O afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, que resultou da admissibilidade do processo de Impeachment, trouxe um conjunto de notícias preocupantes para o avanço social do Brasil. Além da instabilidade política calcada em um governo interino sem aprovação popular, medidas anunciadas por Michel Temer (PMDB) devem extinguir o Ministério da Cultura, bem como o Ministério das mulheres, da Igualdade Racial e Direitos Humanos. O setor cultural ficará subordinado ao Ministério da Educação, sob o comando do conservador Mendonça Filho (DEM).
A extinção do MinC já havia ocorrido na Era Collor, que ficou marcada como um período praticamente nulo em termos de produção cinematográfica nacional. É de conhecimento geral que os danos causados pela extinção do MinC e de órgãos como a Embrafilme demoraram anos para serem reparados. A retomada do nosso cinema só foi possível com a volta de uma estrutura que garantiu o fomento e a regulação do setor. O MinC vem promovendo avanços fundamentais para a movimentação da economia e a redução das desigualdades e da violência, consolidando a produção cultural de forma sistêmica no país.
A economia criativa (setor que inclui produtos e serviços cuja principal matéria-prima é a criatividade) é responsável por 8% do PIB gerado no Brasil, e o setor cultural gera mais de R$ 100 bilhões por ano no país – segundo a Federação das Indústrias do Rio (FIRJAN). Ao diminuir o orçamento da cultura, o governo interino dá um tiro no pé, deixando de incentivar a geração de renda de milhares de trabalhadoras e trabalhadores, principalmente dos artesãos e artistas afastados dos grandes centros e sem o apoio de grandes produtoras – e, portanto, com mais dificuldades de captar recurso via Lei Rouanet.
Entendemos que a Cultura e a Educação podem e devem trabalhar juntas, desde que respeitada a autonomia de ambos os setores. Além disso, questionamos o conceito de cultura e as consequentes medidas que serão adotadas pelo governo interino. É importante ressaltar que políticas culturais não se resumem à renúncia fiscal nem à subordinação ao mercado, e a ausência de políticas públicas para o setor seria um retrocesso irreparável na história do Brasil. Sem um ministério forte e bem estruturado, o setor cultural fica desamparado. Sabemos que não cabe ao Estado produzir cultura, mas cabe sim estabelecer ferramentas para a criação e difusão artística de forma igualitária para todas e todos. Neste sentido, o trabalho das secretarias, a exemplo da Secretaria do Audiovisual e da Secretaria da Cidadania e da Diversidade, é indispensável.
Um avanço importante conquistado pela classe artística nos últimos anos foi a Lei Cultura Viva (13.018/14). O dispositivo garante, entre outras medidas, o fortalecimento dos Pontos de Cultura, o estímulo ao protagonismo social na gestão pública da área, de forma compartilhada e participativa, e a garantia de respeito à cultura como direito à diversidade cultural, como expressão simbólica e como atividade econômica. Esperamos que a lei seja respeitada em sua totalidade.
Cabe lembrar que o Brasil é um dos 139 países signatários da Convenção de Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da Unesco. É dever do governo, portanto, seguir promovendo a cultura brasileira em todas as suas múltiplas expressões, respeitando o protagonismo e a representatividade dos diferentes povos e etnias que formam a identidade nacional.
Em um cenário em que a cultura classificada como popular no Brasil é reconhecida mundialmente (o frevo e a capoeira, por exemplo, estão na lista do Patrimônio Imaterial da Humanidade), estaremos alertas para que não haja retrocesso. Há mais de uma década, o governo brasileiro elevou a cultura popular, no sentido de manifestação de um povo, ao mesmo status de reconhecimento das artes acadêmicas.
O legado de Gilberto Gil como Ministro da Cultura é celebrado como fundamental neste sentido. Ao ampliar o conceito de cultura para uma visão antropológica, Gil abriu portas para que as políticas públicas do setor promovessem uma série de incentivos à produção artística descentralizada, através de editais de financiamento e encontros de articulação. Além disso, a presença das manifestações indígenas, afro-brasileiras e periféricas no centro da gestão vinha no sentido de reparar opressões históricas e deve continuar como foco dos incentivos do Estado.
Por fim, a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos (agora subordinado ao Ministério da Justiça) é também um impedimento à diminuição das desigualdades sociais do país. Com o avanço da onda conservadora, da intolerância e do preconceito, a ausência desse ministério coloca o Brasil na contramão da História. Com esta medida, o governo interino demonstra a negligência com que pretende tratar de assuntos graves em uma nação desenvolvida e civilizada. Não é coincidência que o primeiro escalão de Temer seja formado inteiramente por homens brancos cisgêneros. Não descansaremos diante do racismo, machismo, LGBTfobia e injustiças sociais. Não descansaremos diante da desvalorização da diversidade social e cultural do Brasil. A partir de agora, cultura e resistência serão quase sinônimos.