por Amanda Rosa de Bittencourt*
Talvez você tenha ouvido falar de Dora, talvez não. Se, por um acaso, a negativa é a verdadeira, não se sinta mal, você não é o único. Comparando com outras poetas brasileiras, Dora não é só desconhecida, Dora é quase um mito, uma daquelas narrativas que não estão nas vitrines das lojas, nem nos manuais de muitos críticos literários, só em estantes de algumas bibliotecas e de alguns adoradores fugidios. A poeta é um daqueles artistas que você só encontra quando começa a querer mergulhar profundamente dentro de uma das manifestações do sagrado mais incompreensíveis: essa tal de poesia sublime.
Que dizes, Poeta?
Predisseram deuses
esta jornada única?
As pedras que pisamos são póstumas estrelas
e nossa invenção, ser deuses?
Ai, que fomos inventados, as pedras
nos pisaram. Futuras estrelas vimos
e predissemos deuses.
(estrofe de “Prêmio na Academia”, poema de Cartografia do Imaginário, p. 110, 2003)
Dora foi uma escritora paulista, nascida em 1918, e falecida em 2006. Publicou nove livros enquanto ainda estava viva: Andanças (1970); Uma via de ver as coisas (1973); Menina seu mundo (1976); Jardins (esconderijos) (1979); Talhamar (1982); Retratos da Origem (1988); Poemas da Estrangeira (1996); Poemas em Fuga (1997); Cartografia do Imaginário (2003) e Hídrias (2004). Em 1999, organizado sob curadoria do crítico Ivan Junqueira, foi publicado o livro Poesia Reunida, que contém oito livros da artista e inclui uma seleta fortuna crítica sobre seu trabalho. Além dessas obras, o Instituto Moreira Salles lançou mais três livros póstumos de poemas inéditos: O leque (2007), Apassionata (2008) e Transpoemas (2009), totalizando uma bibliografia de quatorze obras em seu nome. A autora recebeu três vezes o Prêmio Jabuti, um dos mais importantes da Literatura, por Andanças, Poemas da Estrangeira e Hídrias. Também recebeu a honraria do Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras à obra Poesia Reunida.
Parece muito? Mas não acabou ainda.
Além de poeta, Dora era ensaísta e tradutora. D. H. Lawrence, W. B. Yeats, T.S. Eliot, Saint Jonh Perse, Friedrich Holderlin, foram alguns dos poetas que Dora traduziu nas publicações de Diálogo (1955-1963) e Cavalo Azul (1964-1965 – 1989), duas revistas criadas em colaboração com seu marido Vicente Ferreira da Silva, Vilém Flusser e Anatol Rosenfield. Do ilustre artista Rainer Maria Rilke, traduziu as obras Elegias de Duíno (1972) e Vida de Maria (1995). Junto com outras personalidades consagradas, fez parte da comissão responsável pela versão brasileira das obras completas do psicólogo Carl Gustav Jung para a Língua Portuguesa, as quais também realizou traduções e revisões. Como ensaísta, publicou Tauler e Jung (1997), Angelus Silesius (1986) e A poesia mística de San Juan de La Cruz (1984), todos em parceira com Hubert Lepargneur.
Como nos conta a filha Inês Ferreira da Silva Bianchi em Flores de Perséfone (2013), livro-resultado de uma extensa investigação da artista pela pesquisadora e professora Enivalda Nunes de Freitas: Dora jamais se orientou por prêmios e pela repercussão de seu trabalho, escrever era sua vocação pessoal. Em um mundo acadêmico de vaidade e egos, onde vemos lançamentos pomposos e disputas intelectuais de títulos, Dora me faz lembrar das primeiras fagulhas que fazem nascer um artista, que muitas vezes são esquecidas nas artes e nas salas de aula: o amor e o entusiasmo. Duas abstrações que podem ser realizadoras de autênticas ações que tocarão o espírito, o coração, a alma, ou qualquer outra palavra desse nível.
Se me extremo
temendo o sentimento
pareço ter nenhum
No nada visto o canto
na acesa ascese
dispo o coração
(“Sem Título” – poema de Uma via de ver as coisas, retirado de Poesia Reunida, p. 73, 1999)
Neste texto, vejo a reflexão do quanto a negação dos sentimentos acarreta a falta de conexão e de empatia consigo próprio e, por conseguinte, com os outros. Viver nesse extremo, temendo os impulsos passionais, considerando-os erráticos e os renegando, cria indivíduos austeros e solitários. Uma pessoa que teme entrar em contato com seu amor mais profundo, com seu entusiasmo infantil, com seus prazeres muitas vezes tolos aos olhos do mundo, esquece de viver com a sua própria criatividade íntima que não tem parâmetros sociais. É única, individual, a sua fagulha divina, o que é muito distante de megalomanias e egocentrismos, pois no “nada”, em que vemos o conceito de vazio, do não-pensamento das religiões orientais, é possível perceber a arte em um estado inconsciente, ou seja, puro. Ascese é caracterizada como a busca do refinamento sagrado, renunciando às ações profanas que “deturpariam” o desenvolvimento espiritual, realizada por místicos e sacerdotes de diversas vertentes.
O impulso criativo oferecido pelo sentimento, pelo coração, é exatamente a acesa ascese, onde os paradoxos de “vestir” e “despir” coexistem. O sentimento tem voz e é lírico, é bonito, é afetuoso, é honesto, é autêntico, é sincero, e sim, é infantil e caótico. Não há nada a temer além do próprio medo. Um poema “Sem título” poderia parecer “iii, ele tava com preguiça de escrever” em alguns escritores, mas em Dora faz sentido, qual seria o título do nada? Onde estamos nus e vulneráveis? Onde o sentimento é livre e o pensamento inexiste? Onde as palavras são desnecessárias? Onde se é, não onde se parece ser?
Este foi um poema curto que exemplifica o trabalho hierofânico de Dora, uma figura que é quase uma personagem mítica, uma artista-arquétipo da sacerdotisa introspectiva e criadora conectada ao prazer de criar. A sua poesia é uma ponte entre o profano e o sagrado, uma passagem entre-mundos, e como tal, é de complexa assimilação no primeiro olhar, é necessário ir além da mente racionalista e sentir a arte transcrita nas páginas. É um texto visionário arrebatador, um real exemplo de hierofania, termo consagrado por Mircea Eliade que significa “manifestação do sagrado”.
Dora revitaliza o numinoso, o sentimento numem transcendente, inspirado pela divindade, por meio de arquétipos e de simbolismos imagéticos, a sua imaginação e a sua sensibilidade unem-se à sua mente racional e formal, organizando os poemas também em construção de um ritmo e de uma linguagem qualificada. Seu texto realiza uma conexão com o próprio mysterium, que assusta e fascina, deslumbra e amedronta. Este encantamento da sua escrita surge pela configuração dos vocábulos em imagens delicadas, por meio de interações sensíveis que vão ao encontro do Self junguiano, que só um ato de ascese pode encontrar. Entretanto, sua poesia também causa assombro pela dificuldade. Esse paradoxo, característico do sagrado, atesta a resistência do cânone acadêmico em falar mais da Dora. Uma poeta que, apesar de um currículo invejável, não parece receber a devida atenção como outras poetas contemporâneas.
Infiro que a intimidação de seu texto ocorre pela hipótese, deveras opressiva que, num mundo onde deveria reinar o sensível unido à mente, ainda exista a desconsideração a artistas como Dora justamente por tocar na ferida antiga de todo ser humano: a falta de contato com o inconsciente, ou seja, a falta de conexão com a sua própria profundidade e a consequente alienação dos seus processos, das suas curas e das suas reflexões de autodesenvolvimento. Há muitos que se consideram vivos, mas são sobreviventes das suas prisões de crenças, paradigmas e ilusões, esqueceram-se, ou nunca descobriram, o que lhes traz amor e entusiasmo. Outro exemplo desta proposta de conexão hierofânica é o texto “O Encontro”, de Cartografias do Imaginário (2003):
Achei depois de muito procurar
o Desconhecido. Antes, o enganar-me
com mil e um nomes. Agora
alegremente vivo a hora
do encontro sem procura. O eu
é o servidor, bem sabes, mas não sigas
o descaminho se ele indicar-te
esta ou aquela direção.
Segue o vento que tocar-te
com mão levíssima
e chegarás de repente.
Foi-se a semente, nem a viste transformar-se.
Tudo é um ágil configurar-se
nos dedos leves da Vida
que te abraçou comovida,
ouvindo teu silêncio.
(SILVA, 2003, p. 134).
Este é um dos meus textos favoritos, sempre que o leio sinto emoções diversas e modifico os meus pensamentos mergulhando na sensibilidade que me comove. Um poema infindável é sempre aquele que nos muda à medida que o lemos e nos faz refletir se quem mudou foi o texto ou se fomos nós mesmos. Ao ler o termo “Vida” e “Desconhecido”, ambos com a letra maiúscula, infiro que o sujeito lírico considera os dois como a mesma expressão desse mistério que confunde e fascina, tão intangível que pode ser facilmente confundido com mil e um nomes. Esse não-dito, o desconhecido, que só pode ser encontrado junto a uma ação oposta: a sua não-procura.
O eu como um servidor nos remete a um ego prestativo que está em contato com todas facetas de si-mesmo, o sujeito lírico espera que o leitor reconheça o quanto esse eu é apenas um auxílio, não o todo, e alerta para não seguir os des-caminhos indicados por ele. Esse prefixo faz toda a diferença na leitura do poema, pois as escolhas que o servidor realiza seguem medos, crenças sociais, paradigmas, um conceito de sobrevivência. Há de se acompanhar o vento, a mão leve, o empurrão das sincronicidades, que geram frutos tão rápidos que se pode nem percebê-los, afinal, a Vida acolhe gentil aqueles que silenciam, que tem fé. Dora diz em entrevista que a parte espiritual é o elemento condutor da sua vocação poética. Para a artista, o poeta precisa acreditar que a Vida é forte, cria novas oportunidades de reconexão, apesar desse mundo tão dessacralizado. Ela acreditava nas diversas manifestações do sagrado, buscando viver este não-ser da existência como uma passagem, apoiando que só podemos ser fieis ao nosso coração. “Dar o pouco que se tem, ser fiel à sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de suprir essa carência dos deuses.” (GALVÃO, 1999, s.p., grifo nosso).
Ao ler as palavras da citação de Dora, lembro do depoimento da sua filha Inês Ferreira (2015), no qual ela diz que sua mãe fazia da vida uma grande aventura, se perdia em trilhas de cachoeiras, passava a noite em grutas, ouvia a noite e os seus sons assustadores, atentava para tempestades de raios, lutava contra ataques de aranhas caranguejeiras e de cobras em casa, além de outras experiências que podemos qualificar como plenas. “Minha mãe era de fato corajosa. Nada disso a intimidava.”. E como expressão de sua coragem e autêntica individuação frente à vida, Dora legou uma produção vasta e apta de ser pesquisada segundo vários norteadores teóricos, poéticos e simbólicos, sua polissemia atesta a perenidade de uma obra sensível e que merece ser mais sentida por alunos, críticos, pesquisadores e leitores.
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* Amanda Rosa de Bittencourt é formada em Letras-Português pela PUCRS e Mestre em Teoria da Literatura também pela PUCRS, sua dissertação de mestrado teve Dora Ferreira da Silva como objeto de pesquisa: O Sagrado na Poesia de Dora Ferreira da Silva. Vive para escrever, criar, falar, pesquisar e estudar, não necessariamente nessa ordem, em quaisquer mundos sagrados.
Bibliografia da Autora – Poesia
SILVA, Dora Ferreira da. Andanças. São Paulo: Edição da autora, 1970 – Prêmio Jabuti.
______. Uma via de ver as coisas. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
______. Menina e seu mundo. São Paulo: Massao Ohno, 1976.
______. Jardins (esconderijos). São Paulo: Edição da autora, 1979.
______. Talhamar. São Paulo: Massao Ohno, 1982.
______. Retratos da origem. São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1988.______. Hídrias. São Paulo: Odysseus Editora, 2005 – Prêmio Jabuti.______. Poemas da estrangeira. São Paulo: Massao Ohno, 1995. – Prêmio Jabuti.
______. Poemas em fuga. São Paulo: Massao Ohno, 1997.
______. Poesia reunida. São Paulo: Topbooks, 1999, 483p. – Prêmio Machado de Assis da ABL.
______. Cartografia do imaginário. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2003.
______. O leque. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales – IMS, 2007.
______. Appassionata. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales – IMS, 2008.
______. Transpoemas. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales – IMS, 2009.
REFERÊNCIAS
BIANCHI, Inês Ferreira da Silva. Vicente e Dora – Entre a mata e o mar. In: II Colóquio Internacional Vicente e Dora Ferreira da Silva e do Seminário de Poesia: poesia, filosofia e imaginário, 2015, Uberlândia/MG. Anais… Uberlândia/MG: UFU/ILEEL, 2015. v. 1. Disponível em: <http://www.ileel.ufu.br/anaiscoloquiodoraevicente/wp-content/uploads/2015/08/cpdv_artigo_024.pdf>.
GALVÃO, Donizete. Entrevista de Dora Ferreira da Silva. Revista Cult, maio 1999. Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/dgp5.html>.
SOUZA, Enivalda Nunes Freitas e. Flores de Perséfone: a poesia de Dora Ferreira da Silva e o Sagrado. Goiânia: Cânone Editorial/Belo Horizonte: FAPEMIG, 2013.