Em tempos de retrocesso social, encarar a verdade e lutar contra ela é doloroso. Os guarani-kaiowá, no entanto, enfrentam esse retrocesso há décadas, seja sob governos de direita ou de esquerda. É isso que Martírio, novo documentário do antropólogo e indigenista Vincent Carelli que deve estrear em abril, explicita. O filme é um mergulho profundo e necessário em um capítulo fundamental da história brasileira e aborda os diferentes tipos de violência que os kaiowá vem sofrendo a partir do lobby do agronegócio: assassinatos, despejos, silenciamento e também tentativas de apagamento da cultura guarani.
Carelli acompanhou os guarani desde os anos 1980. Na época, já havia despejos forçados pelos fazendeiros e tentativas de retomada, embora o conflito só tenha ganhado espaço na opinião pública 15 anos depois. É fato que na maioria das notícias sobre esses conflitos, a mídia hegemônica trata os povos indígenas como invasores. Este é o discurso oficial. Afinal, conforme esta narrativa distópica e assustadora, “o agro é pop, o agro é tudo”, portanto tem permissão para subjugar povos que constituem uma das raízes da identidade nacional.
Boa parte do filme consiste em uma retomada histórica a partir de arquivos, imagens e vídeos, resgatando fatos que deveriam estar em qualquer livro de História do Brasil. Os arquivos mostram por exemplo, o registro da mão-de-obra guarani nas plantações de erva-mate, quando eles eram denominados de forma simplória como “paraguaios”. Estão lá também as expedições de Rondon e o plano do marechal para “civilizar os índios”, pacificando as relações a fim de permitir a colonização do oeste do Brasil.
A investida do agronegócio é um dos eixos do documentário, que relembra o momento em que os despejos começaram, nas décadas de 1940 e 1950, mesma época em que as fazendas começaram a expansão no centro-oeste. Na verdade, a questão se revela muito mais grave do que a sociedade normalmente conhece, não apenas para os kaiowá, mas também para outras etnias indígenas. O próprio documentarista já retratou o problema em filmes como Corumbiara. Lúcia Murat também contribuiu com um documentário recente sobre os kadiwéu.
Uma das questões retratadas é como grupos indígenas são obrigados a viver nas margens de rodovias ou em reservas muito pequenas, que eles não consideram propícias para uma tekoá (aldeia, em guarani). Aliás, Carelli ouve também os fazendeiros, que dizem que “nunca teve índio nessas terras”. Como explica o então Procurador-Geral da República entrevistado lá na década de 1990, “não se sabe onde colocar os guaranis, porque deles se tirou tudo, mesmo tendo nascido no território nacional. Parece até que este pasto pro gado nelore já está aí desde o princípio do século”
É impossível não sentir vergonha toda vez que a ex-ministra da agricultura Kátia Abreu aparece na tela (e são muitas) para demonizar cegamente os guarani e o MST em defesa da “produção brasileira”, acusando até mesmo os indígenas de cometerem violência. Como o filme mostra, está em questão uma batalha desigual de forças, que Carelli didaticamente explica ser absurda e desrespeitosa com os guarani. Um verdadeiro crime contra a humanidade.
Há poucas décadas, um movimento indígena nacional começou a tomar forma e a militar contra retrocessos na política brasileira. Um dos momentos mais marcantes e dolorosos do documentário são as imagens da ocupação dos indígenas em uma sessão sobre a PEC 2015 (que pretende transferir ao congresso, dominado pela bancada ruralista, a decisão final de demarcação de terras). Naquela ocasião, os indígenas tentaram falar com a ex-presidenta Dilma Rousseff, mas foram ignorados.
Apesar do movimento de resistência cada vez maior, o cenário parece se agravar cada vez mais. Martírio é um importante alerta a favor da justiça social, e o mínimo que a grande mídia poderia fazer para redimir um pouco do desserviço causado é dar um pouco de visibilidade ao documentário e à luta guarani. Por enquanto, seguimos buscando outras veredas, torcendo para que o filme chegue no máximo de salas de aula que puder.