Coluna Gemis – Engraçado para quem? O protesto Atocha OlimPICA e o machismo da esquerda

Arte: Gemis
Arte: Gemis

Por Gemis – Gênero, Mídia e Sexualidade

O Gemis vem a público falar sobre o caso de assédio à repórter de Zero Hora Nathália Carapeços, durante o ato “Atocha OlímPICA”, na última sexta-feira (5/8). Gostaríamos de levantar alguns pontos sobre o ocorrido e, para problematizar a situação, vamos também contextualizar os fatos:

1º FATO – Integrantes do OcupaMinC decidiram fazer um protesto contra os Jogos Olímpicos, convocado com o nome “Atocha OlimPICA”. No material divulgado aos veículos de comunicação, informaram que iriam desfilar pela cidade “com maiôs e qualquer figurino que escrache os atletas e de preferência com troca de gênero”.

1ª PROBLEMATIZAÇÃO – Algumas mulheres – incluindo a integrante do Gemis Débora Fogliatto e a integrante do Nonada Thaís Seganfredo – problematizaram o conteúdo do ato junto aos organizadores. Apontaram que, com o intuito de questionar problemas relacionados aos Jogos Olímpicos, o evento acabava por ridicularizar profissionais do esporte e reforçar parâmetros de normalidade em relação a gênero e sexualidade. O questionamento era: o quão revolucionário é falar em “troca de gênero”? O que há de transgressor em mostrar homens “imitando” de forma caricata mulheres desportistas? As atletas sofrem com a opressão de gênero no esporte e na mídia, tendo seus corpos sexualizados, seu rendimento ignorado, seus salários diminutos em comparação aos homens (entre os 100 atletas mais bem pagos do mundo, há apenas duas mulheres).

2º FATO – Apesar da problematização e das críticas, o evento foi realizado. O grupo foi protestar em frente ao jornal Zero Hora. Designada para entrevistar os manifestantes, a repórter Nathália Carapeços foi ao local. O manifestante que a jornalista tentava entrevistar colocou um objeto fálico que simbolizava a tocha olímpica em frente a sua região genital e, apontando para a repórter, disse: “SE PEGAR A TOCHA, PODE CONVERSAR”. A frase foi repetida e endossada por outros manifestantes que estavam no local.

2ª PROBLEMATIZAÇÃO – É importante sublinhar que o Gemis compreende e compartilha de muitas das críticas feitas à grande mídia. No entanto, acreditamos que expor, assediar e ridicularizar uma colega que só buscava exercer sua profissão não é a forma adequada de manifestar o descontentamento com um órgão de comunicação. O que se viu foi a reprodução do machismo que está enraizado em toda a sociedade e que é compartilhado por homens de todas as posições políticas e ideologias. Isso é machismo puro e simples. Isso é desrespeito. Isso é sexualizar a vida de uma mulher que está trabalhando, isso é agredir seu espaço, é naturalizar que mulheres só obtêm informações se prestarem favores sexuais.

3º FATO – O caso foi divulgado pela Zero Hora e teve ampla repercussão nas redes sociais. No evento do Facebook, em uma postagem, o grupo pede desculpas para a repórter e afirma que está em “processo de desconstrução dentro da arte, nas piadas, nos jargões” e diz que irá tomar as devidas providências.

4º FATO – Marcelo Restori, integrante do coletivo, enviou uma carta para Zero Hora na qual afirma que foi mal interpretado, pois “houve foi uma piada infame”. E que “o objeto cênico simulava uma tocha, e se fosse com um repórter homem, o jogo se daria da mesma forma, com foi no percurso do cortejo, infelizmente o recorte apenas com a repórter faz isso faz perecer machismo para encobrir o falso moralismo que se manifesta toda vez que a arte brinca com símbolos sexuais, pois a piada foi feita para várias pessoas pelas quais passamos em cortejo, independente de gênero e foi vista como piada pela maioria.” E, na última linha, diz que “MESMO ASSIM PEÇO DESCULPAS PARA REPÓRTER E TODAS AS MULHERES”.

3ª PROBLEMATIZAÇÃO – Consideramos como irrelevante esse pedido de desculpas, pois os argumentos dados pelo autor das ofensas em nenhum momento demonstram empatia pelo sofrimento das mulheres. Sofrimento esse que, cotidianamente, nos faz repensar nossa presença no espaço público, no mercado de trabalho, na vida em sociedade. Vítimas de constrangimentos múltiplos, em sua maioria de cunho sexual, estamos cansadas de argumentos que querem nos convencer que o machismo e a misoginia podem ser apenas piadas, brincadeiras ou encarados com relativismo. Estamos falando de sofrimento e mortes que ocorrem por conta dessa desigualdade. O ato realizado em frente à Zero Hora foi uma violência. O jogo cênico não pode ser utilizado como argumento para ridicularizar minorias como mulheres, negros e a população LGBT. Esse é o mesmo argumento utilizado por humoristas como Rafinha Bastos e Danilo Gentilli, que seguem com seu humor opressor e carregado de preconceito. Nesse caso, a agressão foi feita sob a justificativa da “arte” e, ainda, as críticas foram encaradas como “moralismo”, o que talvez seja ainda mais grave, pois consideramos a arte e a cultura elementos muito importantes da sociedade e imprescindíveis elementos de transformação, assim como o esporte. E não, um homem cis pedir para uma mulher pegar em um objeto que simboliza um pênis para que possa fazer seu trabalho não tem nada de transgressor. É mais do mesmo machismo.  

DESENHANDO: NOTAS EXPLICATIVAS –  PORQUE ESTE ATO NÃO FOI TRANSGRESSOR

Desde o início da nossa atuação enquanto coletivo, o Gemis sempre acreditou que não é apenas a grande mídia que precisa ser problematizada nas suas práticas internas e conteúdos produzidos no que se refere à temática de gênero e sexualidade. A proposta de atividade envolvia “troca de gênero”. Gênero é um sistema social que enquadra pessoas em identidades politicas socialmente e historicamente construídas. Cotidianamente, pessoas percebidas “transgredindo” ou “desobedecendo” alguma norma de gênero são sujeitas à discriminação e punições sociais. Essa norma inclui vestimentas, trejeitos, orientação sexual e configuração genital. É através desse sistema de regramento de gênero que o evento pretendia ofender atletas. Ou seja, através do mesmo sistema que dá sentido para manifestações de homofobia, transfobia e também misoginia. Utilizar-se desse sistema nesse formato de deboche é aderir a ele.

Pode-se tentar justificar que performar o ato de “vestir-se” de tocha-genital e pedir que alguém a tocasse era uma ridicularização à identidade política do homem machista. Entretanto isso faria muito mais sentido se a proposta inicial do ato não tivesse os pressupostos homofóbicos e transfóbicos mencionados anteriormente. É possível performar e ridicularizar a identidade política de homem machista nesse ato? Ou o riso que a acompanha é o mesmo que alimenta a reiteração dessa identidade como aquela que tem o predomínio da voz para ridicularizar o outro? Qual é a graça em fingir ser alguém que impõe que o outro toque em seu genital? Seria a mesma graça caso a identidade representada não fosse a de homem cisgênero? Dentre os muitos sentidos que um ato performático pode ser interpretado, aquele que mais embasa a performance parece ser a possibilidade de dominação que os homens exercem sobre outros homens e sobre mulheres. Não é uma questão de moralismo pela brincadeira mencionar genitais. É porque o contexto social em que essa “brincadeira” faz sentido é o de sexismo, cissexismo e heterossexismo.

O riso que desqualifica a bicha e a travesti não é o mesmo riso de quando o “amigo” pede para tocarem em sua tocha-genital. Ao final da brincadeira, não foi a identidade de homem cisgênero que foi ridicularizada. Muito pelo contrário. Mais uma vez ocorre a naturalização e a reafirmação do poder daquele que pode requisitar que toquem seu genital sem medo de represália. Nessa manifestação, represália mesmo, é “trocar o gênero” de alguém. Nenhuma novidade no país que todos os dias mata travestis, gays, lésbicas e pessoas trans.

Como o caso demonstra, grupos considerados alternativos e de esquerda também propagam discursos preconceituosos e violentos. Como já é de praxe, as mulheres que antes haviam alertado para o caráter machista do evento foram ignoradas e, na resposta de Restori, mais uma vez são colocadas como as “chatas que não entenderam a piada”. Se pretendemos fazer uma critica à mídia hegemônica, devemos primeiramente refletir sobre os nossos comportamentos e formas de militância, escutar as críticas e reconhecer os erros. É uma pena que o pedido de desculpas inicialmente feito pelas mulheres do Ocupa MinC não tenha se tornado a posição formal do movimento, pois seria muito mais respeitável admitir que dentro do movimento ainda há muito machismo a ser desconstruído do que justificar tudo como “falso moralismo” e “piada infame”. Aproveitamos o momento para endossar a campanha “Jornalistas contra o assédio” e lembrar que este tipo de violência, infelizmente, não é um caso isolado, mas faz parte do cotidiano das mulheres profissionais da imprensa.

gemis*O Gemis – Gênero Mídia e Sexualidade tem como proposta a discussão sobre a produção jornalística relacionada as temáticas de gênero e sexualidade e suas implicações na construção da percepção social sobre estes sujeitos. O grupo escreve quinzenalmente no Nonada.

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