Bato palmas para as travestis que lutam para existir
E a cada dia conquistar o seu direito de viver e brilhar
Vivemos em um momento periférico. Essa é a forma como pela qual eu consigo entender tudo que está acontecendo. Periférico sim, pela ligação óbvia com periferia — que está mais e mais em evidência — talvez na moda até. Mas periférico por ver propostas e discursos que não partem do centro do debate tomando força. Causas como a mulher em relação ao homem, o negro em relação ao branco e o pobre em relação ao rico. Entretanto, a questão de periferia/centro que existe em relação a gênero ainda é nova.
O debate de gênero nos apresenta basicamente um novo dicionário (falando pelo ponto de vista normativo): cis, trans, binário, não-binário. Ainda com um conhecimento básico sobre o tema, fui acompanhar um festival no Opinião a fim de ter experiência nova. Foi na quinta-feira véspera da Greve Geral. Eu não tinha certeza de como seria a noite, vazia ou cheia, só sabia que a principal atração da Noites Morrostock era muito boa, a MC Linn da Quebrada.
Chegando uma hora antes do previsto para início da principal atração, pensei que iria perder os primeiros shows. Porém, encontrei a casa extremamente vazia, com poucas pessoas, que estavam sentadas de frente para o palco. O Morrostock começou atrasado devido ao atraso do público. O único entretenimento nesse tempo todo era o telão que mostrava dois vídeos “P.U.T.A”, clipe da banda paranaense Mulamba, e “blasFêmea | Mulher” curta-musical com direção e roteiro de Linn da Quebrada. Mesmo não tendo como prestar total atenção nas produções, visivelmente havia um tom de protesto e resistência ali. Em casa eu vi. Diversos momentos do curta da Linn e toda a proposta do clipe da Mulamba era o mal da relação de poder do homem com a mulher.
Painho quis de janta eu/ Tirou meus trapos, e ali mesmo me comeu/ De novo a pátria puta me traiu/ Eu sirvo de cadela no cio (Mulamba). Eu tô correndo de homem/ Homem que consome, só come e some/ Homem que consome, só come, fodeu e some (MC Linn da Quebrada).
A noite prometia. A primeira apresentação foi de Mulamba, banda que mistura rock e percussão/ e canta para e sobre mulheres. Além de “P.U.T.A”, as vocalistas Amanda Pacífico e Cacau de Sá mostraram ao público, que já estava em maior número e felizmente não paravam de chegar, o repertório feminino do grupo. Você vai lembrar quando eu te olhar lá de cima/ Vai reconhecer e vai respeitar minhas cinzas é o refrão da música que tem o mesmo nome que as intitula. Outro destaque foi quando Cacau começou a cantar “Triste, Louca ou Má”, da francisco, el hombre. Interpretar um do mais recentes hinos femininos era o que faltava para Mulamba ganhar o público de vez. O festival começou da melhor forma possível.
Amanda Pacífico, lembrem desse nome. A vocalista da Mulamba segurou um pouco sua voz porque disse que iria voltar ao palco na sequência, dessa vez para cantar pela Orquestra Fiorenta. A baixista Naíra Debértolis fez o mesmo movimento e se vestiu de fiorenta.“Uma orquestra que precisa de calor. Uma reunião de sonoridades que esquenta” é a definição do grupo pelos membros. Que bom, esse era o único espírito possível para aquela noite fria. E a animação deles se espalhou rápido, pois quem tinha ido ao Opinião não foi para ficar parado, encostado. Tinha: genitálias postiças, ousadia, alegria e (a possível problematização, mas que não cabe a mim) homens com roupas de mulheres. “Juveve” foi uma das canções mais vibrantes do festival, a letra conta as diferenças dentro de uma relação lésbica. Ai guria, não posso te ver/ Ai guria, deu like pra que? pegou rápido. A Orquestra Friorenta também cantou um sucesso já conhecido dos gaúchos, “Vai Desabar Água”. Alguns membros do Bloco da Laje, presentes no Opinião, foram lembrados pela Orquestra. E choveu na casa, mas não foi água, foi cor.
Como a maioria dos shows acontecem à noite, as pessoas costumam ir com roupas escuras e neutras. Afinal o foco é o artista. Naquela noite não, a paleta de cores do público era tão ou mais colorida que a do palco. Os nuances de cabelo, maquiagem, brilho — e principalmente tom de pele — deixaram o Opinião singularmente plural. E com o intuito de fazer diferente, os quatro integrantes do grupo performático YRENES fizeram uma apresentação curta. Com muita influência na moda, vi a performance com uma proposta de perturbação, de provocação ao mesmo tempo em que os quatro trabalhassem em conjunto. O que achei aquém foi o não rompimento de padrões. YRENES se propõe a criar novos diálogos, mas sobre moldes antigos de moda e beleza, sob corpos extremamente magros, cabelos lisos e trabalho com o abstrato. Dito isso, o público gostou e gritou bastante. E, sinceramente, é o que importa.
Estou procurando. Estou tentando entender. O que é que tem em mim, que tanto incomoda você? Se a sobrancelha, o peito, a barba, quadro e o sujeito. O joelho ralado, apoiado no azulejo que deixa na boca o gosto O beiço. Saliva, desejo. Segue em passos certos, escritos em linhas tortas, dentro de armário suados, no cio de seu desespero. Um olho no peixe, outro no gato. Trancados arranham portas (dores!) nos maxilares, cânceres, tumores. Vyados que proliferam em locais frescos e arejados. De mendigos a doutores, cercados por seus pudores. Caninos e mecanismos afiados fazem suas preces. Diante de mictórios: fé em pele de vício ajoelham, rezam, genuflexório, acordam pra cuspir plástico e fogos de artifício.
“Submissa do 7° Dia” foi a música que abriu o show de Linn da Quebrada. A música fala que existem muitas formas de fazer sexo, do amor à orgia. E a descrição feita pela artista demonstra o quão necessário seu discurso é, ainda mais para os héteros. O sexo é um dos temas mais comuns na música. Por isso, o que faz alguém especial ao cantar sobre é a abordagem, o realismo, a aproximação com o que é versado. Dominando todos esses quesitos, Linn fez com que todos ficassem quietos para sua primeira aparição e primeira música cantada em Porto Alegre.
Voltamos ao discurso periférico, e por vários motivos. A Linn é uma travesti, negra, de uma favela de São Paulo. Em todos os temas em que ela participa, seu papel não é protagonista, a não ser que ela vá atrás disso. Linn canta protestando e resistindo. Mais do que um artista que vira bandeira de uma causa, ela pegou esse cargo para si desde o começo. E carrega essa bandeira como poucos.
“Bixa Preta” é mais uma das canções de Linn que toca em um assunto que sempre foi terceiro, quarto plano: homossexualidade na comunidade negra e pobre. Bixistranha, loka preta da favela/ quando ela tá passando todos riem da cara dela/ mas, se liga maxo/ presta muita atenção/senta & observa a sua destruição é só o início da música. Quando essa parcela teve voz? Eu não lembro de algo parecido até então. Tanto que estava todo mundo cantando a letra. “A Lenda” é outra música que eleva a figura da travesti. A travesti que é sempre ridicularizada por querer ser ela mesma, que foi abandonada pelo pai, que foi expulsa da igreja. Mas nunca desistiu e hoje segue a linha do “meu corpo, minhas regras”.
Enviadescer. Que neologismo fantástico! Fazer a relação de opressor e oprimido é fundamental para quem assume a liderança de um grupo. Só que o essencial é o fortalecimento desse grupo, o já famoso empoderamento. “Enviadescer” é um brado que incentiva gays, trans e lésbicas a serem verdadeiras. Aliado à batida tradicional de funk — que todo mundo que nasceu dos anos 90 já ouviu/dançou — é impossível ficar parado. Nesse momento, as YRENES voltaram ao palco para dançar “Talento”, junto de Linn e sua backing vocal Jup. e reforçam o discurso de resistência da música. Se achou o gostosão/ Pensou que eu ia engolir/ Ser bicha não é só dar o cu/ É também poder resistir/ Vou te confessar/ Que às vezes nem eu me aguento/ Pra ser tão viado assim/ Precisa ter muito mais
Muito talento hein. Dica: o final do clipe oficial de “Talento” tem relatos de gays e travestis sobre o se descobrir a todo momento.
Mas a grande música de Linn é “Mulher” que teve uma leitura audiovisual da mesma autoria de sua letra. Tem funk, tem pop, tem mpb, tem poesia, tem reflexão sobre o cotidiano de uma travesti, tem reflexão da travesti se identificando como mulher, tem reflexão sobre a força que é preciso ter para ser travesti e tem reflexão sobre o opressor. “Mulher” pode ser comparado como um ode, um ode às travestis. É possível criar um baita debate em cima da letra, e também é possível apenas curtir a música e dançar.
Linn da Quebrada é muito querida com o público, e o sentimento é recíproco. Muitos “eu te amo, Linn” foram ditos, e ela respondia falando: “eu quero amor mesmo. E o mais gostoso disso tudo é saber que a gente tá fazendo isso juntas!”. Linn é uma líder. Ela faz parte da obra Antologia Trans – 30 poetas trans, travestis e não-binários, lançada em março deste ano, e escreveu a orelha do livro, que estava à venda na noite. Ela leu seu texto para o Opinião. Não foi assim que o seu show terminou, mas não tem muito o que dizer depois de ouvir uma artista de tamanha representatividade.
https://soundcloud.com/nonada-3/mc-linn-em-porto-alegre
Em obra inacabada, espelho e martelo transcendental, processo coletivo e vivo, ouço nossas vozes escritas gritando: VIVA!
Não laudo. Que fere, que fura, que multa, que mata, mulata, mutila.
Palavra que salva
Escrita que cura
És cura. Luta. Defende com unhas e dentes suas próprias vidas. Suas próprias dúvidas. Sem dívidas.
Fêmeas ou não, sem firmas e de todas as formas. Inflamam em carne viva. Na pele. No pelo. Nos dedos. O cheiro. No rabo. Do ralo. O gosto. Do medo. No beijo. Saliva nos lábios. Nos grandes, pequenos e médios. E engolem seco o doce do próprio veneno. Lambendo do beiço, até a última gota, o antídoto.
Enfrentam padrões. Desafiando patrões. Arrebentam portões. Corpo a corpo. Rascunho. Rabisco de nós. Desatadas. Escrevem de mãos dadas. Atentas e fortes. Com ou sem cortes. Trava línguas. Abre mentes. Transborda. Atravessa.
A traveca.
Aqui onde eram todas uma, em singularidade múltipla, me vejo, reconheço, me encanto, encontro, me perco, me berro, me borro, me melo, me lavo, me leve, me livre, me love, me luta. E então, percebo, acabo de não morrer.