por Eliane Marques*
Erik Killmonger deseja o vibranium e toda a estrutura de Wakanda para o fim de empreender sua luta em favor dos oprimidos fora-muros desse mundo fictício onde não existem negros.
Ele padece da mágoa pelo duplo abandono ancestre.
Seu pai, um wakandaniano que realizava missão por aqui fora assassinado por patrícios, pois nutria o sonho – agora carregado pelo filho nas tatuagens do dorso – da libertação dos negros do jugo da opressão. Contudo, seus meios não eram autorizados pelo então rei T’Chaka.
Depois do fratricídio, Killmonger, ainda um menino, permanece extraviado nos guetos de cá – onde o devir é cada vez mais negro – já que os emissários reais partem para a terra protegida e o “esquecem” (tipo: dane-se esse guri que temos mais o que fazer, ou ele que fique com a mãe).
Mas se sofre pelo abandono, não se move e nem se paralisa por ele, pelo contrário, Killmonger é movido pela ideia de futuro. A causa de sua revolta não vem do passado e sim do futuro: o vibranium possibilitará um devir melhor para todos e não apenas aos wakandanianos. Para Killmonger, esse presentante da justiça restaurativa, a causa vem do futuro.
Assim como está bastante próximo do pai quanto aos ideais de uma vida melhor, Killmonger está bastante próximo de nós: atirado num túnel onde não mais que apátrida sem refúgio, requer da mãe (Wakanda), impotente e quase omissa, um ato, requer dela que assuma uma posição de defesa dos “seus” diante de tanta barbárie inconteste (Se me perguntarem pelo pai, direi ele está morto desde o início).
Há um parentesco em linha reta entre Killmonger e Malcom X. Afinal de contas, quem mesmo é o violento?
Há também uma identidade primordial entre Killmonger e Ogum, para além do caráter guerreiro de ambos: no mito, o orixá forjou da rocha um instrumento de ferro que a rompeu e permitiu a aproximação entre humanos e divindades. O orixá também nos ensejou melhores condições de vida material ao promover o compartilhamento da tecnologia recém forjada.
Erik Killmonder forja um modo de romper a fronteira que o impediria de chegar a Wakanda, pois quer que a tecnologia do vibranium sirva para cortar os grilhões de todos os seus irmãos negros, ao mesmo tempo que, por meio dos recursos tecnológicos propiciados pelo minério, pretende romper a fronteira entre Wakanda e os territórios onde se dá essa opressão.
Todavia, Wakanda lhe diz não, ou não é bem assim. A mudança de posição política implicaria sua exposição ao risco da instituição de uma sociedade hierarquizada pelo critério que hoje se denomina de raça social. A terra até então protegida estaria exposta à ação do colonizador e às suas máquinas de fazer negros.
Quando falo em máquinas de fabricar negros, refiro-me ao discurso que constitui o outro como inferior, para o fim de mais facilmente explorar sua força de trabalho, para o fim de melhor se apropriar das riquezas de sua gente, de sua cultura e de seu território (o verdadeiro vibranium), e, depois, se afirmar rico e ele, que construiu a riqueza, negro e miserável.
Permito-me, no entanto, parodiar Aimé Césaire[1], pois, eles podem matar na Indochina, torturar em Madagáscar, prender no Brasil e na África do Sul, seviciar nas Antilhas …, contudo, perderam a vantagem que detinham sobre nós – Sabemos agora que eles mentem.
Porém muitos de nós somos wakandanianos tradicionais – para evitarmos a contaminação e o negativo que a palavra negro expressa, melhor negarmos essa condição ou fazermos de conta que o assunto não é conosco e que não temos nada a ver com isso – os negros que se virem, de preferência nas favelas, com a polícia pacificadora e as forças do exército derrubando as portas, nas vilas “cruzeiro” e seu espaço tomado pelas metralhadoras do tráfico, nos guetos, nos presídios ou nas soleiras das portas tomando bala; enquanto isso ficaremos em Wakanda e, quando muito, contaremos com a intervenção de alguma resolução da ONU.
Tá. Nakia representa um furo no sistema. Todavia um furo não é suficiente, precisa-se de uma peneira, o que Killmonger – o violento, a ovelha negra da família – quer forjar.
Vai e vai e a ovelha negra vence a pantera numa batalha justa:
Ogum segue
Em ângulos de combate, posicionado a uma investida renovada
Cabeças de machado chamejam a seus pés[2].
O trono de forma legítima é seu. E, como chefe das forças armadas, o Killmonger ogunístico pretende empreender batalhas pela libertação ou pela vingança, tanto faz.
Mas a legitimidade recém conquistada é objeto de impugnação por sua natureza bélica (como Ogum, Killmonger matará também sua gente) e pelo desrespeito demonstrado pelo novo rei às tradições de Wakanda – precisava mandar queimar a Erva Coração?
Depois de tudo que sofreu (e também fez sofrer), ainda era demandado dele – o fazedor de mortes – que falasse baixo, que não gritasse, que não usasse roupas sujas de sangue. Aparece aqui um conflito entre legitimidade originária e legitimidade superveniente dada pelo respeito aos estatutos jurídicos wakandanianos. No conflito entre uma e outra, a essa última se conferiu maior peso, especialmente por quem detinha parte da força (as Dora Milaje e a chefa Okoye).
Erik Killmonger é então derrotado. Mas sua luta nunca foi contra os seus, nunca foi contra Wakanda, nunca foi pelo vibranium por si só, embora assim possa parecer; pois, mais do que qualquer um de lá, daquelas belas terras, ele sabia o que implica a expressão lugar de negro, afinal, viveu aqui, abandonado no gueto, nem filho de rei era.
As frases que diz ao ato final de Pantera Negra, quando de sua morte, transparecem a relação de fibra que mantinha com o seu povo – vivos, mortos ou nãos nascidos. Ele pede a T’Challa que o atire nas águas e o deixe morrer, assim como fizeram centenas de seus ancestrais sufocados nos porões dos navios negreiros.
Se não lhe foi permitido viver, que, pelo menos, se o permita morrer – estávamos mortos e podíamos respirar[3] – talvez Killmonger se transforme num orixá, como Ogum, embora esse tenha preferido as entranhas da terra ao azulejado das águas.
Killmonger poderia ter sido uma mulher, melhor se tivesse sido uma mulher, como Iansã, apesar de Nakia, Okoye e as Dora Milaje, da rainha Ramonda e de Shuri.
Porém, não se pode querer tudo de um filme.
[1] Discurso sobre o colonialismo.
[2] Idanre e outros poemas, de Wole Soyinka (tradução de Adriano Migliavacca).
[3] Recuerdos de Francia. Paul Celan. Obras Completas.
*Eliane Marques é poeta e escritora. Publicou, entre outros, Relicário e “e se alguém o pano”, Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Poema em 2016.