Há algo que só ocorre em shows. Diferente da criação artística em outras áreas, como a literatura ou até o cinema, apresentar a sua arte ao vivo para um público sempre distinto, como acontece na música, é uma sensação única. Por isso, muitas vezes, existe tanta diferença em uma canção do álbum para uma que você está vendo ganhar vida ali na sua frente. Ou seja, algumas bandas ganham ainda mais energia no palco. É o caso da Onda Vaga. Não que os seus álbuns de estúdio sejam ruins: é que suas músicas quase que necessitam de gente ao redor, de calor humano, de dança, de vida. Aí sim vira arte. Foi isso que deu para perceber na noite do último domingo (24) em um Opinião que foi lotando aos poucos.
Antes da Onda Vaga, entretanto, a Cuscobayo animou muito o público – ou foi o público que já chegou animado? Na plateia, uma verdadeira caravana desceu a Serra (a banda é de Caxias do Sul) para prestigiá-los. Não conhecia o conjunto, mas procurando depois, descobri que eles já lançaram seu primeiro álbum, a partir de um financiamento coletivo bem-sucedido, e têm um público realmente fiel. E com razão, uma vez que o show empolgou e trouxe uma grata mistura de sons, como murga, folk, rock, reggae. Cantando a maioria das músicas em português mesmo e bem sintonizada com o público, a banda desperta um sentimento de despreocupação, alegria e leveza. Mas foi no show da Cuscobayo que se escutou os primeiros FORA TEMER, impulsionados pela própria banda e que ganhou coro pela maioria do público. Música também é um ato político.
O show da Cuscobayo durou cerca de quarenta minutos, acabando pelas 20h45 e a Onda Vaga subiria pelo palco às 21h30. Nesse intervalo, pude dar uma pequena volta pelo Opinião, que agora enchera muito mais. Ao fundo, o som mecânico composto por música latina, na pista central, casais dançavam. Grupos de amigas bebiam e se mexiam com o ritmo. Uma grande variedade de pessoas, mas a maioria jovens, descobrindo e se movimentando, esperando uma banda argentina tocar em um domingo à noite em Porto Alegre. Não é legal esse intercâmbio? Acredito que um dos grandes responsáveis por tornar ainda mais conhecida a música latina principalmente aqui no Rio Grande do Sul foi o festival El Mapa de Todos – que, inclusive, trouxe o Onda Vaga para tocar aqui ano passado. É claro que há muitos outros fatores, mas ter um Festival com essa importância é fundamental para isso. Infelizmente, ele não vai ocorrer esse ano. Estava previsto para o fim de novembro e começo de dezembro, mas foi adiado para abril de 2017, segundo nota lançada na página oficial do Facebook no evento.
Cortado o som mecânico, era a vez da Onda Vaga subir no palco do Opinião para trazer todo o seu caos maravilhosamente organizado e dividi-lo com a plateia, convidando todos a bailar com os arranjos de metais criativos e o belo vocal realizado em uníssono pela maioria dos integrantes. A primeira música é a que abre o álbum Fuerte y Caliente, de 2008, intitulada “Vaguisenial”, e já serve como prelúdio para o que veremos nas próximas uma hora e meia de apresentação. A pista do Opinião começa a ficar mais apertada, e os corpos, mais suados. Difícil dar um destaque para os integrantes que frequentemente trocam de instrumentos e de posição no palco, dançam e mexem com o público empolgado. Certo é que com letras profundas e sonhadoras, aliadas a arranjos de sopros bem elaborados, o quinteto argentino navega entre o rock, o reggae, a cumbia, o folk e também traz influências do tango.
Depois da apresentação de duas músicas, agradecem ao público e tocam uma das suas mais bonitas composições, chamada “Jovens”, do disco Espíritu Salvaje, de 2010. Uma melodia calcada na viola e uma letra que compõe um quadro de otimismo e juventude, como diz a parte da música: “Ahora que soy jovencito quiero salir a ver lo que no pasó/y lo que pasó/Pasó y pasará mi amor está floreciendo ”. E acredito que é um pouco por aí que também devemos observar o show da Onda Vaga. Há muita juventude pulsante correndo por essas canções, algo que poderia ter saído de um discurso de Galeano, falando de utopia. E que pode ser analisado como uma posição política em uma América Latina que vê crescer mais uma vez o neoliberalismo, com o governo de Macri e de Temer. Não é à toa que, durante o show, o público começou a gritar “Fora, Macri!”, o que foi imediatamente incentivado pelo conjunto argentino. Um deles até comentou: “Há rivalidade entre nós quanto ao futebol, mas não há rivalidade quanto a não gostar do presidente!”. Então, uma horda de “Fora, Temer” começou a ser entoada.
E há algum problema nisso em um show? Nenhum discurso é neutro, por que uma música deveria ser? E, aliás, Bob Dylan não acabou de ganhar um Nobel de Literatura à toa. Apesar de existir críticos caretas sobre essa premiação, os gêneros só são tão enrijecidos porque continuamos categorizando as coisas. Poesia, canção, política. Está tudo ligado. Mas você só percebe isso em um desses momentos em que se divide a sua arte com um público e observa a sua reação. Imagino que, como artista, não há uma resposta melhor.
Daí se tocou uma série de músicas que envolveram os seus três álbuns de estúdios, os já citados Fuerte y Caliente, de 2008, e Espíritu Salvaje, de 2010, e também Magma Elemental, de 2013. Lá pelas 22h30min estavam dando tchau para o público, mas é óbvio que voltariam para o bis, o que aconteceu cinco minutos depois que saíram do palco. Foi então também que o público invadiu o palco, muita gente subiu e começou a cantar com a banda, repetindo o que aconteceu na última edição do El Mapa de todos, quando eles tocaram no Salão de Atos. Foi aí também que aconteceu outro momento muito legal: Uma das mulheres que subiu ao palco puxou um Ni uma a menos/ Ni uma a menos! e a banda e o público aderiram ao protesto, mostrando que sim, a América Latina, ou parte dela, continua unida.
A previsão de lançamento do próximo álbum é agora em novembro, no mês. Esperamos que um retorno do quinteto argentino também seja o quanto antes.