entrevista com a autora residente em Caxias do Sul. A autora-amora. Não vou colher todas, não me atreveria agora, mas me dedico a apreciar uma amora específica da cesta, o conto “Flor, flores, ferro retorcido”. Tal conto foi escolhido por três aspectos: a voz narrativa, sendo uma narradora autodiegética – na primeira pessoa – que pode ser identificada como a própria autora do livro, ainda que numa perspectiva infantil; a utilização da escrita autobiográfica e do recurso da memória; e de como obras que dão visibilidade às dissidências sexuais e de gênero podem estar relacionadas às biografias de suas autoras e de seus autores. Por que o conteúdo da “literatura gay” está associado às biografias de quem o produz? Não proponho respostas, pelo contrário, me permito dedicar mais perguntas.
O segundo livro de contos de Natalia, que também tem um livro de poesia (Coração à corda, editora Patuá, 2014), apresenta características semelhantes, com relação à estrutura, temática e linguagem, de sua primeira publicação, Recortes para álbum de fotografia sem gente (Modelo de Nuvem, 2013), vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura nessa categoria. Amora está dividido em duas partes: a primeira, intitulada “Grandes e sumarentas”, é composta por vinte e dois contos; a segunda, “Pequenas e ácidas”, é composta por onze narrativas curtas, como, por exemplo, “Saliva”, “Valsa” e “Templo”, de apenas uma página – um parágrafo. Porém, diferentemente do primeiro livro, a antologia de 2015 está organizada desde uma unidade temática de amor, desejo, experiências, vivências e fatos narrados a partir da perspectiva homossexual lésbica.
O conto “Flor, flores, ferro retorcido” narra uma lembrança de infância da autora, acontecido no ano de 1988, então com oito anos de idade. A casa da família situava-se no “bairro pobre na divisa entre Campo Bom e Novo Hamburgo”, e estava entre duas oficinas mecânicas, a da família Klein, “todos loiros de olhos perturbadoramente azuis, pai, mãe e a filhinha pequena, não lembro o nome deles”, e, no outro lado, o estabelecimento “da figura mais marcante da minha infância, cujo rosto eu vi uma única vez e nunca mais me esqueci”. É sobre essa figura marcante que a autora desenvolve a narrativa: “Toda vez que penso naquele tempo e lugar e tento me lembrar do rosto das pessoas e talvez da voz, o que me vem de mais marcante é a imagem dela”. Imagem descrita pela narradora já no primeiro parágrafo, apresentando essa personagem (real – da imagem que ficou na memória) e seu “jeito”: “Os cabelos crespos lhe escorriam como rios rebeldes pelos ombros. Talvez fosse o fato de estar sempre de chapéu e alpargatas que lembrasse um pouco o Renato Borghetti, o cara da gaita”.
A narrativa se instaura a partir de uma conversa proferida pelos adultos e ouvida pela narradora em um almoço de fim de semana entre a sua família e a família Klein. Segundo a ênfase dada pela narradora: “O fato que mais se enraizou na minha memória desses almoços foi um dia em que ouvi a seguinte frase: como pode uma machorra daquelas?”. E a partir dessa frase, especificamente do termo “machorra”, dito por algum dos adultos, que aguçou a “curiosidade” de criança e a instigou a perguntar o seu significado. A essa pergunta sucedeu-se a cena do embaraço, do constrangimento dos adultos, do “silêncio completo”, da risada estranha e da tentativa, por parte da mãe da narradora de “remediar”, ou seja, ludibriá-la em favor do “ruído proposital de comunicação” – o engano – ao dizer: “Cachorra, minha filha, cachorra”.
Em oito páginas, Natalia evoca essa lembrança marcante de infância, evidenciando o preconceito e a discriminação para com a vizinha “machorra”, utilizando-se da situação pueril da curiosidade e das atitudes da criança que não entende o significado da palavra. As cenas mostram uma linguagem simples e direta, mas com um espectro de detalhes nas descrições dos espaços daquela infância vivida entre o mercado do seu Kuntz, a casa da família, o pátio, o galpão da oficina da vizinha, situando o leitor e a leitora no ano de 1988 e o espaço da criança daquela época em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, ouvindo os discos da Xuxa e brincando de pegar.
É possível encontrar a poeticidade da linguagem e do estilo narrativo da autora no título, que, através do recurso de aliterações de “f”, “l” e “r” e de assonâncias de “o” e “e” transformam “Flor, flores, ferro retorcido” em um verso ou um refrão poético. A imagem construída poeticamente e de símbolos concretos sugere diferentes perspectivas de significado: flor, flores, ferro retorcido, elementos enumerados sem a presença da conjunção aditiva “e”. Flor: o nome da vizinha machorra, mas também a visão e a imagem marcantes na infância – a flor mais linda que a narradora viu com os seus oito anos; flores: as colhidas pela narradora e entregues para a doente, mas também amplificadas e redimensionadas para a representação do feminino, o plural de flor (da Flor) – as flores: o jardim de flores, como que evidenciando uma comunidade de Flores – lésbicas; ferro retorcido: a feminilidade da flor em contraponto ao ferro retorcido – a profissão da vizinha mecânica, o ferro que causa “tétano” e a doença de “machora”, o ferro que embrutece a flor (Flor), que masculiniza e transforma a flor (Flor) em doente, o ferro que retorce – o preconceito de uma sociedade inteira.
Por mais que as cenas sugiram a comicidade da situação: a doença da machorra e a criança que leva flores à vizinha doente, e ainda que o humor “do pensamento de criança” provoque o riso inevitável, a reflexão se faz imediata. Ao proferir o termo, pejorativo, de linguagem chula, regionalista, “machorra”, amplamente usado no Rio Grande do Sul para designar lésbica, coloca-se em debate o tratamento dado a essa dissidência sexual e de gênero. O termo poderia ser modificado e atualizado para “caminhoneira”, “sapatão” ou mesmo “mulher macho”, mas a reflexão motivada pelo enredo se manteria, tendo em vista o ainda latente preconceito. O recurso de associar o termo pejorativo à doença, assim como o mau uso do sufixo “ismo” na palavra homossexualismo, que deixou de ser proferido em detrimento à homossexualidade, justamente por estar relacionado aos vícios e às malignidades, ressalta o quanto uma memória individual, da autora, pode dar conta de uma situação social, de uma memória coletiva e de um preconceito enraizado na sociedade.
Para falar sobre o espaço da escritura autobiográfica, que é frequente na obra de Natalia Borges Polesso, cito Diana Klinger (2012), para quem esse espaço pode ser compreendido como “o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da figura do autor: suas memórias e biografias, seus (auto)retratos e suas declarações sobre sua própria obra ficcional”1. E é nesse sentido que muitas escritoras mulheres se “autorrepresentam” e falam desde o seu lugar no mundo, a sua perspectiva de gênero e as suas vivências como mulher. Tendo em vista que, na maior parte do tempo histórico-cultural, as mulheres e os seus universos foram representados (e ainda são) ficcionalmente por homens, enquanto personagens femininas, cabendo às mulheres utilizarem-se do relato autobiográfico para expor e compartilhar das suas experiências acumuladas. E a essa escrita de vivências a autora Conceição Evaristo denomina como “escrevivências”, da qual tomo emprestado o termo utilizado no título deste artigo.
Ao se pensar que a narradora autodiegética é a própria autora-amora transformando a sua experiência – o episódio de infância com a vizinha Flor, o preconceito dos adultos e o seu sentimento de criança a fim de entender a situação – na narração da lembrança, reatualizando essa lembrança na temporalidade da escritura autobiográfica, que não deixa de estar inscrita no plano da narrativa, da ficção, mesmo em se tratando de um fato real e de personagens reais. Da mesma forma com que essa reatualização de uma memória individual (da narradora-autora) atinge a memória coletiva daquele bairro, daqueles vizinhos, salientando e iluminando uma opinião coletiva, um posicionamento social, o da discriminação e o do preconceito para com a vizinha “machorra”. É a memória de Natália (da criança, da adulta, da escritora) em relação à memória dos outros – os vizinhos, os adultos, a sociedade.
A literatura da autora-amora está associada às suas experiências enquanto escritora mulher e lésbica, suas “escrevivências” relatam esse universo, como fica claro nos contos de Amora. Para tanto, intento problematizar uma questão abordada em estudos recentes de pesquisadores acerca da relação dessa literatura queer, de forma mais ampla do que apenas o termo reducionista de literatura gay, com a biografia de seus autores e de suas autoras. A teoria queer propõe, dessa forma, romper com a lógica do sujeito estável e universal, pois compreende o “sujeito” como um constructo social, sempre instável, precário, móvel e circunstancial.
Helder Tiago Maia2, em artigo intitulado Constelações queer ou por uma escritura da diferença, de 2011, propõe uma definição para a escritura queer como uma constelação de textos, de fluxos poéticos, que compartilham entre si a possibilidade desierarquizante e não normativa. Sendo, portanto, a resistência a esse regime político heteronormativo dos corpos, como uma escritura que se desloca, se abjura, todo o tempo para resistir às normalizações de sexo/gênero e sexualidade. Para o pesquisador, há uma separação entre o projeto de literatura gay mercadológica e o projeto da literatura gay que chega à crítica literária-universitária, pois esta se preocupa com as questões formais e estéticas, ainda que a sexualidade do autor, mais do que a temática e a forma, continue a ser um critério. Autores como Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll, por exemplo, fazem parte desse projeto. Dessa forma, o “cânone literário gay”, não diferentemente dos cânones nacionais, também está perpassado por questões de etnia, nação, classe, gênero e sexualidade, e termina por silenciar determinadas obras e autores que não interessam aos projetos políticos, sejam do mercado, sejam da crítica literária.
As “escrivivências” e o relato autobiográfico fazem parte desse processo de visibilidade, especialmente, dentro da própria literatura queer, em que os registros de obras sobre as experiências lésbicas são minoritárias frente às de narrativas gay de homens. Para além desse conto, a obra da autora corrobora para a problematização e a promoção de escritores e escritoras identificados(as) com a escritura das diferenças, pela defesa artístico-política dos grupos minoritários, pelo estabelecimento de uma literatura queer de valor estético, e que não apenas fique atrelada à sexualidade de quem a escreve ou às narrativas unicamente confessionais.
1 KLINGER, Diana. Escrita de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnografica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012.
2 MAIA. Helder T. Cordeiro. Constelações queer ou por uma escritura da diferença. In: COLLING, Leandro. MISKOLCI, Richard. Não somos, queremos (Org.). Stonewall: 40 + o que no Brasil. Salvador: Edufba, 2011.
*Natasha Centenaro é jornalista, escritora, Mestra em Letras – Escrita Criativa e doutoranda em Teoria da Literatura (bolsista CNPq) pela Pucrs