Reportagem: João Pedro Godoi e Thaís Seganfredo
Foto de capa: Luciano Lanes/PMPA
Iara Rosa não vai ver a imponente bandeira amarela que carregou por tantos anos brilhar no sambódromo este ano. Moradora de Viamão, a ex-porta-bandeira de 75 anos de idade tem 47 anos de envolvimento com o Carnaval de Porto Alegre. Ela, que nunca ganhou nota diferente do aguardado 10 nos desfiles, aguardava ansiosa o retorno da Vila Isabel, já que em 2017 não pôde desfilar devido à interdição do Complexo Cultural Porto Seco pela Justiça na primeira noite do Carnaval.
Um ano depois, estava tudo pronto para o grande retorno, inclusive a fantasia que ela fez com as mesmas mãos com as quais carregou por 17 anos a bandeira e que usaria este ano como destaque fixo na escola. O grande momento, no entanto, teve que ser adiado – e não se sabe para quando. Em 2018, não vai ter Carnaval.
Desde que o prefeito Nelson Marchezan Jr. assumiu a gestão em 2017, o evento de mais de oito décadas esteve ameaçado de não acontecer. Alegando a falta de recursos, a prefeitura decidiu que não apoiaria financeiramente nenhuma “festa popular”, como definiu no documento que vetou os recursos. Com a interrupção histórica de investimento das políticas públicas e dificuldades para atrair capital de patrocinadores, os desfiles marcados para 24 e 25 de março de 2018 foram cancelados no final de fevereiro e substituídos por “desfiles performáticos”, sem competição.
Na visão de Iara, nunca houve tamanho desprezo pelo Carnaval. E poucas pessoas podem falar sobre esse assunto com tanta propriedade, já que são quase cinco décadas dedicadas à maior festa popular do país. “As autoridades públicas devem ter boa vontade com o carnaval. As escolas pintam em cores e alas a história da tua vida. Carnaval é cultura”, lamenta.
Apesar do cancelamento oficial, a realização dos desfiles performáticos organizados pela Liga Independente das Escolas de Samba de Porto Alegre (Liespa) ocorreriam no dia 24 de março, na orla do lago Guaíba, o que, de certa forma, lembraria a origem do Carnaval na cidade, quando diversos blocos saíam espontaneamente pelas ruas das áreas de moradia da população negra. A poucos dias do evento, porém, uma previsão de temporal levou a Liespa a cancelar de vez as atividades, dessa vez sem data para o retorno.
Iara lembra de apenas uma noite tão triste quanto essa nestes longos anos de relação estável que tem com a festa. No final dos anos 1980, ela estava em casa se preparando para sair. Ligou para um amigo, queria saber quem iria buscá-la para ir até os desfiles e ele a garantiu que iria. A porta-bandeira ficou esperando por algumas horas até se dar conta de que ninguém iria. Naquela noite, Iara teve que ficar em casa contra a sua vontade acompanhada de dois casais de passistas e quatro baianas. “Como eu chorei vendo o desfile pela TV”, comenta.
O ano de 2018 foi o único até o momento, conforme a historiografia, em que a tradicional festa não aconteceu na cidade. O Porto Seco, que costuma receber até 9 mil pessoas nas arquibancadas, ficou vazio, somando-se aos demais equipamentos culturais administrados pela prefeitura que encontram-se completamente sem atividades, como a Usina do Gasômetro e o Teatro de Câmara Túlio Piva.
Na mesma noite de sábado, enquanto a avenida Edvaldo Pereira Paiva, onde se realizaria o desfile, estava deserta, o samba rolava na quadra do Quilombo do Fidélix, e a batucada do bloco Areal do Futuro se sobressaía em meio à chuva que caía melancólica e insistentemente por algumas horas. Era o encerramento de uma das noites da II Assembleia dos Povos, congresso que reuniu guaranis, kaingangs e quilombolas.
Um dos blocos mais tradicionais da cidade, o Areal do Futuro é realizado pelos moradores do Areal da Baronesa, quilombo devidamente demarcado em 2015 e também um dos bastiões da história do povo negro em Porto Alegre. O Areal é também fruto de uma das maiores críticas de quem brinca a festa popular em Porto Alegre à gestão do carnaval: a transferência dos desfiles da rua para o Porto Seco.
O grupo era escola de samba na década de 1990, mas decidiu virar bloco quando a prefeitura acabou com os tradicionais desfiles que aconteciam na região central de Porto Alegre, no início dos anos 2000, e transferiu as escolas para o espaço na periferia da cidade. Os brincantes se recusaram a sair de seu território, resistindo a mais um dos muitos casos em que a prefeitura removeu a população negra do centro para as áreas menos acessíveis e com menos recursos. “Criamos o Areal para incentivar as crianças sobre a história da comunidade e hoje mais de 100 crianças participam do bloco, que tem oficinas gratuitas”, diz Daniel Rouvel, um dos fundadores.
Festa da raça, de tradição
O Carnaval no Brasil sempre foi uma festa de resistência. Desde que as primeiras manifestações surgiram no país (em Porto Alegre foi em 1837, quando os jogos de entrudo foram proibidos pela prefeitura, segundo o pesquisador Flávio Krawczyk), o caráter popular da festa protagonizada pela população negra da cidade vem sendo mantido, apesar da crescente tentativa de apropriação e institucionalização do Carnaval. Com base nos historiadores Helena Cattani, Flávio Krawczyk e Heitor Garcia, apresentamos um panorama geral da história do Carnaval porto-alegrense.
No final do século XIX, enquanto a elite branca saía em blocos pela cidade e os jogos de entrudo – uma série de brincadeiras populares – continuavam proibidos, surgia, em 1872, a Sociedade Beneficente e Cultural (S.B.C.) Floresta Aurora, primeira associação negra da cidade, segundo Garcia. Poucos anos mais tarde, os associados realizaram o primeiro desfile, dando início à tradição que se concentraria em bairros como a Cidade Baixa, Mont’Serrat e Rio Branco, áreas em que residia a população predominantemente negra. Com o passar das décadas, cada vez mais foliões organizaram desfiles, que passaram a ser patrocinados por jornais e pelo comércio a partir dos anos 1930. No Estado Novo de Vargas, surgiram as primeiras regras que as entidades deveriam seguir se quisessem continuar desfilando, como a obrigatoriedade de caráter didático e patriótico, por exemplo.
Nessa época, Iara ainda sonhava em participar da festa de rua. Então moradora do Santana, em Porto Alegre, um dos bairros com mais tradição no Carnaval, a jovem ficava olhando por cima do portão de casa a multidão desfilando. Ela não participava por causa de sua mãe, que não achava aquilo adequado para suas filhas. Foi somente mais tarde, quando foi morar na Santa Isabel, em Viamão, que ela encontrou o destino que a aguardava desde sempre. “Eu me libertei das amarras de mamãe e finalmente pude desfilar no Carnaval”, diz, relembrando o momento em que foi convidada pela Bambas da Orgia. A porta-bandeira foi desde o início peça chave na engrenagem da escola. Iara começou como secretária e passou por vários cargos de chefia, tesouraria, vice-presidência, presidência do conselho e chegou a ser cogitada para assumir a presidência da escola, mas não quis disputar o cargo.
As escolas de samba como as conhecemos em Porto Alegre surgiriam a partir dos anos 1960. Com a crescente adesão do público aos coretos, locais por onde passavam os desfiles, – e há registro de 10 mil pessoas na década de 1970 -, a relação entre foliões, prefeitura e iniciativa privada se estreitou. Visualizando o potencial lucrativo do evento, a dualidade público-privada passou a ditar as condições para o Carnaval acontecer, em um processo que se inspirou no modelo carioca, tanto na estética dos desfiles – sob a liderança da Academia de Samba Praiana, que desfilou pela primeira vez em 1961 nos moldes de uma escola de samba – quanto na logística.
Em 1962, a prefeitura assumiu de vez o controle da festa popular, quando o prefeito Thompson Flores criou o Conselho Municipal de Turismo (COMTUR), que passou a organizar os desfiles. A historiadora Helena Cattani, em sua dissertação G.R.E.S. Porto Alegre: o processo de cariocalização do carnaval de Porto Alegre (1962-1973), conta que nesse ano, passou-se a se falar em oficialização do Carnaval, segundo registros do jornal Correio do Povo.
“Esta primeira parte do estudo pode ser considerada como a análise de um carnaval de rua em crise. (…) Esta oficialização seria uma resposta à reivindicação das entidades carnavalescas junto ao poder público municipal, o prefeito Loureiro da Silva. Paralelamente, existia o objetivo da prefeitura municipal em centralizar os desfiles, criando assim um local oficial e único onde as Escolas de Samba apresentar-se-iam. Então havia uma ideia de acabar com os diferentes coretos espalhados pela cidade, concentrando em apenas o desfile oficial. Segundo o prefeito, isso seria benéfico para a cidade em relação aos gastos com os festejos”, avalia a historiadora.
Já nesta época é possível visualizar uma relação entre Carnaval e poder público que se mantém até hoje. “A prefeitura não vai despender com isso [oficialização] grandes somas, porque sou de opinião de que os recursos devem ser canalizados para outros problemas de maior urgência”, afirmou o prefeito ao jornal Correio do Povo em 1962, conforme a pesquisa de Cattani.
Esta lógica permaneceu até 1998, segundo a pesquisadora. Neste ano, o prefeito Raul Pont transferiu a coordenação do Carnaval para o setor de Manifestações Populares da Prefeitura Municipal. Aos poucos, entidades carnavalescas começaram a assumir a organização dos desfiles, à medida que a prefeitura passava do modelo de controle por meio da COMTUR, para o papel ativo de incentivar a autonomia dos fazedores de cultura nos anos 2000, a exemplo do que acontecia no restante do país em termos de políticas culturais no geral.
É da época em que o Carnaval ainda ocorria nas ruas centrais da cidade a memória mais feliz de Iara sobre a festa, em um desfile na avenida Perimetral. Naquele ano, faltou luz bem na hora que a Vila Isabel estava desfilando na avenida. O então mestre de bateria, Valdir Macaco, não deixou que a escola parasse e conduziu a bateria no breu da noite. As alas acompanharam o mestre e seguiram desfilando. Iara conta que alguém ligou os faróis de um caminhão na sua direção e o público acendeu isqueiros e lanternas. “Foi o desfile mais bonito de que eu me lembro, foi emocionante. O Carnaval é como um filho que eu cuido e me preocupo, é por isso que eu o defendo com unhas e dentes”, diz.
Carnaval representava 0,20% do orçamento do município
Investigamos os dados relativos ao Carnaval na Lei Orçamentário Anual (LOA) de 2006 a 2017. Além dos valores destinados à realização do Carnaval e ao Porto Seco – um equipamento cultural do Município e que, portanto é de responsabilidade da prefeitura manter e atribuir função social –, encontramos recursos destinados a iniciativas interessantes adjacentes ao evento principal.
Uma delas é o Esporte Dá Samba, programa assistencial da Secretaria Municipal de Esportes, Recreação e Lazer, que desenvolveu de 2014 a 2016 uma escola de samba mirim com crianças de comunidades da cidade. Conforme a assessoria de imprensa da Secretaria, o programa foi interrompido com a mudança de gestão. Há também registro a respeito da Universidade Popular do Carnaval, iniciativa que pretendia realizar atividades formativas no Porto Seco, capacitando profissionais para as diversas funções relativas à festa. Apesar de estar presente na LOA de 2006 a 2014, a ideia nunca foi executada.
O Observatório da Cultura de Porto Alegre, órgão ligado à prefeitura, realizou outro estudo, comparando os valores da LOA com os dados presentes no Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), que mostram quanto de fato foi executado para cada ação. Embora o Observatório tenha preferido realizar uma análise comparativa a partir dos valores absolutos (confira aqui a conclusão), optamos por observar no estudo do Observatório os dados relativos, ou seja, o percentual investido no Carnaval em relação aos montantes totais dos orçamentos da prefeitura e da Secretaria Municipal de Cultura que foram de fato empenhados segundo o TCE-RS.
A partir desse viés, é possível notar uma crescente negligência com os investimentos no Carnaval, que representaram, em média, 0,20% do total orçamentário executado anualmente para as despesas do município. Notamos que, se em 2006 o valor correspondia a 0,34%, oscilou, para depois diminuir progressivamente até representar 0,10% do total da prefeitura em 2016 e 0% em 2017.
Com relação ao total executado em todas as ações da Secretaria Municipal de Cultura, 2006 foi o ano em que mais se valorizou o Carnaval, quando a festa representou 17,4% do total empenhado, valor que chegou a 8,2% em 2016 e 0% em 2017.
Respostas da prefeitura
Em entrevista por telefone, o secretário-adjunto de cultura, Leonardo Maricato, se pronunciou sobre a não realização do Carnaval em 2018. “Não é mistério pra ninguém a situação financeira da prefeitura. Nós temos entendimento da importância do Carnaval e da cultura popular. O Carnaval é uma soma de muitas culturas num espetáculo só, com a música, a dança e tem o resgate cultural da história que é contada na avenida. É um prejuízo muito grande a não realização do Carnaval. O problema é a falta de recursos, nós estamos atrasando folha de pagamento.”
O secretário também afirmou que há previsão de a prefeitura voltar a investir no Carnaval assim que a situação financeira for resolvida. “Há um planejamento para que isso retorne e isso inclui alguns projetos encaminhados na Câmara de Vereadores para melhorar a arrecadação.” Sobre a gestão e a manutenção do sambódromo, o secretário afirmou que “o Porto Seco está sendo recuperado, a fiação elétrica estava muito esfacelada, eles arrancaram todos os cabos do solo, o sistema estava muito degradado, estava ocorrendo consumo de entorpecentes e atos sexuais. Nós fizemos uma limpeza do local e a recuperação da estrutura física da casa de força. Esse processo está em andamento para que se entregue o Porto Seco em condições para que se realize o Carnaval e também para que seja utilizado pela comunidade o ano inteiro para outros eventos.”
A reportagem também entrou em contato com a Liespa, mas até o momento da publicação, não obteve resposta.