Fotos: Otávio Fortes/ CRL 2017
– Peço licença para entrar no território de vocês. Eu venho questionar esse olhar quadrado que o ocidente desenvolveu e que exclui olhares circulares.
Foi assim que Daniel Munduruku deu início à sua fala histórica na 63ª Feira do Livro de Porto Alegre, trazendo a oralidade e a ancestralidade de seu povo em uma hora de conversa. Mediada pela professor de história José Rivair de Macedo, a palestra teve também a presença de Angélica Kaingang, liderança jovem de sua comunidade e graduada em Serviço Social pela Ufrgs. Um representante da etnia Guarani também foi convidado, mas não conseguiu comparecer.
Doutor em Educação pela USP, Pós-Doutor em Literatura pela Universidade de São Carlos e autor de 52 livros, Daniel iniciou sua fala desconstruindo o imaginário que a média da população brasileira tem em relação à palavra “índio” e a sua carga simbólica.
– Quando leem minha biografia, dizem que não sou mais índio, que já sou “civilizado”. Eu não sou índio e não existem índios no Brasil. Essa palavra não diz o que eu sou, diz o que as pessoas acham que eu sou. Essa palavra não revela minha identidade, revela a imagem que as pessoas têm e que muitas vezes é negativa.
Segundo o escritor, há dois conceitos no imaginário da sociedade brasileira intrínsecos a esta palavra: o olhar romântico, do “índio” que vive no meio do mato, e o aspecto ideológico que considera que “índios são preguiçosos e atrasam o progresso”. Esse imaginário, fruto do pensamento ocidental e colonizador, criou um achatamento da riqueza cultural brasileira, explicou Daniel.
– Quando a gente chama alguém de índio, não ofende só uma pessoa, ofende culturas que existem há milhares de anos. Esse olhar linear empobrece nossa experiência de humanidade. A gente defende um sistema de vida que tem dado certo há 3 mil anos – afirmou.
Um dos 307 povos indígenas do país, o povo Munduruku vive no Pará, Amazonas e Mato Grosso. Segundo Daniel, há cerca de 15 mil pessoas da etnia Munduruku no Brasil.
– No dia 19 de abril, a gente comemora um equívoco, porque se esconde a diversidade de povos que existem no Brasil. Cada povo cria seu modo de estar no mundo a partir da cultura, que é alimentada pela língua que ele fala. E cada povo tem suas tradições, sua crença, cultura, política e economia. Nós aprendemos que só existe a língua portuguesa por aqui né. Mas no Brasil existem 307 línguas muito antigas e diferentes entre si. E a língua é uma leitura de mundo. Quando a gente generaliza e diz que “o índio chama casa de oca”, imediatamente a gente está esquecendo que oca é apenas um jeito de falar. E essas línguas são tão diferentes entre si quanto o português é diferente do chinês. Se um Kaingang fala a língua dele, eu não sei para onde vai, porque é de um tronco linguístico diferente. Aí vocês podem entender porque o povo tupi (que é o meu caso, o povo Munduruku é tupi) se organiza de um jeito e porque o povo Kaingang, que é do tronco Macro-Je, se organiza de outro jeito.
O autor também criticou o uso da palavra “tribo” para se referir às aldeias e etnias, já que ela significa apenas um pedaço de um povo. Já a palavra “índio” não tem relação alguma com o verdadeiro significado dos povos originários do Brasil. Ao ser perguntado sobre a maneira mais adequada de tratamento, Daniel defendeu o uso da palavra indígena, que significa “nativo”, e pediu também que sejam consideradas as etnias.
Crítico dos modelos neoliberal e neo-desenvolvimentista de governança, Daniel abordou a relação entre os indígenas, os brancos e a natureza.
– É claro que nós [indígenas] temos muitas coisas em comum, porque nós somos parte da natureza, nós somos a natureza. A única diferença é que a sociedade “civilizada” trouxe o esquecimento para as pessoas – disse.
Daniel ressaltou o papel do agronegócio como uma ameaça ao meio ambiente e às comunidades tradicionais.
– Não tem importância nenhuma se destruir a natureza, se construir hidrelétrica na Amazônia, se colocar gado para acabar com a floresta, se derrubar tudo para o agronegócio, não tem problema, porque afinal, agro é pop, é legal ser agro – ironizou. – O Brasil é como um adolescente que não se aceita. É preciso fazer um resgate da nossa história e saber que somos um povo formado pelos negros, indígenas e europeus. Caso contrário, vamos entregar nossas riquezas para fora, como estamos fazendo com nosso minério.
Segundo ele, esse amadurecimento social contribuiria não só para os povos indígenas, mas para todo o país.
– Nós, indígenas, não temos esse conceito de propriedade privada, somos parte da natureza e não nos colocamos acima dos outros seres vivos. Quando o indígena luta pela terra, está lutando por um conjunto de vidas. Talvez essa mensagem de pertencimento seja a grande contribuição dos indígenas.
Representando a etnia Kaingang, Angélica deu seu depoimento enquanto Kaingang e moradora do Rio grande do Sul.
– A gente entende que nossos territórios indígenas estão com a gente também quando estamos na cidade, na universidade. nossos conhecimentos ancestrais e tradicionais são tão valorosos quanto os não indígenas. Já ouvi muitas vezes que “lugar de índio” é no mato. Mas que mato está sobrando pra nós? – questionou.
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Daniel Munduruku passou dois dias em Porto Alegre. Na tarde anterior, ele conversou com alunos do ensino básico e fundamental de escolas da região metropolitana. Foi um encontro emocionante, já que os alunos, incluindo uma escola Mbyá-Guarani de Viamão, haviam lido seus livros e o receberam com uma ensurdecedora salva de palmas. Aproveitei para conversar rapidamente com o escritor um pouco antes de ele subir ao palco. Daniel respondeu às minhas perguntas sobre o crescente protagonismo dos povos indígenas na arte, políticas públicas e ancestralidade. Confira abaixo:
Nonada – Você sempre pensou criticamente sobre o “índio” e em tudo que essa palavra carrega. Você acha que a distância entre esse “índio” do imaginário e as culturas dos povos indígenas tem diminuído?
Daniel – Eu acho que sim. Não é uma coisa muito visível ainda, porque a gente rema contra maré. A gente procura falar para as pessoas o que a gente pensa sobre a gente mesmo, mas as pessoas normalmente ouvem as outras pessoas falando da gente. Num universo de 500 anos da história do Brasil, um universo em que houve um certo massacre de ideias, o povo brasileiro se acostumou a pensar de uma determinada forma que não consegue se descolar desse pensamento. Então, o que normalmente acontece, ao meu ver, é que embora a gente faça o esforço, use a literatura e também a internet, as redes sociais e tudo mais, ainda assim somos relativamente poucos. Essa voz é sufocada pelos meios de comunicação de massa, por uma educação colonizadora que a gente ainda tem. De qualquer maneira, existem alguns buracos nesses discursos de colonização, que a gente consegue atravessar. Eu acho que esses furos tem feito bastante diferença.
Nonada – Como você avalia as políticas públicas nesse processo?
Daniel – Vivemos num país onde o Estado é muito presente. Só que os nossos estadistas, se nós tivéssemos algum, obviamente, nossos políticos são formados com base nesse pensamento economicista que nós temos, esse pensamento de desenvolvimento, de processo, de agronegócio, de exploração do petróleo, dos minérios e tudo mais. Então essas pessoas não estão preocupadas em desenvolver políticas públicas que sejam dignas das populações indígenas ou menos favorecidas de uma maneira geral. A esperança era de que nós tivéssemos um Estado um pouco mais consciente da identidade brasileira. Se nós tivéssemos uma sociedade mais consciente da sua identidade, nós certamente teríamos espaço para uma educação digna, uma saúde digna, a demarcação dos territórios.
Para se pensar o indígena, não se pode pensar em simplesmente como um cidadão brasileiro, tem que se pensar ele dentro do contexto territorial onde eles vivem, portanto a demarcação do território é fundamental para que ele sobreviva enquanto cultura. Mas nós temos infelizmente um estado que é muito permissivo de um lado e que é muito mal formado no entendimento do que é uma cultura indígena. Portanto não tenho esperança nenhuma de que as políticas públicas vão resolver os nossos problemas.
Nonada – Os indígenas têm ocupado espaços e assumido o protagonismo tanto no jornalismo quanto na arte. O que possibilitou esse avanço?
Daniel – De um determinado momento para cá, nos últimos 15 anos, houve um avanço muito grande, sobretudo no campo da cultura. se nós tivemos um estado que desenvolveu políticas públicas interessantes, houve de fato uma mudança, os indígenas foram para as universidades, essas políticas de afirmação de uma maneira geral, tivemos políticas culturais muito fortes de maneira específica também. Houve uma valorização das culturas indígenas, e isso fez com que surgisse um outro campo de atuação para os indígenas, tanto na área das artes – na literatura, cinema, teatro, na comunicação como você falou – no uso das redes sociais. Houve uma abertura através de editais e incentivos, para que essas representações fossem percebidas como um instrumento pelos indígenas. Então eu acho que os indígenas capturaram a essência de uma política cultural que possibilitou que eles se percebessem capazes de usar esses instrumentos para difundir suas ideias. Desde o governo da Dilma, a coisa vem diminuindo, mas houve uma herança que foi deixada pelo governo do lula.
Nonada – A literatura indianista de autores como José de Alencar tem sido criticada de forma pontual. Tu acha que essa revisão pode chegar sistematicamente às universidades e escolas?
Daniel – Eu acho que tem que cear. Se a universidade quer ser universidade, ela não pode acreditar no cânone como uma coisa estabelecida… é claro, o José de Alencar fez parte de uma escola literária. Isso não se pode negar, ele está lá, mas foi importante na época dele. a universidade não pode achar que o que se produz hoje com relação à questão indígena tem que estar baseado na indianidade que o José de Alencar propagava, que é uma indianidade liada ao século XVI, a uma visão romântica. Assim como não se pode achar que Mário de Andrade, por ter andado em sua terra lá, Roraima [se referindo ao meu estado natal, que citei quando me apresentei ao Daniel], por ter pego histórias de Macunaíma lá de Roraima, ele determinou o que é ser brasileiro. Não. Tem toda uma caminhada que está sendo feita pelos próprios indígenas e isso precisa.
A universidade precisa olhar pra isso e isso está acontecendo. Mesmo aqui no Rio grande do Sul existe um grupo de pesquisa que está fazendo um estudo sobre literatura indígena e tem mostrado bons resultados. O cânone estabelece uma frieza, coloca tudo em um quadrado. E a literatura indígena precisa ser pensada como algo mais dinâmico, é uma literatura muito específica, comprometida, é uma literatura que alimenta um outro imaginário que não aquele que a gente tem.
Nonada – De que forma a ancestralidade das comunidades tradicionais pode ser mais valorizada pelos brancos?
Daniel – Olha, o branco precisa se convencer que ele é fruto de uma ancestralidade. Todo brasileiro traz consigo fagulhas, mínimas que sejam, de ancestralidade, seja européia, indígena ou africana. A ancestralidade está nele. E o brasileiro costuma negar isso, ele, às vezes, supervalorizada a ancestralidade europeia e desvaloriza as outras ancestralidades das quais nós somos formados. Costumo dizer que o Brasil, quando se olha no espelho – e o espelho sempre reflete o passado né, atras da gente -, ele não gosta do que vê, porque ele enxerga o nero e o indígena lá atrás. Ele não gosta disso, ele quer ver o pouquinho que tem do europeu. Então o brasileiro nunca está aqui, está sempre querendo ser alguém que ele não é e que nunca vai ser, porque a vocação do Brasil é ser ele mesmo. Mas, para isso, ele tem que se aceitar. O Brasil não se aceita, que nem um adolescente que está crescendo e não gosta das espinhas na cara e não percebe que isso pode ser um processo natural que existe por dentro dele, como parte do crescimento. Então o brasileiro precisa aceitar essa herança genética, porque senão ele não se transforma naquilo que ele é.