por Fernanda Bastos*
Em sua vinda a Porto Alegre, em novembro do ano passado, Conceição Evaristo pintou, a uma plateia lotada ao lado do Margs, a seguinte cena: uma senhora precisa de um vestido para uma ocasião especial e pede que a empregada doméstica o passe; esta por sua vez acaba por queimá-lo com o ferro em um infeliz acidente. Argumentou Conceição Evaristo que, diante dessa situação, muitos elegeriam a história da patroa para contar, mas que seu foco como narradora seria procurar a história dessa empregada, o que sentiu, o que está por vir para ela.
Essa lição voltou à minha cabeça durante a leitura de Canção de Ninar (Tusquets/ Editora Planeta, 2018), romance da escritora franco-marrorquina Leïla Slimani, que estará na FLIP desse ano. Com previsão de adaptação para o cinema, Canção de Ninar foi o mais lido na França em 2016 e vencedor do Prêmio Goncourt, o mais tradicional do país. Slimani, aliás, foi a primeira mulher a receber o prêmio grávida.
O título ou a capa da edição brasileira podem sugerir equivocadamente que se trate de um livro sobre de ternura. Mas seu mote é o assassinato de duas crianças pela babá, caso noticiado pelos jornais e que chamou a atenção da escritora, servindo de inspiração. A concisão da frase inicial “O bebê está morto” chegou a chocar muitos leitores. Embora seja retratada, não é a mãe das crianças a personagem desse livro e sua razão de ser, a assassina é quem ocupa a maior parte da narrativa.
Canção fala de cuidados com os filhos e, por isso, suas personagens são as mulheres. Mulheres que há tantos anos são as responsáveis majoritariamente pelo zelo em seus lares, consequência da ausência, seja emocional ou presencial, de homens na tarefa de gerir o cuidado com os filhos. Esse é um dos pontos em que o romance diz muito para o leitor brasileiro, que vem de um lugar em que, de tantos casos de abandono paterno, são necessárias campanhas institucionais em cartórios, bem como acha normal que homens, quando não deixam a mãe de seus filhos à própria sorte, sintam-se à vontade para comentar, por exemplo, que ficam de “babá” quando as esposas viajam ou tem um dia importante no trabalho.
Slimani não pinta anjos. Não há idealização ou perfeição no retrato dessas mulheres. Antes de se tornar assassina, a babá é a única aliada de Myriam, que está mais distante da figura da mãe negligente do que de qualquer mulher de classe média que já esteve insatisfeita com a maternidade e cansada do emprego mais mal remunerado, o de dona de casa.
Disposta a retomar a exigente carreira de advogada, Myriam delega os cuidados dos dois filhos, Mila e Adam, para uma babá bem recomendada. Louise domina a arte de ser invisível e indispensável, qualidades louvadas em uma trabalhadora doméstica. E é com sua atitude servil e obstinada que cai nas graças dos patrões. Cuida das crianças com esmero, educando-as e entretendo-as, bem como gerencia tudo que diz respeito à casa, como as roupas, a sujeira e até a comida. É a babá perfeita, de dar inveja, quase irreal. Certa feita é tão grande o espaço que Louise ocupa na família que Paul sugere a Myriam que é hora de retomar as rédeas das coisas. É um livro de mulheres, afinal, uma nuvem delas.
Pesa sobre elas o tempo todo a perseguição pela perfeição como uma bacia cheia de água sobre a cabeça. Cuidar de filhos e marido não gera satisfação e tampouco é aceitável manter uma carreira de sucesso negligenciando-os. Na equação impossível das mães que trabalham, a fórmula está nas babás, pessoas desconhecidas e a quem se entrega a educação de crianças em troca de um salário muito abaixo da importância de seu fazer. Expatriadas, paupérrimas, solitárias, como elas podem ser perfeitas? As babás de que os pais franceses burgueses exigem perfeição não conseguem dar conta dos problemas das duas vidas, as suas e as dos patrões. Acabem sem vida própria, sufocadas pelas vidas de quem lhes paga salário.
Nesse sentido, a babá assassina é a versão mulher e pobre de Bartleby, caso precisasse e pudesse ser reescrito com a violência e a miséria que só o olhar contemporâneo de gênero e de classe poderiam dar. Louise atende pelo cuidado de vários bebês e adultos ao longo da vida, mas não consegue ser nada para a sua filha Stéphanie. A criança até acompanha a mãe nesse mundo do trabalho, mas conforme cresce torna-se um empecilho para a imagem de perfeição de Louise. Os patrões entendem que bagagens das empregadas não cabem em seus lares e a mulher que trabalha não pode ter filhos.
Melancólico, Canção de Ninar encapsula narrativas ainda pouco exploradas da vida das mulheres e que remetem à eloquência da obra de Carolina Maria de Jesus ou à denúncia propiciada por personagens populares como a cativante Val do filme de Anna Muylaert Que horas ela volta?. O presidente do júri do Prêmio Goncourt afirmou que muitos irão se reconhecer no livro, que considero já parte de um capítulo interessante na literatura sobre as chamadas pessoas reais, ou, para alguns, os de baixo: os pobres, os negros, as mulheres, os e as invisíveis.
*Fernanda Bastos é formada em jornalismo (IPA) e Letras (UFRGS) e é editora-geral da Figura de Linguagem.