Festival Vênus em Fúria: As minas tão falando

Uma oportunidade pra ouvir cantoras e instrumentistas talentosas tocando em Porto Alegre? No último domingo, 19, quem estava entre a rua João Telles e a avenida Osvaldo Aranha, região central de Porto Alegre, pôde ouvir as bandas ao vivo e ainda contribuir para a economia feminista com as expositoras que vendiam sua arte e artesanato.

O Vênus em Fúria teve sua segunda edição no Ocidente, tradicional casa de shows da cidade, para arrecadar fundos e apresentar a Porto Alegre o projeto Girls Rock Camp, acampamento musical de férias exclusivo para meninas de 7 a 17 anos com o objetivo de empoderar e aumentar a autoestima delas através de noções básicas dos instrumentos, composição musical e trabalho em grupo. Fazem parte das atividades também workshops de expressão corporal, serigrafia, artwork e fanzines, autodefesa, imagem e identidade. Girls Rock Camp nasceu em 2007 na cidade de Portland, nos Estados Unidos, e desde então ocorre em vários lugares do mundo. Em 2013 chegou ao Brasil – mais precisamente em Sorocaba, interior de São Paulo –  e em janeiro de 2017 a capital gaúcha será a segunda cidade do país a realizar o evento.

Expositoras de fanzines e artes gráficas também tiveram espaço (Foto: Duda Rocha)
Expositoras de fanzines e artes gráficas também tiveram espaço (Foto: Duda Rocha)

Em frente à casa de shows, o projeto de mobilização urbana Tô na Rua – brechós, comidas e bebidas artesanais, bandas ao vivo – lotou a rua de gente, enquanto dentro do Ocidente o movimento estava bem menor do que eu imaginava (inicialmente, cerca de 50 pessoas presentes). Afinal, não é todo dia que se tem um festival só de bandas que têm mulheres em sua formação. Mari Martinez & The Soulmates, Harmônicos do Universo, 3D, Alcalóides, Negra Jaque, Honey Bee, She Hoos Go e As Voluntárias mostraram que o gênero feminino não é nada frágil, ao contrário do que o senso comum cisma em afirmar.

A primeira banda foi, sem dúvida, a mais pop das atrações. Bem afinada e com os cabelos em sua forma natural, Mari Martinez & The Soulmates mostrou atitude nas interpretações e nas letras (cidadão de bem/ faz o bem pra quem?, criticando os defensores da “família tradicional brasileira”), mesmo estando em formato acústico. Sua música tem toques também de rock e blues.

Harmônicos do Universo foi a atração seguinte. O projeto da paulista Desirée Marantes engloba paisagens sonoras criadas através de improvisações de guitarra e violino. Sim, todas as músicas são feitas na hora, e sim, só ela que toca. É por isso que digo que foi a coisa mais autêntica que ouvi no festival, quiçá este ano. A mistura dos dois instrumentos – com a ajuda de um looper – resulta em um som suave e nostálgico, como se realmente estivéssemos vendo um fenômeno astronômico. Tinha pessoas chorando.

A rapper Negra Jaque levou representatividade e empoderamento negro ao festival (Foto: Duda Rocha)
A rapper Negra Jaque levou representatividade e empoderamento negro ao festival (Foto: Duda Rocha)

Depois de algumas horas, o Ocidente encheu um pouco – umas 200 pessoas, no máximo – e a banda 3D tem 30 anos de existência e leva o punk rock como movimento social, aquele que surgiu nos anos 1970. Composta somente por mulheres, o som extremamente pesado me lembrou que meninas também podem tocar bateria, baixo, guitarra e o melhor: também podem gritar ao microfone.

Enquanto rolava o som no palco, no mezanino havia produtos à venda, como zines, bottons, camisetas e comidas orgânicas também feitos por mulheres. Organizadora do evento e entusiasta do Girls Rock Camp, Lizi Zilz declarou que todo o dinheiro arrecadado vai para a edição do acampamento em Porto Alegre, apesar dele não visar nenhum lucro. “Se a gente tiver pessoas, a gente não vai precisar de dinheiro”, disse.

Alcalóides foi a quarta atração. Liderada por Julia Barth, da famosa Os Replicantes, a banda também é de punk rock, mas um pouco mais melódica do que a anterior. A vocalista, acompanhada só por homens, mostrou versatilidade e afinação ao interpretar músicas de sonoridade leve e pesada. A rapper Negra Jaque esbanjou simpatia e desenvoltura em cima do palco e também fez discurso político. “Oitenta por cento da nossa juventude morre, ainda mais a preta”, declarou.

O projeto arrecadou recursos para o Girls Rock Camp (Foto: Duda Rocha)
O projeto arrecadou recursos para o Girls Rock Camp (Foto: Duda Rocha)

Também fizeram parte da programação as DJs Ana Langone, Maria Joana e Mely Paredes, cujos setlists eram majoritariamente compostos por artistas mulheres. Foi ressaltado, durante o evento, que todas as pessoas envolvidas na organização são mulheres: roadies, técnicas de som, expositoras, fotógrafas, produtoras e por aí vai.

Em seguida, se apresentou a Honey Bee, de Londrina (PR).  Arrisco dizer que era uma das bandas mais virtuosas da noite – pelo menos, a mais eclética. Predominantemente hard rock, fez covers surpreendentes, como o de You Don’t Know Me e Nine Out of Ten, ambas do Caetano Veloso. A She Hoos Go, de Pelotas, investe no som pesado, com direito a muitos guturais feitos com uma facilidade incrível pela vocalista Lidia True Love, que também falou em prol do empoderamento das mulheres, ressaltando a ainda existência do machismo: “Se as mina tão falando, é porque é, cara. Não é mimimi”.

Por último, mas não menos importante, a banda As Voluntárias – formada por participantes do acampamento em Sorocaba, incluindo Desirée Arantes e Letícia Rodrigues, da 3D – encerrou o festival com mais punk, coragem e missão cumprida. Porque, afinal, não é fácil ser mulher tanto no meio musical quanto na vida cotidiana. Há uma falta de valorização de instrumentistas, cantoras e compositoras mulheres pelo simples fato de que não fomos habituadas a acreditar que somos capazes de fazer o que nós quisermos. Mas somos. Observar essas mulheres – garotas, meninas – fazendo o que gostam, faz a gente ter vontade de também ser uma mulher capaz de qualquer coisa, realizada, feliz. E ter vontade já é meio caminho andado.

Mais informações sobre o Girls Rock Camp no Brasil: http://www.girlsrockcampbrasil.org/

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