Foto: divulgação
Luzes apagadas, silêncio na plateia. Cada espectador segura um copinho plástico de vinho na mão, como se estivéssemos à espera de um brinde coletivo. Jesus surge linda e elegante, de mala e trench coat, no meio do teatro Bruno Kiefer, cujos ingressos haviam se esgotado dias antes. Enquanto ela conta como chegou até ali e monta a cenografia inspirada em um altar, sinto que somos todos cúmplices da resistência, nos encontrando em teatros clandestinos, como acontecia antigamente na época da ditadura. A diferença é que agora estamos em pleno 2017, mas o espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu está proibido pelo Judiciário de ser visto não muito longe de Porto Alegre, em Jundiaí (SP).
Em um país verdadeiramente laico e democrático, não haveria motivos para a censura, ou, como a grande mídia gosta de dizer quando se refere a atos de violência contra minorias, “a polêmica”. Em tempos de bancada evangélica no Legislativo e uma parcela conservadora da sociedade civil alavancada por uma direita majoritariamente fascista, o espetáculo ganha ares subversivos.
Primeiramente, porque traz ao palco, com sessões esgotadas e disputadas, mais uma artista travesti no país que mais mata LGBTs no mundo – no Poa em Cena já tivemos recentemente Silvero Pereira também. Carismática e com uma expressão corporal impressionante, Renata Carvalho é uma atriz inteligente, boa no improviso e que interpretou o papel com tanto cuidado que se torna fácil crer no que nos é proposto. Ela conquistou fácil a plateia, que incluía muitos ativistas da causa LGBT em Porto Alegre, ainda mais se considerarmos que se tratava de um monólogo. O texto transita entre momentos em humor com tiradas inteligentes de passagens bíblicas e outros momentos dramáticos, nos quais Renata ganha ainda mais força.
Em segundo lugar, há subversão também na dramaturgia da escocesa trans Jo Clifford, que já tem mais de 80 peças no currículo. O texto ressignifica a liturgia cristã para incluir no centro da narrativa uma mulher trans, tão digna (ou mais, na minha opinião) de ser nomeada Jesus quanto o homem branco de olhos azuis construindo socialmente. Ao contrário do que defenderam os cidadãos de bem que se posicionaram a favor da censura, não há nada de profano no espetáculo. Afinal, não há absolutamente nada nos autos que possa confirmar que o filho de Deus era um homem cis. Nesse sentido, tudo que o texto faz é reafirmar o ensinamento mais bonito e esquecido de Jesus: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, e é nesses momentos que relembram a essência do Cristianismo que a dramaturgia encontra seus maiores momentos de verossimilhança. Por que então tanto ódio dirigido ao espetáculo?
Em tempos de reivindicação do protagonismo renegado histórica e culturalmente aos LGBTs (esta semana foi marcante em Porto Alegre neste sentido), o espetáculo atualiza episódios bíblicos como o de Maria Madalena, o Bom Samaritano e, em uma nova versão, A Filha Pródiga, que conta a história de um personagem que se descobre mulher trans e revela o fato ao pai, mas é colocada para fora de casa. Fiquei pensando em quantas pessoas poderiam ver a peça em Jundiaí (ou até mesmo em Porto Alegre, mas não puderam pagar pelo ingresso), encontrando algum consolo para as violências semelhantes que já sofreram.
Por isso, a cena atualizada da Última Ceia foi tão marcante. Atriz e plateia se uniram em um momento de verdadeira comunhão, com direito a pão e vinho, para celebrarmos juntos o direito dos LGBTs viverem uma vida sem violência, o direito de não serem crucificados. Em outro momento emocionante, Jesus contou as várias formas que as mulheres trans e travestis são crucificadas hoje em dia. O termo é simbólico mas não é menos violento nem doloroso que o literal, apenas revela uma verdade que precisa ser contada e recontada – e não há nada mais potente que a arte para cumprir esse papel.
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Não é exagero dizer que essa foi a edição mais política da história recente do Festival. Tivemos muitas peças assumidamente engajadas, não por coincidência escritas, dirigidas, produzidas e estreladas por mulheres negras e brancas, cis e trans. Só para citar alguns espetáculos: Acuados (RS), dirigido e coreografado por Eva Schul, lembrou os 10 anos da Lei Maria da Penha; Looping: Bahia Overdub (BA) se apresenta como um espetáculo de “festa, dança e política”; Leite Derramado (SP) parte do texto homônimo de Chico Buarque repensa a história do Brasil.
Além de Jesus, outra religiosa ganhou tratamento mais humanizado este ano no Porto Alegre em Cena. O Testamento de Maria (SP), monólogo estrelado por Denise Weinberg, traz uma Maria exilada em uma caverna após a crucificação de Jesus, onde foi interrogada. Como disse a atriz, ao trazer um olhar humanizado sobre essa mulher, o espetáculo possibilita reflexões não apenas sobre a maternidade mas também sobre maneiras de se rebelar contra ao sistema.
Destaque também para Guerrilheiras – Ou para a terra não há desaparecidos (SP), um verdadeiro manifesto pela manutenção da memória da Ditadura, com foco nas mulheres que lutaram e morreram no Araguaia. Com dramaturgia de Grace Passô e idealizada por Gabriela Carneiro da Cunha, a peça parte desse episódio, de forma que a união entre atuações e projeções nos levam à região do Pará para relembrar de forma angustiante as vidas daquelas mulheres que foram esquecidas. Além de contar a dor das guerrilheiras e das mães que desapareceram, o espetáculo traz também a visão dos moradores do Araguaia, após uma pesquisa de campo intensa realizada pelo grupo. Como disse Gabriela, a guerrilha reverbera atualmente nos conflitos por território entre fazendeiros e comunidades tradicionais/trabalhadores rurais.
Com esse mosaico de obras políticas, o Porto Alegre em Cena acompanha a tendência mundial da busca por mais diversidade de narrativas na arte – diferentemente do Festival de Inverno, também apoiado pela prefeitura, que chegou a desrespeitar os direitos humanos em uma palestra. Pode-se fazer um paralelo entre o Poa em Cena e a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Ambos surpreenderam na diversidade de artistas convidados e nos temas escolhidos como centro dos debates, mas ambos continuam praticamente inacessíveis para o grande público.
Neste ano, os ingressos do Porto Alegre em Cena mantiveram o mesmo preço da última edição (R$ 80) e nada mudou na tradição que o público portoalegrense tem de lotar os teatros durante o festival. De fato, o festival já se consolidou há anos como um dos principais do Brasil no campo das artes cênicas, recebendo recursos do orçamento anual da Prefeitura (cerca de R$500 mil nos últimos anos) e também patrocínios. Não podemos negar que a bilheteria é fundamental na economia da cultura principalmente em tempos de crise, mas cabe o questionamento já levantado pela Mel Duarte sobre a Flip: quem tem direito a pensar a falta de representatividade nos espaços privilegiados de arte? Quem tem acesso à arte que subverte o status quo, que vai em busca da transformação social? Quem tem acesso à arte para além do entretenimento? Ao poder público e aos patrocinadores do festival – grandes empresas como o Zaffari e a Panvel – interessa que essas reflexões cheguem à periferia?
É uma pena, portanto, que uma edição tão plural, instigante e questionadora como essa continue a ser frequentada por um público restrito. É claro que, assim como nos anos anteriores, tivemos sessões gratuitas na chamada Sessão Maldita, com destaque para o grupo Pretagô e o show da Valéria Houston. O problema é que essas sessões ocorreram à meia-noite, dificultando o acesso dos trabalhadores que levantam cedo e de quem mora longe do centro. Há um esforço do festival com o bonito projeto Inclusão em Cena, mas, no geral, faltou descentralização, o que infelizmente não é nada de novo no front na gestão de Marchezan e nem nas anteriores. Fica o desejo para que o festival aprofunde essa proposta irreversível e fundamental de pensar a representatividade na arte e a amplie até chegar na plateia.