Das cerca de duzentas telas pintadas por Frida Kahlo (1907 – 1954), a grande maioria são autorretratos. Compostos de lágrimas, feridas, pingos e poças de sangue, frutas abertas, símbolos pré-colombianos, e nenhum sorriso, estas obras apresentam uma narrativa diferente daquela que transparecia nas festas, jantares e demais aparições públicas, em que Frida iluminava o ambiente com seus olhos negros emoldurados de grossas sobrancelhas e suas gargalhadas irresistíveis. Para Hayden Herrera, biógrafa mais importante da pintora, a máscara de alegria servia ao teatro da vida, enquanto na pintura ela se permitia revelar as verdadeiras faces do sofrimento.
Num diálogo ambíguo entre ficção e verdade, a pintora mexicana foi a protagonista de sua vida e de sua obra, tornando-se um ícone da luta feminista, e uma referência primordial para mulheres artistas, criadoras, questionadoras. Além disso, hoje multiplicam-se camisetas, canecas, cartazes, bolsas ecológicas, propagandas de produtos de beleza com o rosto e o nome de Frida – mostrando que, além de tudo, ela também é um sucesso comercial.
Conforme argumenta o sociólogo Gilles Lipovetsky, vivemos na era da estetização do mundo, na qual os ideais próprios ao universo artístico tradicional – criatividade, beleza, hedonismo, promoção de experiências perceptivas – são apropriados pela lógica produtiva e distributiva do capitalismo. Nesse contexto, é corriqueiro que as imagens de grandes artistas e personalidades históricas se imponham como marcas e instrumentos de marketing. Frida Kahlo não escapa a este sistema, figurando ao lado de ícones como Che Guevara e Andy Warhol em lojas de souvenir.
Se consumimos produtos como estes é porque eles carregam em si um valor simbólico e identitário, é porque dizem algo sobre quem somos ou o que desejamos ser. Nesse sentido, a banalização e a exploração comercial de Frida Kahlo são apenas a dimensão econômica de algo muito maior: tudo o que ela representa para as mulheres, a arte, e a esquerda latino-americana. Sin embargo, se queremos favorecer sua potência histórico-simbólica e não o lucro capitalista, cumpre irmos além da apropriação e reprodução automáticas de sua figura, como parte da cultura pop contemporânea, e expandirmos a fruição passiva de suas obras, mergulhando nas matizes simbólicas e na força política que carregam.
Esta é a proposta por trás da peça de teatro Frida Kahlo – À Revolução, que comemora seu aniversário de sete anos, com temporada que vai até o dia 14 de agosto no Centro Histórico-Cultural Santa Casa. O espetáculo como o vemos hoje, dirigido por Daniel Collin, é fruto de uma pesquisa iniciada por Juçara Gaspar – atriz que interpreta Frida – sobre mulheres protagonistas, mulheres que viveram a própria vida e “que sempre estiveram lá, mesmo que ninguém tenha contado sua história” – nas palavras da atriz. A decisão de interpretar Frida, e não outras mulheres de sua investigação – como por exemplo Camille Claudel ou Violeta Parra – veio de uma relação empática. As raízes latino-americanas, a potência dramática, os olhos negros brilhantes – algo ou tudo na personagem Frida Kahlo inspirou em Juçara a transposição para o teatro, lá em 2008, numa esquete de vinte minutos.
Passados alguns anos, a peça se tornou um monólogo de uma hora de duração, com trilha sonora ao vivo em voz e violão de Luciano Alves. O formato monólogo reitera a necessidade fridesca de ser personagem principal de sua própria história, de compreender e retratar a si mesma. Aquilo que pode ser interpretado – e o foi por diversos pesquisadores do perfil psíquico Frida – como narcisismo e obsessão pela própria imagem, também é um posicionamento poético e político. Pela primeira vez na história da arte, uma mulher pintora ganhou reconhecimento ainda viva pintando a si mesma em suas experiências cotidianas. A luta da mulher é todo dia, e Frida foi a primeira a pintá-la sem eufemismos para a dor e o sangue que a constituem.
Frida Kahlo – À Revolução não traz outros personagens ao palco a não ser pela mediação das palavras da protagonista e de suas telas, apoiadas num cavalete móvel. Todos os episódios da conturbada biografia da pintora são retratados através dela mesma, como se o seu corpo fosse o centro de uma galáxia em plena explosão. E era. Na infância, Friducha padeceu de poliomelite, doença que atrofiou sua perna direita. Aos dezoito anos, na volta de la Preparatoria, o ônibus em que viajava chocou-se com um bonde provocando um acidente gravíssimo, em que Frida acabou atravessada da coluna à pélvis por uma barra de ferro. Se a atrofia da perna foi um primeiro condicionante para a adoção das longas saias tehuanas que Frida usou a vida inteira, o acidente lhe obrigou aos oito meses de imobilização durante os quais pintou seus primeiros quadros. Um cavalete e um espelho foram colocados ao lado de sua cama: nascia a autorretratista.
Foi, portanto, em franco combate às limitações impostas ao seu corpo que Frida construiu sua obra e a si mesma. Durante os vinte e nove anos que se sucederam ao acidente, passou por diversas cirurgias e períodos imobilizada em coletes ortopédicos – limites que lhe não lhe impediram de frequentar festas, alimentar paixões, vestir-se exuberantemente, pintar, tornar-se uma das principais artistas latino-americanas e universais; mas que, é preciso dizer com clareza, a colocavam em constante debate interior sobre o significado de ser mulher. O corpo que foi atravessado por uma barra de ferro tinha um útero, e este útero nunca pôde ter filhos, o que sempre foi um dos sonhos de Frida. A criação artística, a maternidade, o amor, a política, o lugar da mulher no mundo, todos os temas de sua obra vão além do mero exercício autorreferente e também nos atravessam quando percebemos que em cada um de seus quadros estão ela mesma e todas as mulheres do mundo. Em seus autorretratos estão séculos de dor e opressão, mas também a potência questionadora e criadora do feminino.
De um lado, o colete, os limites do corpo; de outro, o cavalete, a tela, as plataformas para a criação, o extravasamento na arte. Esses dois símbolos-chave na biografia de Frida Kahlo são também os elementos principais da cenografia da peça. Ambos aparecem no palco antes da entrada da protagonista, como que anunciando as polaridades verdade & ficção, corpo & retrato, transitoriedade da vida & eternidade da obra, que dizem tanto sobre sua história. Além desses aspectos simbólicos, o monólogo conta os acontecimentos marcantes de cada fase da vida de Frida: a infância em Coyuacán, distrito residencial dos arredores da Cidade do México; a formação do grupo de artistas Cachuchas; o acidente de ônibus; a conturbada relação de toda vida com o muralista Diego Rivera; suas viagens aos Estados Unidos e à França; a impossibilidade de ter filhos; a amputação da perna.
Não obstante, o cerne da peça – como o da vida de Frida – não são os fatos em si, mas as marcas, as interpretações, os sentidos que eles aportam à sua protagonista. A Frida de Juçara fala alto, sorri, grita, chama as companheiras e companheiros à luta, desce do palco e toma uísque com a plateia, como a própria recebia convidados na sala de estar da Casa Azul, sempre de portas abertas. O foco de luz que acompanha Frida-Juçara em sua coreografia através do palco também dialoga com a linguagem do retrato, ressaltando as expressões de dor e alegria alternadas no rosto fortemente maquiado. Juçara, como Frida, se emociona e nos emociona com su pasión. Cor e movimento, luz e sombra, palavra e lamento fazem dessa peça uma dança biográfica que não só homenageia Frida Kahlo, como nos dá uma amostra do poder encantatório de sua presença.
Na perspectiva de trabalhar pela representatividade e a inclusão, a produção do espetáculo realiza duas apresentações com tradução simultânea para LIBRAS (dias 04 e 11 de agosto), e uma com audiodescrição (11/08), e oferece à comunidade duas oficinas gratuitas focadas no protagonismo feminino: “Autorretrato – Expressar é começar a libertar-se” e “Mulher, protagonismo e memória – a revolução de Frida Kahlo”. Nesta última, ministrada pela própria atriz e pesquisadora Juçara Gaspar e voltada apenas para mulheres, além de estudar a biografia de Frida e alguns dos arquétipos presentes em sua obra, as participantes são convidadas a trocar experiências e vivenciar um pouco do artivismo feminista. Cada mulher entrega um pouco de si e recebe um tanto de todas as outras – olhares, abraços, narrativas pessoais que terminam com um cortejo de Fridas. Juçara ensina a fazer o penteado de tranças, fitas e flores eternizado nos quadros e fotografias da pintora como se estivesse dizendo “sejam como Frida, sejam vocês mesmas as protagonistas de suas histórias”.
Esta visão de mundo permeia todo o projeto de sete anos da equipe de Frida Kahlo, à Revolução! e a pesquisa de arte & vida de Juçara Gaspar. Frida é ícone do artivismo e do protagonismo feminista, é modelo da visibilidade e da representatividade pelas quais as mulheres vêm lutando ao longo de séculos de exclusão social e histórica. É nisso que sugiro pensar daqui pra frente cada vez que virmos uma estampa de Frida Kahlo.