por Mariana Bampi e Brenda Vidal
Fotos: Carol Ferraz e Ocupação Mirabal
Correntes e grades nas entradas, mas flores coloridas nas janelas. É na Duque de Caxias, em meio ao Centro Histórico de Porto Alegre, que se encontra a Ocupação Mulheres Mirabal: um dos poucos refúgios para mulheres que tentam deixar para trás um passado de violências e abusos em busca de apoio e abrigo.
“O prédio estava fechado há 5 anos”, é o que nos conta Cláudia Domingues de Morais, 43, moradora e coordenadora da ocupação. O edifício histórico é propriedade dos padres salesianos da capital, tendo sido utilizado como um centro de reabilitação para menores egressos da Fase (Fundação de Atendimento Sócio-Educativo). Entretanto, de acordo com as mulheres da Mirabal, o projeto estava parado.
Ao nos levar para conhecer o resto da ocupação e da sua forma de organização, Claudia – acompanhada de Nataniele, outra moradora e militante – vemos um lugar de habitação coletiva modelo e cooperativo. Ela conta: “A gente tem uma rotina onde todo mundo coopera. Tanto as moradoras quanto as acolhidas. Todo mundo pega junto na limpeza, todo mundo pega junto na comida e a gente se reveza.”
As paredes decoradas com as cores, firmes traços e frases se resistência são a prova de que a Ocupação é um espaço de recomeço, onde sonhos e afeto não são mais oprimidos pela violência. A construção de arquitetura eclética, antiga e ornamentada ganhou, graças às suas novas moradoras, um espaço para a cozinha e refeitório coletivos, sala de acolhimento para atender às mulheres vítimas de violência de gênero, dormitórios que dão privacidade às moradoras, oficinas culturais realizadas semanalmente e, acima de tudo, crianças felizes e muitos, mas muitos desenhos coloridos e cheios de vida nas paredes.
Nesta semana, por exemplo, elas realizam uma oficina de fanzine exclusiva para mulheres. Já ocorreram também palestras sobre religiões de Matriz Africana, exibição de filmes feministas, festival de música, sarau, roda de capoeira. Tudo gratuito e aberto aos moradores de Porto Alegre.
Inspiradas pelo movimento de mulheres que ocupou o antigo bandejão da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, a Ocupação Mulheres Mirabal começou no dia 26 de novembro de 2016, conduzida e organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário, filiado ao Partido Comunista Revolucionário, e pelo MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), ambos movimentos nacionais. Neste mês, e com muita luta, feminismo e resistência, a ocupação completa 8 meses.
A violência contra as mulheres não é só física. A morte e a violência corporal compõem a ponta mais trágica do iceberg, mas suas os outros tipos podem ser tão humilhantes e preocupantes quanto. Humilhar, retirar a liberdade de crença, violência psicológica, controlar os métodos de reprodução da parceira — impedir que ela use métodos contraceptivos, por exemplo — e a violência financeira são a outra face dessa exploração estrutural dirigida às mulheres, mas que só explode na mídia e no convívio social quanto atinge o ápice, muitas vezes sem volta.
Para que se tenha uma ideia, os casos de violência contra a mulher no Brasil – que já detinham um número alarmante – cresceu em 2016 segundo a pesquisa do Datafolha divulgada em 8 de março deste ano. Levando em conta apenas as agressões físicas, temos 503 brasileiras violentadas a cada hora. Contabilizando todas as formas de opressão e violência já sofridas, mais de 50% das vítimas se manteve em silêncio.
Dessa forma, podemos entender a importância de um lugar de respeito à dignidade, união e sororidade. Um espaço onde a mulher possa exercer seus direitos de moradia, liberdade e vida sem violência, como uma cidadã plena.
Claudia nos conta que a Ocupação já virou uma espécie de centro de referência para ajudar mulheres vítimas de violência de gênero. “Atendemos qualquer tipo de mulher, desde que seja com esse propósito: não tenha moradia e que esteja numa situação de vulnerabilidade social”, conta. No entanto, segundo as coordenadoras, a Delegacia da Mulher tem encaminhado diversos casos para a Ocupação. “Não fazemos diferenciação. Nosso propósito é defender as mulheres independente de qualquer coisa. Aqui elas encontram a estrutura que precisam até conseguirem organizar as suas vidas de novo”, completa Claudia.
Ao nos dizer qual o tipo mais comum de violência que é atendido na Mirabal, não ficamos surpresas em ouvir, muito menos Claudia ficou surpresa em falar: os casos de agressão física são as ocorrências dominantes. Muitas vezes combinados de inúmeros outros tipos de violência, como a psicológica – ou até mesmo a econômica.
A resposta para o perfil das mulheres acolhidas foi menos esperada: mulheres brancas de classe média. Considerando que o Brasil além de ser, segundo o Mapa da Violência compilado em 2015 pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais (Flacso) a pedido da ONU Mulheres, o 5° país no mundo que mais mata mulheres, aumentou o número de feminicídios entre as mulheres negras. Se em 2003 as vidas negras perdidas eram mais de mil, em 2013 contabilizaram 2.875. Em dez anos, isso significa um crescimento de 54,2% – em contraposição, os casos envolvendo a morte de mulheres brancas caiu 9,8%.
Já sobre o perfil dos agressores, a resposta mostrou que o perigo mora ao lado: parentes, pais, padrastos e companheiros. Dados da Fundação Perseu Abramo, em 2001 apenas 9% dos casos de violência envolviam desconhecidos, enquanto 44% tinham algum tipo de relação íntima com a mulher agredida. Uma década depois essa escala não está muito diferente – tratando de feminicídio, em 43,4% dos crimes, os autores têm ligação emocional com a vítima.
Direito de moradia para quem?
Ventos difíceis sopram nas ocupações de Porto Alegre. O episódio de desocupação da Lanceiros Negros, em 14 de junho, foi um duro golpe aos movimentos sociais, ao direito de moradia e à dignidade humana de famílias que tiveram seus futuros entregues à incerteza. Para Cláudia, o panorama é difícil: “Esse governo machista e burocrático querendo acabar com todas as ocupações. Os movimentos estão lutando para que isso não aconteça, para que não hajam mais famílias na rua”.
Logo após a ação de reintegração de posse, crianças e mulheres da Lanceiros Negros foram acolhidas na Ocupação Mirabal enquanto buscavam um novo espaço. Cláudia conta que, superadas as adaptações, o convívio foi fundamental para estreitar laços entre mulheres que têm a resistência como companheira de rotina. O grupo de mulheres Olga Benário também iniciou o trabalho na Lanceiros, aproximando os movimentos.
No último dia 25, o juiz da 7ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, Oyama Assis Brasil de Moraes, determinou a reintegração de posse da Ocupação Mulheres Mirabal. O processo ainda está correndo e os responsáveis pela defesa da Mirabal estão buscando promover um acordo com o padres salesianos. Em tempos de incertezas e ameaças, é mais uma vez a força de lutar pela defesa das mulheres que toma à frente: “Estamos nos organizando para ficar e resistir junto com as acolhidas. O que a gente não pode, como movimento e como mulher, é deixar que as acolhidas percam o espaço e fiquem com seus filhos nas ruas’’, declarou Cláudia.
Cláudia: quem é essa mulher?
Essa breve história sobre a Ocupação Mirabal não estaria nenhum pouco completa se não houvesse um capítulo dedicado à nossa guia e fonte, Claudia. Definir Claudia Domingues de Moraes como uma simples “fonte” seria ignorar todas as emoções e reflexões que ela nos despertou. Seria optar pelo jornalismo frio que não conta histórias, mas apenas acena em direção aos acontecimentos da semana.
Quando essa mulher negra entrou na sala de acolhimento para conversar conosco, tão esbelta e de riso fácil, não tínhamos nos dado conta de que estávamos ao lado de uma sobrevivente.
Mãe solteira e vinda de uma ocupação localizada no bairro Rubem Berta, dominada pelo tráfico, ela conta que deixou sua casa com os filhos quando soube que seu casal de vizinhos havia sido morto. Foi através de outras mulheres moradoras, que frequentavam a Mirabal, que Claudia soube da ocupação na Duque de Caxias. “Foi uma forma de eu fugir de lá e de eu conseguir ter uma outra vida”.
Ao perguntarmos se ela havia sofrido algum tipo de violência de gênero e esperando que ela falasse sobre a realidade que já conhecíamos, ela responde: “Física, não. Mas o meio onde eu vivia era bem violento. Era uma forma de violência também. A gente fica entre uma violência e outra”. Ser mulher é por muitas vezes optar entre qual violência sofrer. Qual a menos pesada, que não vai nos impedir de levantar a cabeça no dia seguinte.
O filho mais novo de Claudia, de 10 anos, vive na ocupação com a mãe. Para ela, proporcionar que ele viva em meio a tantas mulheres diversas é a chave para que ele saiba de uma vez como respeitar a mulher e enxergá-la não como um objeto, mas como um ser humano equivalente. Lá dentro o filho de Claudia vai aprender a ser homem.
Claudia é mulher. Claudia é mulher negra. Claudia tem 43 anos. E Claudia é muito forte e resiliente. Claudia sobrevive todos os dias.