Uma “Carmensilvóloga”

veredas-banner-300x300px (1)“Sou Alice del Fresno, sobrinha de Carmen da Silva, com quem partilhei vida e morada, desde que nasci até seu falecimento”. Desta forma que Alice se apresentou, quando trocamos a primeira mensagem por e-mail. Percebe-se na escrita da sobrinha o temperamento humorado e despojado da tia, que escreveu romances e artigos principalmente na revista Claudia. Em certo momento, perguntei à Alice se ela guardava alguma fotografia ao lado de Carmen.

“Outra geração, minha cara. Durante a infância – de Carmen e minha, apenas 12 anos de diferença nos separavam – só havia em casa uma máquina, então denominada ‘de caixão’, coisa totalmente primitiva, hoje objeto de museu ou de lata de lixo. A máquina era tão primitiva quanto as fotos por ela transmitidas: foco, iluminação, brilho, etc. eram coisas ignoradas”.

Convivência com Carmen da Silva:
“O grau de proximidade entre Carmen e eu não podia ser maior! Embora fosse minha tia, a pouca diferença de idade entre nós, tornou-nos mais amigas do que o relacionamento familiar.

Morei com Carmen quase toda a minha vida, do nascimento aos 11 anos. Ao mudar-nos, os Barreto, Carmen – que já morava com seus padrinhos em virtude da morte de Vovó – residia na casa ao lado e com uma passagem interior, o que era como se morássemos juntas. Isso era em Rio Grande. Quando meu pai foi transferido para Montevidéu, Carmen já estava em Buenos Aires, mas ia passar férias e fins de semana conosco. Casei-me em 1957 e vim para a Argentina, onde ela residia então.

Nosso relacionamento foi permanente, relacionamento no qual, muitas vezes, houve inversão de papéis: podíamos ser alternativamente mãe ou filha, tia ou sobrinha, amigas e cúmplices. Era minha ‘ídola’ nos primeiros anos, embora me fizesse algumas maldades, por exemplo, obrigar-me lamber sabão.” 

A influência da tia sobre a sobrinha:
“Claro que influiu na minha vida sua visão do papel da mulher. Mas não tanto como se poderia pensar, pois a família era constituída majoritariamente por mulheres; mulheres que tiveram de sair a trabalhar numa época em que as garotas de ‘boas famílias’ não o faziam.”

A obra de Carmen:
“O que mais me chamou a atenção nos livros e obras em geral é … o estilo. Os livros trazem tantas situações realmente vividas por nós – claro que trabalhadas literariamente – que nada me surpreende.”

O nome de Carmen é lembrado na Argentina, já que ela morou no país?
“Na Argentina, dado o pouco tempo de sua vida de escritora passado aqui, e com o tempo transcorrido, pouca gente ou ninguém tem ideia do que ela representou. Pedi uma entrevista a um dos poucos amigos que teve por aqui – inclusive citado mais de uma vez em “Histórias Híbridas – e ele só lembrava que ‘Carmen era muy grandota y fumaba demasiado’. O resto do pessoal da época ou morreu ou perdeu a memória.”

Direitos autorais das obras de Carmen:
“Os direitos autorais das obras de Carmen pertencem às respectivas editoras.
Reedições só podem ser efetuadas com a licença das mesmas.”

(Durante a troca de e-mails, perguntei à Alice como eu poderia creditá-la na entrevista e se ela poderia enviar uma foto sua):
“Transitei a vida com alegria, felicidade possível, enfrentando os desafios como pude, perdendo e ganhando. Carmen conta que, um belo dia, descobriu-se como ser plural. Essa descoberta não chegou e, certamente já não chegará, até mim; continuei sendo uma feminista singular. Vamos deixar, então, que meu crédito seja apenas o de sobrinha com memória privilegiada – necessário aproveitá-la urgente –  que compartilhou a vida inteira com a tia famosa e que, hoje, se sente orgulhosa em poder contribuir para a permanência, ainda bem necessária, da luta pela qual Carmen combateu sem deixar-se nocautear.

Estudei Direito e Línguas Clássicas em Porto Alegre. Prefiro que os que me conheceram então fiquem com a lembrança da garota de 23 anos que saiu do Brasil e não com a imagem de uma Senhora de Respeito” de mais de 80.”

 

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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