Por Mariana Bampi
No início dos tempos, antes mesmo do mundo ser mundo, aconteceu no Orum (morada das divindades celestiais iorubás), uma rebelião dos deuses contra o deus supremo, Olorum. Tendo sua autoridade questionada e desafiada por seus próprios filhos, Olorum decretou que, a partir daquele momento, não iria cair mais nenhuma gota de chuva no Aiê (a terra, morada dos homens).
Desesperados e assolados pela ameaça da seca e da morte, as divindades decidiram que a única solução para evitar a extinção do Aiê seria implorar perdão ao pai supremo iorubá. No entanto, o medo de encarar a fúria de Olorum fez com que os deuses enviassem pássaros até o Orum para entregar o pedido de desculpas. Pombas, papagaios e águias foram enviados, mas nenhum dos mensageiros retornou. A última esperança era Oxum, a vaidosa e bela deusa dos rios, que, cansada da covardia geral, voluntariou-se para ser a embaixadora dos deuses e falar com o próprio Olorum.
Oxum é bem sucedida em sua missão e traz a chuva de volta ao Aiê, salvando os humanos e os deuses da destruição. Oxum traz a vitória em seu seio. No seu seio de mulher.
Na lenda iorubá “Oxum traz a chuva”, o papel de “grande salvador” cabe à deusa Oxum, personificação feminina dos rios, uma das facetas de representação da mulher na mitologia africana.
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Ao contrário de Eva e Maria, principais figuras da representação no cristianismo, as deusas africanas – cultuadas no candomblé, no batuque e na umbanda – nem sempre são previsíveis, puras e obedientes. Tomam decisões tão múltiplas que não se permite definir um caráter específico para cada uma delas como, por exemplo, a personalidade servil e virginal de Maria ou ingrata como Eva. As divindades femininas africanas foram desenhadas de forma complexa e humana, pendendo sempre entre a heroína virtuosa e a vilã cheia de vícios, capazes de qualquer artimanha para satisfazer seus desejos – inclusive os desejos sexuais.
Marlene Terezinha da Silva, 63, viveu a umbanda desde a sua infância. Hoje, é uma respeitada mãe de santo. “Nunca tive contato com outra religião desde que minha tia começou a me levar nos terreiros.”, conta a senhora baixinha, negra, de olhos brilhantes e fala rápida. Seu pequeno apartamento é decorado com imagens da África e estátuas de São Jorge e de seu orixá, Ogum. “O guerreiro apareceu pra mim quando eu era muito nova, acho que não tinha nem 20 anos. Um dia eu estava arrumando a estante que tinha com as imagens dos meus orixás quando ouvi Ogum dizer que, a partir daquele momento, eu era seu instrumento e que sempre que alguém precisasse de alguma caridade, ele apareceria.”
Segundo Marlene, ser mulher nunca foi um empecilho para que se tornasse mãe de santo. “Não existe essa coisa de níveis de sacerdócio na umbanda como há em outras religiões. Eu era só uma devota frequentadora de terreiros e hoje sou mãe de santo hoje. Não é como na religião católica que tem que ser diácono, padre ou cardeal. Para ser pai ou mãe de santo, tu precisas ter três coisas: comprometimento com os teus clientes e com as pessoas que frequentam a tua sessão, organização e, acima de tudo, o dom”, completa Marlene.
Ao citar alguns preceitos da umbanda que eu tinha ouvido falar, como por exemplo, o fato de pomba-giras não poderem liderar trabalhos religiosos nos terreiros por terem sido mulheres prostitutas em outras vidas, Marlene riu da pergunta.“No meu terreiro, pode sim”, ela disse. No meu terreiro, mulher incorpora pomba-gira ou orixá homem, homem incorpora pomba-gira ou orixá mulher. A umbanda não prega essa diferenciação entre homem e mulher.”
Seguindo os rastros da umbanda na História e de acordo com o antropólogo Rodrigo Toniol, pesquisador do Núcleo de Estudos em Religião da URFGS (NER), a umbanda nasce no Brasil no começo do século XX. Dessa forma, a umbanda é considerada uma religião extremamente nova se comparada às outras duas principais religiões brasileiras: o catolicismo e o protestantismo, tendo a primeira dois mil anos de idade e a outra, quinhentos. No entanto, apesar da diferença de idade, o que pouco evoluiu no catolicismo e nas correntes protestantes tradicionais foi o papel legado à mulher.
A exclusão do papel feminino como liderança religiosa não faz parte da tradição de nenhuma das duas religiões citadas acima. No catolicismo, por exemplo, mulheres não podem ministrar nenhum tipo de sacramento e sua relação com o sagrado está fadada à leiguice ou à posição de freira, inferior ao padre e sem poder como sacerdote. No entanto, na umbanda a representação da mulher é diferente: “A visão clássica da umbanda é tida como o sincretismo entre o catolicismo, o candomblé e o espiritismo. Sua história difere muito de outras religiões, tanto territorialmente, uma vez que é uma crença circunscrita ao território brasileiro, como teologicamente, pois não possui escritura sagrada como a Bíblia ou o Alcorão, por exemplo”, explica Rodrigo.
O fato de a umbanda não possuir nenhum tipo de livro religioso permite uma interpretação muito mais livre de seus preceitos e costumes, fazendo com que cada terreiro tenha regras mais específicas ou liberais do que outros. Dessa forma, determinações como o impedimento da mulher de participar de cultos menstruada ou grávida, por exemplo, não podem ser considerados como princípios universais da religião, embora ainda aconteçam. “Não se pode ser enfático quanto ao corpo feminino tanto na umbanda, quanto nas demais religiões afro-brasileiras, sobretudo pela dinâmica das suas doutrinas. É tudo muito pouco determinístico no sentido de não funcionar a partir de regras muito fechadas, mas sim ambíguas.”, esclarece o pesquisador.
Após ceder a um convite irresistível de Marlene para participar do próximo ritual, rimos juntas da minha falta de conhecimento sobre as pomba-giras e sobre o senso comum que ronda as religiões de raízes africanas. Ao me servir a terceira xícara de chá, ela me arrebata: “A umbanda é muito simples, minha filha. O preconceito dos outros é que complica”.
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